Atendendo ao pedido do aluno Braian Bizinela Ferreira, da turma do 5º ano, segue abaixo o livro "A ilha perdida", da autora Maria José Dupré. Esse é um dos meus preferidos da Série Vaga-Lume, aliás, temos muitos livros desta coleção disponíveis na biblioteca da escola. Braian, que tal levar alguns para seus pais lerem contigo? Boa leitura!
A ILHA PERDIDA
Maria José Dupré
Editora
Ática 28.a edição SÉRIE VAGA-LUME
Coordenação da
Série: Fernando Paixão
Ilustrações:
Edmundo Rodrigues
Capa: layout de
Ary Almeida Normanha
Suplemento
de Trabalho: Ivanilde Aparecida França e Luiz Carlos Traváglia
Obra aprovada
pela Equipe Técnica do Livro e Material Didático. Proc. n° 1426/75, publicado
no Diário Oficial do Estado de São Paulo de 25-11-75. ISBN 8508026811 1992
Todos os direitos
reservados pela Editora Ática S.A.
r. Barão de
Iguape, 110 — Tel: PABX 278-9322 Cx. Postal 8656 S.Paulo
Digitalização:
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disponibilizados gratuitamente, com a única finalidade de oferecer leitura
edificante a todos aqueles que não tem condições econômicas para comprar.
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você é financeiramente privilegiado, então utilize o acervo apenas para
avaliação, e, se gostar, prestigie autores, editoras e livrarias, adquirindo os
livros.
QUEM É O AUTOR
Maria José Dupré
era paulista. Nasceu em 1905, na Fazenda Bela Vista, município de Botucatu,
próxima da divisa entre São Paulo e Paraná.
Aprendeu as
primeiras letras com sua mãe e seu irmão, e em Botucatu estudou Música e
Pintura. Transferiu-se para São Paulo onde se formou professora pela Escola
Normal Caetano de Campos. Iniciou-se na Literatura depois de se casar com o
engenheiro Leandro Dupré.
Seu primeiro
romance — O Romance de Teresa Bernard — foi publicado em 1941. Mas o que
a tornou famosa foi Éramos Seis, editado em 1943, traduzido para o
espanhol, francês e sueco e transformado em filme pelo cinema argentino.
Entre
os diversos prêmios que conquistou, destacam-se: Prêmio Raul Pompéia, da
Academia Brasileira de Letras e o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.
Faleceu
em maio de 1984.
OBRAS DO AUTOR:
Romances:
Gina
Os Caminhos
A Casa do Ódio
Angélica
Dona Lola
Éramos Seis
Luz e Sombra
Menina Isabel
O Romance de Teresa Bernard
Os Rodriguez
Vila Soledade
Livros infantis:
A Mina de Ouro
O Cachorrinho Samba na Bahia
A Ilha Perdida
Aventuras de Vera Lúcia
Pingo e Pipoca
O Cachorrinho Samba
A Montanha Encantada
O Cachorrinho Samba na Floresta
O Cachorrinho Samba na Rússia
O Cachorrinho Samba entre os índios
O
Cachorrinho Samba na Fazenda
A ILHA PERDIDA
Na fazenda do
padrinho, perto de Taubaté, onde Vera e Lúcia gostavam de passar as férias,
corre o rio Paraíba. Rio imenso, silencioso e de águas barrentas. Ao atravessar
a fazenda ele fazia uma grande curva para a direita e desaparecia atrás da
mata. Mas, subindo-se ao morro mais alto da fazenda, tornava-se a avistá-lo a
uns dois quilômetros de distância e nesse lugar, bem no meio do rio, via-se uma
ilha que na fazenda chamavam de «Ilha Perdida». Solitária e verdejante parecia
mesmo perdida entre as águas volumosas.
Quico e Oscar os
dois filhos do padrinho, ficavam horas inteiras sentados no alto do morro e
conversando a respeito da ilha. Quem viveria lá? Seria habitada? Teria algum
bicho escondido na mata? Assim à distância, parecia cheia de mistérios, sob as
copas altíssimas das árvores; e as árvores eram tão juntas umas das outras, que
davam a impressão de que não se poderia caminhar entre elas. Oscar suspirava e
dizia:
— Se algum dia eu
puder ver a ilha de perto, vou mesmo.
Quico perguntava.
— Não tem medo? E
se tiver alguma onça morando lá?
— Onça? Não pode
ter. Como é que onça vai parar lá no meio do rio?
— Nadando. Ouvi
dizer que onça nada muito bem.
Oscar respondia,
pensativo:
— Pode ser. Todos
os bichos sabem nadar, só a gente precisa aprender; mas eu queria ver o que há
na ilha. Falam tanta coisa...
E ficavam olhando
a ilha perdida. Se falavam com o pai, este prometia:
— Quando forem
mais velhos, faremos uma excursão à ilha. Arranjaremos canoas apropriadas e
iremos até lá.
Os dois meninos
chegavam muitas vezes a sonhar com a ilha.
Por ocasião de
umas férias, justamente em fins de novembro, chegaram à fazenda Henrique e
Eduardo, os dois primos mais velhos de Oscar e Quico. Eram dois meninos de doze
e quatorze anos, fortes e valentes. Montavam muito bem e sabiam nadar. Logo nos
primeiros dias, percorreram sozinhos grande parte da fazenda; subiram e
desceram morros, andaram por toda parte e ao verem o riozinho, onde Vera e
Lúcia tinham ido pescar uma vez com padrinho, apelidaram-no de «filhote do
Paraíba».
Madrinha avisava:
— Vocês não devem
andar tão longe de casa; de repente não sabem mais voltar e perdem-se por aí.
Eles riam-se e
diziam que não havia perigo; continuavam a dar grandes passeios, e quando
ouviam o sino dar badaladas, tratavam de voltar depressa. No terraço da casa
havia um grande sino que padrinho costumava tocar todas as manhãs; dizia que
era para acordar os dorminhocos, mas quando Henrique e Eduardo demoravam um
pouco mais nas caminhadas, padrinho tocava três badaladas, conforme haviam
combinado, e eles já sabiam que deviam regressar.
Uma tarde os
quatro meninos ficaram no alto do morro olhando a «ilha perdida». Como seria
bom se tivessem uma canoa e pudessem ir ver o que havia na ilha. Eduardo, de
espírito mais prático, foi logo dizendo:
— Que pode haver
lá? Árvores, cipós, ninhos de passarinhos...
Henrique, com a
mão no queixo, olhava pensativo em direção da ilha. Depois disse:
— Vou ver se
arranjo uma canoa por aí, nem que seja emprestada ou alugada. Impossível que
ninguém tenha uma canoa; eu sei remar, aprendi em Santo Amaro com uns primos.
Os olhos de Quico
brilharam de contentamento:
— Você sabe mesmo
remar?
Oscar disse uma
frase que esfriou o entusiasmo de todos:
— Nem pensem
nisso, papai não deixa. Já pedi muitas vezes e ele não deixa.
Continuaram a
olhar o rio. Henrique perguntou:
— Por que chamam
de Ilha Perdida? Quico explicou:
— Ninguém sabe direito.
Decerto porque parece mesmo perdida no meio do rio. Quando viemos para cá, já a
chamavam assim. O Bento disse uma vez que morava gente lá, mas não acredito.
Acho que é boato, mas os moradores daqui dizem isso.
Os primos ficaram
mais interessados:
— Quem mora lá?
Será possível? Chame o Bento para perguntar.
Bento era o filho
da cozinheira Eufrosina. Quico e Oscar começaram a gritar com toda a força:
— Bento! Oh!
Bento! Vem cá!
Ouviram uma voz
lá embaixo do morro respondendo:
— Já vou!
Bento estava
recolhendo os bezerrinhos do pasto; quando acabou o serviço, subiu o morro bem
devagar, cansado, suarento e mastigando um capim. Encontrou os quatro meninos
sentados no chão e conversando a respeito do rio.
Henrique
perguntou:
- Bento, você
sabe se mora gente naquela ilha? Bento olhou em direção da ilha e coçou a
testa:
— Há muito tempo
ouvi dizer que morava lá um homem ruim, mas nunca vi nada, não sei se é
verdade.
Eduardo
levantou-se e chegou mais perto de Bento:
— Você nunca viu
mesmo nada? Nem um sinal de que há gente lá?
Bento hesitou,
olhou o chão, tirou o capinzinho da boca e falou:
— Pra dizer a
verdade, um dia eu vi uma coisa lá... Os quatro entreolharam-se. Quico pediu:
— O que foi?
Conte, conte.
— Vi uma
fumacinha saindo do meio daquelas árvores mais altas lá bem à direita, estão
vendo? Daquele lugarzinho vi uma vez sair fumaça.
— Só uma vez?
Veja se lembra, Bento.
— Só uma vez, mas
era uma fumaça comprida que ia subindo, subindo até às nuvens.
Oscar perguntou:
— E você não teve
vontade de ir ver o que era?
— Eu ainda era
pequeno, nem pensei nisso. Vocês nesse tempo ainda estavam em S. Paulo, não
tinham vindo para cá.
Quico disse:
— E por que não
nos contou isso antes? Bento respondeu:
— Ué! Nunca
ninguém perguntou nada. Agora perguntaram, respondi.
Desse dia em
diante, Henrique e Eduardo não falaram mais na ilha, mas não pensavam noutra
coisa. Durante o dia, passeavam pelas margens do rio explorando todos os
recantos. Alimentavam um único desejo: seguir aquele grande rio e ver a ilha de
perto. Quando Quico e Oscar convidavam os primos para irem até o riozinho, eles
iam, mas não achavam graça; não gostavam do «filhote do Paraíba». Achavam
insignificante aquele riozinho sapeca que dava mil voltas antes de ser engolido
pelo grande rio. Um dia Henrique, que andara sozinho até mais abaixo da
fazenda, voltou nervoso para casa e segredou ao ouvido de Eduardo:
- Descobri uma
canoa velha amarrada lá embaixo na curva grande. Parece abandonada.
Eduardo que
estava saboreando um pedaço de goiabada com queijo, quase engasgou de emoção:
- Não diga!
Estará boa para navegar?
- Não examinei
muito bem; corri primeiro para avisar você.
- Então vamos
ver.
Saíram correndo
para o lado do rio; nem ouviram a voz da madrinha:
- Não demorem muito,
parece que vem chuva. Pulando moitas, desviando-se dos galhos dos arbustos,
subindo e descendo barrancos, os dois meninos foram ver a canoa amarrada na
margem do rio. Eduardo foi dizendo pelo caminho:
- Não conte a
ninguém a história da canoa; se Oscar e Quico souberem, vão contar ao padrinho
e não se pode fazer mais nada.
- Não conto nada,
nem ao Bento. - Nem ao Bento.
O coração de
ambos batia, apressado. Iriam ver, enfim, a ilha verdejante do meio do rio?
Aquela ilha tão bonita com tantas árvores, tanta folhagem, tanta beleza?
Devia estar cheia
de papagaios, verde de periquitos, enfeitada de flores. Impossível que ali
vivesse algum homem ruim; homens ruins não vivem em lugares bonitos como
aquele.
Quando chegaram
ao lado da canoa, ficaram extasiados, imaginando o passeio que dariam até à
ilha. Eduardo observou:
— Está bem velha,
Henrique; é capaz de encher d´água.
— Qual! replicou
Henrique. Eu acho que está bem boa. A gente pode calafetar os lugares onde ela
está estragada.
Inclinaram-se e começaram
a olhar o fundo da canoa. Henrique pulou para dentro dela e, equilibrando-se,
começou a rir:
— Ih! Que bom!
Agora, sim, daremos belos passeios. Eduardo era mais calmo:
— Espera,
Henrique. Temos que arranjar muita coisa antes: arrumar cola para tapar os
buracos, levar comida para passar o dia inteiro...
— É mesmo, nem me
lembrava disso.
— Precisamos de
uma caixa de fósforo para acender fogo.
— Isso eu peço
pra Eufrosina; a comida também peço pra ela.
— Não vá fazer as
coisas de -maneira que eles descubram tudo...
— Não há perigo.
Eduardo continuou:
— Temos que levar
uma lata com água para beber.
— Água? Pois não
há tanta água no rio?
— Mas precisamos
de água pura; essa água do rio deve ser suja, é tão escura. Temos que levar também
faca ou canivete.
— Levo meu
canivete. E o principal é não contar nada lá na fazenda; se desconfiarem de
alguma coisa, não nos deixam ir.
— Naturalmente
não se conta nada, nem deixamos que eles desconfiem.
Meia hora depois,
voltaram para casa, ainda excitados com a novidade. Não dormiram bem durante a
noite; Henrique acordou Eduardo duas vezes para perguntar se a canoa não teria
dono.
Tinha resolvido
seguir para a ilha na terça-feira e estavam ainda no domingo. Precisavam
preparar tudo no dia seguinte.
Na segunda-feira
de manhã bem cedo, Henrique teve uma idéia: tirar a canoa do lugar onde estava
e escondê-la mais longe; assim, se alguém a procurasse, não a acharia mais
Foram para lá e com grande dificuldade tentaram puxá-la para terra, mas não conseguiram;
então resolveram cortar muitos galhos de árvore e cobriram-na para que ninguém
a encontrasse.
Foram depois
falar com Nhô Quim, o homem que lidava com as vacas no estábulo. Ele estava
limpando as unhas com a ponta do facão. Eduardo falou:
- Nhô Quim,
viemos pedir um favor ao senhor.
Ele enfiou o
facão no cinto de couro:
- Oue é que estão
querendo? Henrique foi dizendo:
- Uma corda boa,
dessas com que o senhor amarra bezerro.
- Gentes, para
que querem uma corda?
Eduardo piscou
para Henrique e falou:
- Queremos fazer
um balanço numa árvore do pomar.
Nhô Quim
observou:
- Só falando com
o patrão; não posso dar corda assim sem mais nem menos.
Eduardo pediu:
- Ora, Nhô Quim,
faça esse favor. Não precisa ser corda muito nova, uma velha mesmo serve; a
gente emenda os pedaços ruins.
Pacientemente,
Nhô Quim tornou a tirar o facão do cinto, picou fumo bem miudinho para um
cigarro de palha e enrolou-o enquanto ouvia as súplicas dos dois meninos.
Depois disse:
- Se não importam
que a corda seja velha, levem essa que está aí na cerca. Pra alguma coisa ela
serve.
- Muito obrigado,
Nhô Quim. Muito obrigado.
A corda estava
arranjada. Durante a noite, haviam lembrado que, para tapar os buracos da
canoa, era preciso estopa e piche. Muitas vezes tinham visto a lata de piche
encostada num canto da casa; servia para passar no terreiro onde espalhavam o
café. Mas onde arranjar um pedaço de estopa? Foram à cozinha.
Eufrosina estava
preparando o almoço; Henrique falou primeiro:
— Eufrosina, você
tem aí um pedaço de estopa velha? É para enrolar uma avenca muito bonita que
encontramos na beira do rio.
Eufrosina
voltou-se, despejou na palma da mão um pouco do caldo que estava mexendo e
provou estalando a língua:
— Para embrulhar
avenca não se precisa estopa. Espere aí que dou um pedaço de pano velho.
Eduardo olhou
para Henrique; Eufrosina tornou a provar o caldo e a estalar a língua. Eduardo
falou, resoluto:
— Queremos estopa
mesmo; se não, não serve. Será que você não arranja? De algum saco velho?
Ela perguntou:
— Não será para
alguma reinação? Vejam lá.
— Que idéia,
Eufrosina!
— Só depois do
almoço, agora estou ocupada.
— Mas onde estão
os sacos velhos? Diga só.
— Vão ver na
despensa; agora estou ocupada. Que meninos terríveis!
Os dois correram
para a despensa e tiraram um grande pedaço de estopa. Levaram para a beira do
rio e esconderam-no lá . Só depois do almoço foram tapar os buracos da canoa.
Calafetaram tudo muito bem e passaram piche por cima. Havia dois remos, mas um
estava quebrado; Henrique emendou-o como pôde. Passaram a tarde toda nesse
serviço e depois de terem coberto a canoa com galhos de árvore, voltaram para
casa, entusiasmados com o trabalho que julgavam feito com tanta perfeição.
Durante o jantar,
pediram licença aos padrinhos para no dia seguinte visitarem o fazendeiro
vizinho; era um velho que morava a alguns quilômetros de distância. Costumavam
ir lá de quando em quando. Padrinho perguntou se queriam ir a cavalo; Eduardo
corou e respondeu que iriam mesmo a pé, queriam fazer uma excursão; só pediam
alguns ovos cozidos para comerem no caminho. Madrinha deu ordem à Eufrosina
para, no dia seguinte bem cedo, preparar um leve almoço para os meninos. Quico
e Oscar pediram para ir também, mas madrinha disse que não; era muito longe,
iriam a cavalo, num outro dia. Quando se recolheram ao quarto, Eduardo estava
sentindo remorso por enganar os padrinhos; falou a Henrique:
— Quem sabe é
melhor contar tudo ao padrinho; estamos pregando tantas mentiras. Eles podem
ficar aflitos quando souberem a verdade...
Henrique riu-se:
— Será que você
está com medo? Sairemos bem cedo e voltaremos à tarde; eles nem saberão de
nada. Contaremos depois que voltarmos; é questão de algumas horas apenas. Se
está com medo, não vá; sei remar muito bem, vou sozinho.
Eduardo não
respondeu e tratou de dormir; mas nenhum dos dois dormiu naquela noite;
levantaram de madrugada e foram à cozinha. Lá estava Eufrosina preparando o
almoço para eles levarem: lingüiça frita, ovos cozidos, pão, queijo e laranjada.
Eufrosina fez um grande pacote e deu-lhes também uma garrafa de água.
Despediram-se da boa preta e desceram o morro em direção ao rio.
Lá estava a canoa
preparada na véspera, bem calafetada, a corda embrulhada num canto. Colocaram o
almoço no fundo e Henrique preparou-se para conduzi-la rio abaixo. Olharam o
Paraíba; estava calmo e as águas espu-mavam nas margens. Eduardo observou:
— O rio parece
que cresceu, Henrique. Hoje está maior que ontem.
Preocupado em
empurrar a canoa para longe da margem, Henrique respondeu:
— Decerto é por
causa das chuvas; tem chovido muito nestes últimos dias. Mas nós voltaremos
cedo, não há perigo.
Eduardo teve uma
ligeira hesitação:
— Não será ruim
remar assim? Parece que as águas ficam com mais força.
— Já disse que se
você está com medo, fique. Eu vou.
E com o esforço
que fez ao empurrar a canoa, Henrique caiu dentro da água molhando-se todo. Não
deu a perceber que ficara aborrecido; pulou para cima da canoa e segurou os
dois remos. Eduardo, sentado no banco que havia no meio, segurou-se fortemente
nas bordas da canoa e olhou para Henrique, cheio de admiração. Com toda calma,
Henrique havia depositado o remo quebrado no fundo e com o outro impelia a
canoa para longe da margem. Ela começou a deslizar rio abaixo e Eduardo sentiu
o coração dar um salto dentro do peito. Pensou coisas horríveis nesse momento:
«E se Henrique perdesse aquele remo? E se não soubessem voltar? E se o rio
enchesse mais?»
Estava muito
arrependido e teve vontade de gritar: «Henrique, vamos voltar, eu não quero
ir». Mas não teve coragem. Ficou quietinho, equilibrando-se com as duas mãos e
olhando o rio que corria, majestoso e tranqüilo. Henrique sabia mesmo remar;
fez a canoa deslizar sempre ao lado da margem, de modo que quase podiam segurar
os galhos das árvores que pendiam sobre a água. Eduardo começou a achar bonito
e Henrique disse:
— Devem ser seis
horas agora; o sol está começando a esquentar.
E se Henrique
perdesse aquele remo?
E se não
soubessem voltar?
E se o rio
enchesse mais?
Nesse momento
ouviram o sino da fazenda; era padrinho que estava tocando como fazia todas as
manhãs. Eduardo perguntou:
— A ilha estará
muito longe? Daqui não vejo nada.
Henrique
respondeu:
— Nem começamos a
navegar e você quer ver a ilha? Está longe ainda.
A canoa descia
vagarosamente; de vez em quando Henrique remava um pouco, conservando-a sempre
na mesma direção. Viram lindos pássaros nas margens; outros passavam gritando
sobre as cabeças dos dois. O dia prometia ser esplêndido. Henrique tirou cuidadosamente
o paletó para secar, pois sentia toda a roupa molhada grudada no corpo; a canoa
começou a balançar de um lado para outro e Eduardo ficou assustado, mas não
disse nada.
Henrique estendeu
o paletó sobre os joelhos e tornou a segurar o remo. A canoa foi indo... foi
indo... O sol batia em cheio no rio e as águas pareciam douradas e prateadas;
Eduardo achou bonito e deixou pender a mão na água, depois olhou o fundo da
canoa para ver se não entrava água; o serviço havia sido perfeito, o barco
estava bem calafetado. Satisfeito, olhou a outra margem; não havia nem sinal de
gente, nem de casas para lado algum. Era só vegetação e água. De vez em quando,
algum pássaro passava lá no alto, sobre suas cabeças. Procurou ver a casa da
fazenda; tudo havia ficado para trás. Não havia nem sombra de habitação e a
ilha devia estar longe ainda. Só o rio de águas barrentas e a canoa descendo
devagar...
Henrique começou
a assobiar, despreocupado; para mostrar que também não tinha medo, Eduardo
assobiou acompanhando Henrique; depois tomou um pouco da água da garrafa
dizendo que estava com sede. Apesar da fome que sentiam, resolveram esperar e
almoçar na ilha, nem sequer abriram o pacote do almoço. A canoa foi descendo o
rio, seguindo o curso das águas. Viram árvores enormes, flores roxas e
vermelhas sobressaindo no verde da folhagem; olhavam sempre para uma e outra
margem à procura de gente ou casas, mas só viam água e árvores.
Depois de algumas
horas, avistaram a ilha.
Eduardo foi o
primeiro a divisá-la e deu um grito de satisfação:
- Henrique, veja!
É a ilha!
Ficou de pé na
canoa, mas quase caiu e quase fez a canoa virar; sentou-se assustado. Henrique
abriu a boca com admiração.
Lá estava ela,
toda verde e bonita, bem no meio do grande rio. Árvores frondosas dominavam-na
Foram se aproximando cada vez mais, mudos de espanto e alegria.
Depois de
algumas horas, avistaram a ilha.
Eduardo ao
avistá-la deu um grito de satisfação.
Com o
remo entre as mãos, Henrique empurrava a canoa em direção à ilha. A canoa
parecia querer descer o rio abaixo porque as águas tinham muita impetuosidade;
afinal Henrique conseguiu fazê-la aproximar-se da terra. Com um suspiro de
satisfação, os dois meninos pularam para fora da canoa, afundando os pés na
lama das margens.
NA ILHA
Foi com verdadeira
emoção que os dois meninos puseram pé em terra; estavam afinal na célebre ilha.
Tudo fora tão fácil, pensou Eduardo, e Henrique era tão bom remador, não deviam
arrepender-se da mentira pregada aos padrinhos. Que dia divertido e alegre
iriam passar ali! Apressadamente tratou de auxiliar Henrique; a primeira coisa
que fez ao tirar as cordas foi cair dentro da água e molhar-se todo. Ficou todo
enlameado, mas começou a rir dizendo que tiraria a roupa logo mais e o sol a
secaria em dois minutos. Com alguma dificuldade, puxaram a canoa o mais perto
possível da terra e amarraram-na a uma árvore próxima com a corda que Nhô Quim
lhes havia emprestado. Eduardo lembrou-se:
— Vamos amarrar
bem forte, Henrique. Se a corda arrebentar, estamos perdidos porque a canoa vai
por água abaixo.
Dando dois nós,
Henrique respondeu:
— Você tem cada
idéia... A corda não é tão velha assim, resiste perfeitamente. Veja.
Examinaram para
ver se a canoa estava bem segura; tiraram o almoço e a garrafa de água e
puseram tudo em terra firme. Depois começaram a olhar à volta, e a caminhar
explorando o terreno. Havia arbustos e moitas que eles foram cortando com a
faca que haviam trazido; as árvores mais altas, já avistadas de longe, ficavam
no interior da ilha.
Abriram caminho
por entre as moitas e foram andando, levavam o almoço e a garrafa de água, mas
não pensavam em comer, tão entusiasmados se sentiam. Quando padrinho soubesse,
havia de admirar a coragem deles; e Quico e Oscar ficariam com tanta inveja...
Foram andando e chegaram a uma clareira no meio da mata. Eduardo propôs:
— Vamos descansar
aqui? Minha roupa está tão molhada que gruda no corpo.
Resolveram então
tirar as calças e estendê-las; o sol que passava por entre os galhos era
suficiente para secá-las. Assim fizeram; estenderam as calças e os paletós;
depois as camisas, depois os sapatos e as meias. Enquanto esperavam que as
roupas secassem, abriram o pacote do almoço e comeram a lingüiça com pão e os
ovos cozidos. Tomaram água. Henrique resolveu subir na árvore mais alta para
ver o que se avistava lá de cima, mas desistiu a meio do tronco e desceu
dizendo que preferia esperar a roupa secar; não podia subir só de cuecas porque
os galhos machucavam.
Esperaram cerca
de meia hora, depois vestiram as roupas ainda úmidas e continuaram a
exploração. Subiram nas árvores, cortaram cipós, descobriram frutas que nunca
haviam visto antes; de vez em quando, Henrique perguntava:
— Será mesmo
habitada esta ilha? Vamos ver se encontramos algum sinal de gente.
— Qual o quê!
respondia Eduardo. Quem há de morar aqui neste mato? Só bichos.
E trincava uma
fruta entre os dentes para ver que gosto tinha; Henrique avisava:
— Não coma
qualquer fruta, pode ser venenosa...
Por mais que
observasse, não encontraram sinal de habitação. Depois de caminhar durante
algumas horas, viram serelepes pulando nos galhos mais altos; os bichinhos
olhavam para os dois meninos com olhos muito vivos, davam grandes pulos e
desapareciam entre a folhagem. Eduardo e Henrique acharam graça e começaram a
assobiar para chamar a atenção dos serelepes. Às vezes, ouviam o ruflar de asas
sobre suas cabeças; deviam ser pássaros que, assustados com a presença dos
dois, deixavam seus ninhos e voavam.
Mais adiante
encontraram uma frutinha vermelha e redonda; começaram a atirá-las para cima a
fim de atrair os serelepes; de vez em quando gritavam para ver o que acontecia.
Não acontecia nada; parece que os bichos ficavam com medo ao ouvir os gritos e
o silêncio então era profundo, nada se movia entre as folhas. Eduardo carregava
a garrafa com água e os restos do almoço; encon-traram uma nascente e a água
era tão pura que tornaram a encher a garrafa. Quando cansaram de andar,
Henrique propôs:
— Vamos voltar ao
lugar onde deixamos a canoa? Acho que já é hora de voltarmos para casa.
— É pena ter de
voltar, respondeu Eduardo. Está tão bonito o nosso passeio; por mim, ficaria
mais tempo.
Henrique tornou a
falar:
— Pode ficar
tarde demais, Eduardo. Estamos longe do lugar onde desembarcamos; andamos mais
de uma hora sem parar.
— Então vamos
voltar.
Cada um tomou um
gole de água e depois iniciaram a caminhada de regresso. Mas quem diz de
encontrar o caminho? Eduardo dizia que era à direita, Henrique afirmava que era
à esquerda. Ficaram assim discutindo durante uns instantes, depois resolveram
caminhar para a direita; andaram uma meia hora e não acharam o caminho por onde
haviam passado. Henrique disse:
— Eu não disse
que não era por aqui? É para a esquerda que devemos seguir. Vamos voltar outra
vez.
Eduardo
espantou-se:
— Nem sei mais
onde fica a direita e a esquerda. Onde é a esquerda?
— É por aqui.
Eduardo disse:
— Eu me lembro
que cortei uns galhos desta árvore com meu canivete. Vamos ver.
A árvore parecia
a mesma, mas não havia nem sinal de cortes de canivete; Henrique falou:
— Você sonhou;
nós não passamos por aqui, foi por outro lugar.
— Passamos, disse
Eduardo. Juro que passamos. Foi aqui que paramos para ver os serelepes pela
primeira vez.
— Que absurdo,
disse Henrique. Tenho certeza que não foi aqui; aqui há frutinhas vermelhas e
naquele primeiro lugar onde paramos não havia.
— Você está
enganadíssimo.
— Onde estão os
cortes de canivete que você fez...?
Eduardo passou a
mão pela testa:
— É o que não
estou entendendo. Parece que foi aqui, mas não os vejo.
Começaram a ficar
inquietos; pararam um pouco à escuta; apenas ouviam o ruído surdo do rio que
corria em redor da ilha. Resolveram então andar à esquerda; entre cipós e
galhos de espinhos, foram abrindo caminho dentro da mataria; o rio parecia cada
vez mais perto, mas nunca chegavam até ele. Eduardo disse de repente:
— Vamos parar
para escutar; pelo barulho do rio saberemos onde estamos.
Ficaram imóveis
uns instantes e ouviram o ruído do rio correndo sem parar; depois ouviram
galhos que estalavam perto deles. Eduardo segurou o braço de Henrique:
— O que será?
Você não ouviu o barulho de galhos quebrados?
— Não é nada,
disse Henrique. É o vento.
Continuaram a
andar; quanto mais se aproximavam do rio, mais o rio parecia fugir. Henrique,
até então calmo, começou a inquietar-se; olhou para cima para calcular as
horas. Viu as copas das árvores, o céu muito azul e nada de sol. Levou um
susto; o sol já desaparecera? Então era tarde, devia ser quase noite. Voltou-se
para Eduardo, a voz um pouco aflita:
— Impossível que
seja muito tarde; mas parece que o sol já está sumindo.
Eduardo
perguntou:
— Pois você não
tem relógio? Veja que horas são... Então Henrique contou que o relógio parará
nas oito horas e ele não havia percebido; com certeza fora por causa da água
que entrara no maquinismo. Não quisera contar antes para não alarmar o irmão.
Eduardo assustou-se:
— Então vamos
tratar de voltar, pode ser quase noite. Você devia ter-me contado isso antes;
temos de descobrir esse caminho de qualquer jeito.
Mas não
encontravam o caminho. Se andavam para a frente, entravam cada vez mais na
mata; se andavam para a direita ou para a esquerda, a mesma coisa. De que lado
estaria a canoa? Começaram a ficar aflitos, mas um não dizia nada ao outro.
Andavam para diante e para trás, sem acertar o caminho. De repente perceberam
que não era ilusão; a noite vinha caindo rapidamente. E o que seria deles,
sozinhos naquela ilha? E que pensariam padrinho e madrinha, não os vendo voltar
da fazenda vizinha? Henrique murmurou:
— Que situação a
nossa! Vamos ter calma e procurar com calma.
Eduardo não
respondeu e começou a andar para a frente como se tivesse certeza de haver
encontrado o caminho certo. Henrique seguiu-o, um pouco desanimado. Estavam
cansados e suados; enxugavam os rostos com os lenços, tomavam um gole d'água e
continuavam a andar. Os espinhos de alguns galhos batiam nos rostos de ambos,
mas eles não se importavam. Tão preocupados em encontrar a canoa, não pensavam
noutra coisa.
Quando ouviam
ruídos estranhos na mata, paravam um pouco assustados; um segurava no braço do
outro e ficavam esperando. Não era nada. De repente, Henrique sussurrou:
— Estou tão
cansado... Quase não agüento mais.
Pararam então por
alguns minutos e encostaram-se ao tronco de uma árvore grossa que havia ali
perto; Henrique passou o lenço outra vez nas faces e no pescoço e pediu:
— Dá um pouco de
água...
Eduardo virou a
garrafa para baixo, estava vazia sem uma gota sequer. Henrique suspirou e quis
fazer-se forte:
— Não faz mal,
quando encontrarmos o rio, bebo bastante água.
Olharam outra vez
para cima procurando o sol; havia desaparecido. A claridade estava sumindo
entre a folhagem. Breve seria noite cerrada. Que fazer? Ficaram escutando
durante alguns minutos para ver se percebiam o ruído do rio; era cada vez mais
forte, mas de que lado estaria? O rio parecia roncar, um ronco forte que não
tivera antes. Eduardo perguntou com voz trêmula:
— Será que vamos
dormir nesta mata? Henrique fingiu-se muito animado:
— Se tivermos que
dormir, dormiremos, ora esta.
— E padrinho? E
madrinha?
Ficaram quietos
uns instantes, depois Henrique disse:
— Eles vão mandar
um camarada à fazenda vizinha e quando souberem que nós não estivemos lá,
ficarão tão aflitos...
— Nem fale,
Henrique. Já estou tão arrependido. Se soubesse...
— Eu também, mas
que podemos fazer? Temos que encontrar a canoa nem que seja para andar a noite
inteira.
Eduardo teve uma
idéia:
— Espere aqui;
vou subir nesta árvore e, lá de cima, verei onde estamos.
— É mesmo. Como é
que não lembramos disso antes?
Eduardo tirou o
paletó e os sapatos e abraçou o tronco da árvore; subiu até chegar aos
primeiros galhos e parou quase sem fôlego; Henrique perguntou, todo
esperançado:
— Vê alguma
coisa, Eduardo?
— Nada ainda.
Espere, vou subir mais alto.
E desapareceu
entre os galhos compridos, empurrando a folhagem para um lado e outro. Olhou lá
de cima — avistou o rio a uma certa distância; suas águas pareciam negras sem a
luz do sol brilhante sobre elas. Ouviu a voz de Henrique lá embaixo:
— Está vendo
alguma coisa, Eduardo? Estamos longe do rio? De que lado ele fica? Veja bem.
—- Sim, estou
vendo o rio.
Henrique tornou a
perguntar, disfarçando a aflição:
— De que lado ele
está? Veja bem. Eduardo respondeu:
— Está em todos
os lados. À direita, vejo o rio; à esquerda, também vejo. Não entendo.
Henrique pediu:
— Veja bem,
Eduardo. Não avista a canoa?
— Não, nada de
canoa.
— Então desça.
Eduardo desceu
mais animado; calçou os sapatos e vestiu o paletó. Falou:
— Eu acho que a
gente indo por este lado, chega lá num instante.
— Então vamos.
A NOITE NA
ILHA
Resolutamente
começaram a caminhar; de repente um galho bateu com força no rosto de Henrique;
ele deu um grito.
— Ai! Meu rosto
está sangrando...
Eduardo falou
quase gritando:
— Enxugue o
sangue com o lenço.
Henrique
respondeu:
— Estou
enxugando. Por que você está gritando desse jeito? Para espantar o medo?
— Não estou com
medo, nem estou gritando. Meia hora depois, Henrique parou outra vez:
— Você não viu
coisa alguma. Onde está o rio? Já era hora de chegarmos lá.
Eduardo
zangou-se:
— Então suba você
na árvore e veja se descobre. Por que não subiu antes?
Henrique não
respondeu; estava com o paletó nos braços, atirou-o sobre uma moita, descalçou
os sapatos e as meias. Procurou à volta uma boa árvore para subir, subiu
rapidamente e sumiu entre a folhagem. Ficou quieto lá cm cima. Eduardo
perguntou:
— Então? Vê
alguma coisa?
A voz dele veio
quase sumida lá de cima:
— Vejo o rio...
— De que lado?
— À direita. Já
sei, temos que ir para o lado direito da árvore.
Desceu e
vestiu-se; caminharam durante uns vinte minutos. Eduardo perguntou:
— Estaremos
certos? Acho que você se enganou. Os dois pararam, hesitantes. Henrique olhou à
volta, era quase noite. Ouviram um sapo coaxar ali perto. Perguntou:
— Que faremos?
Ficaram uns
instantes em silêncio ouvindo os rumores da mata. Ouviram pios de aves, coaxar
de sapos, cricri de grilos; de repente Henrique aproximou-se mais do irmão e
segurou-lhe o braço:
— Ouviu?
Eduardo também
ouvira um rastejar esquisito ao seu lado, mas fez-se de forte:
— Isso é sapo,
dos grandes. - Henrique sussurrou:
— Sapo não
rasteja, pula. Deve ser alguém que anda na mata ou algum bicho grande...
— Que tolice.
Quem há de ser?
Houve silêncio
outra vez. De súbito os rumores foram aumentando; galhos quebravam-se não muito
longe deles. Henrique tornou a dizer:
— O que será?
Parece que anda alguém na mata; acho que é gente.
Eduardo respondeu
com voz trêmula:
— Pergunte quem
é; quem sabe é alguém perdido como nós.
— Pergunte você.
Mas nenhum falou;
ficaram quietinhos, esperando.
O barulho
aumentou; o coração de Eduardo deu um salto:
— Não é possível
que seja gente; andamos o dia tudo por aí e não vimos nada, vamos continuar a procurar
a canoa.
De repente,
choramingou:
— Henrique, estou
com um pouco de medo...
— Medo de quê?
— Não sei, de
tudo.
— Eu não penso
senão na canoa que temos que encontrar. Coragem. ..
Continuaram a
caminhar ao acaso, um segurando a mão do outro, tal a escuridão. A noite caíra
completamente. Os dois meninos estavam arrependidos de se terem arriscado nessa
aventura; tinham vontade de chorar, mas queriam mostrar-se fortes, um para o
outro. Depois de terem andado durante algumas horas, sentiram o ar úmido que
vinha do rio; o rio estava cada vez mais perto, mas agora isso nada adiantava,
pois tinham de passar a noite ali e esperar a madrugada para voltar à fazenda.
Em silêncio
caminharam mais um pouco e chegaram afinal à margem do Paraíba; estavam tão acostumados
com a escuridão que apesar de ser noite escura, viram as águas do rio correndo
bem junto deles. Mas nem sinal da canoa, ela devia estar em algum outro lugar;
tinham ido parar num lugar errado.
Não sentiram
alegria, nem tristeza por terem chegado à margem do rio; estavam tão cansados
que resolveram ficar ali mesmo. Tiraram os paletós, estenderam-nos sobre as
moitas e sentaram-se. Não falavam; cada um pensava com tristeza no erro que
haviam cometido. Nunca deviam ter feito isso às escondidas do padrinho. Nunca.
Que estariam pensando ele, madrinha e os primos naquele instante? Quem sabe
estariam aflitos, desesperados mesmo, ao ver que os meninos não voltavam e já
era noite fechada? Que arrependimento! Ouviam o coaxar de um sapo enorme; devia
estar pertinho deles, tão pertinho que, se estendessem a mão, o tocariam. Viram
vaga-rumes passar e tornar a passar diante deles; mais longe um pouco divisavam
a massa escura do rio com suas águas profundas e misteriosas.
Eduardo rezou
baixinho e recostou a cabeça no ombro do irmão; estava cansadíssimo, mas não
queria estender-se sobre a moita; tinha a impressão de que, se se deitasse ali,
colocaria a cabeça sobre o sapo que coaxava tão perto. Henrique murmurou:
— Que horas
serão, Eduardo? Ele olhou o céu:
— Deve ser
meia-noite pelos meus cálculos; que pena não termos relógio.
De repente
animou-se:
— Temos a caixa
de fósforo, Henrique. Como é que nos esquecemos disso? Vamos acender um
foguinho, assim espantaremos os bichos.
— Vamos. Onde
estão os fósforos?
— Aqui no pacote
do almoço.
Apressadamente,
Eduardo abriu o pacote e procurou a caixa de fósforos; de fato estava lá. Os
dois ficaram contentes e Henrique perguntou:
— Ainda tem
alguma coisa para comer? Estou com fome.
Eduardo falou:
— E a sede? Na mata
você queria água. Por que não vai beber no rio?
— Tenho medo de
escorregar na beira do rio; quando amanhecer, eu bebo.
Enquanto abria o
pacote do almoço, Eduardo dizia:
— Temos ainda
alguns ovos cozidos, dois pedaços de lingüiça e pão. Esquecemos a laranjada,
nem comemos.
— Vamos comer
então um pedaço de laranjada, o resto fica para amanhã.
— Vamos primeiro
fazer a fogueira, depois comemos.
Muito animados,
levantaram-se e começaram a procurar pauzinhos secos para a fogueira. De súbito
Eduardo deu um gritinho:
— Ih! Peguei numa
coisa mole... Henrique sentiu um arrepio:
— Deve ser sapo,
no mínimo você pegou no sapo. Por que não acende um fósforo?
— Tenho medo de
gastar os fósforos e depois não sobrar nenhum. Devíamos ter trazido vela; o
ideal seria uma lâmpada elétrica.
— Nem fale.
Eduardo acendeu
um fósforo e os dois debruçaram-se para o chão procurando pauzinhos secos à luz
da chama; só viram mato verde e viçoso. Como fazer fogo com aquelas folhas
verdes? Henrique pediu:
— Acenda outro
fósforo.
Eduardo acendeu e
tornaram a procurar; nada. Eduardo sacudiu a mão no ar:
— Ih! Nossa
Senhora! Quase queimei o dedo. - Henrique gritou:
— Achei! Achei um
pauzinho seco. Acenda outro fósforo.
O irmão acendeu
outro; puseram as mãos em concha à volta da chama e encostaram o pauzinho seco.
Foi-se esse fósforo, mais outro e outro e nada de conseguirem pegar fogo no
pauzinho. Eduardo censurou choramingando:
— Esse. pau
estava meio verde, vamos procurar outro... Ah! Meu Deus!
Henrique
empalideceu:
— É a enchente,
Eduardo! Decerto choveu muito na cabeceira do rio. Que horror!
Henrique não
quis; disse que podiam assim gastar todos os fósforos e não conseguir fogo.
Então resolveram sentar um ao lado do outro e esperar as horas passarem.
Ficaram quietinhos esperando.
Cochilaram de
madrugada, Henrique recostado no ombro de Eduardo. Eduardo não queria dormir,
mas não suportou; de repente estendeu-se nas moitas, enrolou-se no paletó e
sentindo a cabeça do irmão encostada em seu ombro, dormiu profundamente; não
pensou mais em sapos, nem em bicho algum.
Quando acordaram,
viram o rio ali bem perto e o sol que já ia surgindo; levantaram-se e olharam à
volta. Eduardo admirou-se:
— Olhe quanta
coisa o rio vem trazendo. O que será isso?
Ambos olharam
espantados; o rio havia crescido durante a noite de uma maneira assustadora.
Estava volumoso e as águas não eram mansas como no dia anterior; eram vagalhões
pesados que passavam levando galhos enormes e outras coisas. Henrique
empalideceu:
— É a enchente,
Eduardo! Decerto choveu muito na cabeceira do rio. Que horror!
A ENCHENTE
Ficaram imóveis,
sem poder tirar os olhos do Paraíba; viram passar tábuas, sapatos, roupas, a
metade de uma cadeira, troncos de árvore e, de repente, uma cabra morta.
Eduardo estendeu o braço:
— Veja! Uma
cabra!
Voltou-se para
Henrique, pálido de susto:
— Henrique! Como
vamos voltar agora?
O irmão sacudiu
os ombros, fingindo-se corajoso:
— Pois não viemos
até aqui? Podemos voltar também. Vamos procurar a canoa já, já.
Sentiam os
membros doloridos por não terem dormido bem. Eduardo começou a andar e a mancar
dizendo que todo o corpo doía. Esqueceram-se da sede e da fome e foram à
procura da canoa; tornaram a entrar pela mata e tornaram a perder o rumo.
Henrique disse:
— Não posso mais
de tão cansado. Vamos parar um pouco!
Recostou-se a uma
árvore e passou o lenço pelo rosto; foi então que Eduardo reparou no rosto do
irmão; estava todo marcado pelos arranhões dos espinhos da véspera. Propôs
enquanto descansavam:
— Vamos comer
então.
Abriu o pacote,
distribuiu os ovos, a lingüiça, o pão; comeram sem apetite, tão preocupados
estavam. Henrique queixou-se:
— Agora sim é que
estou com sede de verdade; e meu rosto está ardendo.
— Quem sabe
encontraremos água por aqui? Vamos procurar, assim você lava o rosto.
— É melhor
procurarmos o rio, é mais garantido; vamos voltar.
Com a claridade
da manhã, logo encontraram o rio, que transbordava com a enchente. Ambos
ajoelharam-se à margem, lavaram os rostos, beberam água, mas o líquido era tão
barrento e escuro que Eduardo cuspiu-o com cara de nojo.
Durante mais de
uma hora, foram margeando o rio sem encontrar a canoa. Onde estaria? Por que
não haviam marcado bem o lugar onde a tinham deixado? Depois de terem procurado
mais um tempo ainda, avistaram-na enfim. Mas deram um grito de susto: a canoa
estava presa apenas por um fio de corda.
A correnteza do
rio era tão forte que puxava a canoa com força; a corda, que já era velha,
foi-se gastando e apenas um fio ainda resistia; as ondas volumosas espumavam à
sua volta. Henrique correu e entrou na água, colocou as duas mãos numa das
bordas da canoa e, com água acima dos joelhos começou a puxá-la para a margem.
Eduardo teve medo:
— Cuidado,
Henrique. O rio está puxando muito, pode levar você.
— Não há perigo,
venha me ajudar.
Eduardo tirou os
sapatos e as meias, arregaçou as calças e foi auxiliar Henrique. Os dois
tentavam puxar a canoa para terra, mas foi inútil; a correnteza era muito forte
nem parecia aquele rio calmo e manso de um dia antes; rugia e espumava
carregando tudo em seu caminho. Henrique gritou:
— Força, Eduardo!
Segure com força enquanto vou emendar a corda.
Começou a
procurar os . pedaços de corda que estavam dentro da água, misturados com lama
e galhos de árvore. Eduardo começou a cansar-se, falou:
— Ande depressa,
daqui a pouco não agüento mais, o rio tem uma força danada.
Henrique pediu,
suplicante:
— Espere,
Eduardo, tenha paciência. Já encontrei uma ponta, falta só emendar; se você não
agüenta, estamos perdidos. E com as mãos molhadas, procurava amarrar essa ponta
de corda na canoa; mas com a pressa, atrapalhava-se e a corda escapava-lhe das
mãos e caía na água outra vez. Eduardo gritou:
— Venha você
segurar a canoa e deixe a corda por minha conta.
— Você não
consegue.
— Consigo. Venha
segurar a canoa.
Henrique,
nervoso, tornou a prender a canoa com as duas mãos enquanto Eduardo foi tentar
amarrar a corda, mas esta estava tão velha que arrebentou duas vezes entre as
mãos de Eduardo. Henrique ficou aflito:
— Dobre a corda!
Dobre a corda em duas, senão ela arrebenta. Bem Nhô Quim disse que a corda era
velha.
Eduardo dobrou a
corda, passou pela argola da canoa c conseguiu prendê-la na margem. Com um
suspiro de alívio, Henrique correu para auxiliá-lo. Passaram a corda pelo
tronco de uma árvore próxima e amarraram fortemente. Quando terminaram o
serviço, .estavam suados e cansados. Eduardo observou:
— Você está
vermelho como uma pimenta.
— E você está
como um pimentão.
Ambos tinham
manchas rubras nas faces e na testa; principalmente Henrique. Ele sentou-se
dizendo:
— Parece que
estou com febre de tão quente...
Resolveram
esperar a enchente diminuir em vez de tentar a volta imediatamente; tinham
esperança que a enchente ficasse menos forte. Estenderam-se ali na margem
durante muito tempo, mas a enchente não diminuiu; pelo contrário, aumentou. As
águas cresceram tanto que chegaram até onde eles estavam, e o rio rugia que
dava medo.
Eles olhavam para
cima e para baixo do rio para ver se viam alguma canoa, alguma embarcação
qualquer à sua procura, mas nada viam, a não ser água e as coisas que o rio
levava na sua correnteza; viram galinhas mortas des-cendo com as penas
estufadas e um cabritinho branco. Tudo aquilo ia rolando, rolando sem parar,
misturado com água, lama e espuma.
De repente viram
uma árvore inteira que também vinha vindo em direção à ilha; ficaram tão
admirados que se levantaram para ver melhor; era uma árvore com flores amarelas
e raízes à mostra. Ela rodopiou e foi para mais longe fazendo redemoinhos,
depois a correnteza empurrou-a outra vez para o lado da ilha; nesse instante os
dois meninos deram um grito de susto: a árvore vinha em direção à canoa!!
Em dois pulos,
Henrique correu para salvar a canoa; conseguiu segurá-la com as duas mãos, mas
era tarde! A árvore passou dando voltas e arrastou a canoa para o meio do rio;
a corda era velha, não resistiu. Eduardo gemeu:
— Ah! Meu Deus!
Henrique não
disse nada; ficou mudo assistindo ao desastre; depois escondeu o rosto entre as
mãos e começou a chorar. Eduardo correu para o irmão e pôs o braço sobre o
ombro dele:
— Ora, Henrique,
havemos de dar um jeito. Garanto que a esta hora padrinho já vem em nosso
socorro. Vamos esperar.
Henrique
soluçava:
— Qual! Como pode
adivinhar que estamos na ilha? Ele nunca poderá pensar que viemos até aqui...
Como vamos voltar agora?
- Você vai ver
como se arranja tudo; vamos deixar uma fogueira acesa noite e dia; alguém há de
ver e contar ao padrinho.
Henrique enxugou
as lágrimas com a mão:
— E não temos
mais o que comer; vamos passar fome. ..
— A ilha deve ter
frutas, temos que procurar, vamos andar por aí em vez de ficarmos aqui vendo a
enchente.
Henrique ficou
mais calmo; parou de chorar e disse que estava cansado, queria ficar ali na
margem olhando o rio. Sentaram-se um ao lado do outro e ficaram calados,
pensando num possível meio de salvação. O tempo foi passando. De vez em quando
tomavam um gole de água; quando a sede apertava, esqueciam que a água era suja
e barrenta; bebiam assim mesmo. Eduardo perguntou:
— Será que vamos
passar outra noite aqui?
— Decerto vamos.
Padrinho não pensará que estamos na Ilha Perdida; ela fica muito longe da
fazenda e ele nunca há de se lembrar de nos procurar aqui.
Eduardo continuou,
resoluto:
— Então vamos
preparar um lugar para a gente dormir;, não podemos ficar muito perto do rio,
de repente as águas chegam até nós e nos levam, como levaram a canoa. Elas não
param de subir.
Com a faca e o
canivete começaram a cortar uns galhos de árvore para fazer um lugar macio a
fim de se deitarem. Depois de prepararem uma espécie de cama com folhas largas
e galhos finos, Eduardo lembrou-se de procurar alguns paus secos para fazer uma
fogueira, se fosse necessário. Entrou na mata e voltou logo depois com uma
braçada de pedaços de paus bem secos; amontoou tudo ao lado da cama fazendo uma
espécie de caieira. Depois disse:
— Se aqui
houvesse uma árvore com tronco bem grosso e largo, poderíamos dormir em cima do
tronco, como Tarzan.
Henrique deu um
suspiro:
— Ah! Mas Tarzan
estava acostumado desde criança; era como um macaco. Nós não poderíamos
agüentar. A gente caía logo.
Depois de tudo
preparado para passar a segunda noite na ilha, Henrique que parecia cada vez
mais desanimado, falou:
— Estou outra vez
com fome; será que não encontramos nada para comer?
Eduardo sorriu em
triunfo, tirando do bolso um pacotinho onde havia um ovo cozido que ele
guardara. Disse:
— Olhe, hoje de
manhã, quando vi a canoa rodar rio abaixo, guardei bem este ovo para quando
tivéssemos fome. Vamos comê-lo agora.
Sentaram-se e
devoraram o ovo, cada um a metade. Henrique perguntou:
— E a laranjada?
Também acabou?
— Acabou. Agora
não temos mais nada para comer.
Depois
inclinou-se na beira do rio, tomou uns goles de água e encheu a garrafa para
tomarem durante a noite. Henrique também bebeu água queixando-se de que ela
estava cada vez mais barrenta. Olharam o céu; as primeiras estrelas já estavam
começando a aparecer; olharam o rio durante algum tempo na esperança de que
surgisse alguma embarcação que viesse buscá-los. Nada. Somente o rio barulhento
e a segunda noite que caía sobre a Ilha Perdida.
Resignados,
resolveram deitar-se na cama improvisada: conversaram um pouco:
— Será que
padrinho nunca se lembrará de vir nos procurar aqui?
— Não sei, acho
bem difícil. Talvez Quico ou Oscar se lembrem.
— Quem sabe o
Bento vai se lembrar...
— Mesmo que se
lembrem, o rio está tão bravo com essa enchente que eles não poderão
atravessá-lo.
— Então como
faremos para voltar?
Eduardo sorriu
em triunfo, tirando do bolso um pacotinho onde havia um ovo cozido que ele
guardara.
ABANDONADOS
Ficaram
silenciosos durante uns instantes, depois Henrique teve uma idéia:
— E se fizéssemos
uma jangada? Temos a faca e o canivete, amanhã trataremos disso.
— Mas como é que
se faz uma jangada? Não tenho nenhuma idéia.
— Ora, você não
viu a figura de uma jangada nos livros? Cortam-se paus grandes para firmar a
jangada; depois, cortam-se paus mais finos para colocar por cima e amarra-se
bem firme...
— Amarrar com o
que, Henrique? Com os pedaços de corda que sobraram?
Henrique olhou à
volta, pensativo:
— Aí na inata
deve haver muito cipó; amarra-se com cipós.
Eduardo
concordou:
— Vamos tentar; o
pior é não termos nada para comer. Como é que a gente pode trabalhar com fome?
— Procuraremos
frutas. Amanhã bem cedo, assim que o sol sair, vou procurar. É impossível que
esta ilha não tenha frutas; qualquer fruta serve para matar a fome.
Eduardo
respondeu:
— E precisamos
economizar os fósforos. Não sabemos quantos dias ainda ficaremos aqui;
precisamos ter sempre fósforos para acender a fogueira. Ao mesmo tempo tenho um
pressentimento de que amanhã vamos ser salvos.
— Eu não tenho
esperança alguma, disse Henrique.
Pararam de falar
porque ouviram um ruído forte que a princípio não compreenderam o que poderia
ser. Henrique perguntou, admirado:
— Está ouvindo? O
que será? Parece barulho de motor?
— Estou, disse
Eduardo. É mesmo barulho de motor; eles vêm nos buscar numa lancha a motor. Eu
não disse que estava com pressentimento? Vai dar certo, você vai ver. Vamos
depressa fazer uma fogueira para mostrar que estamos aqui.
Levantaram-se e
apressaram-se em fazer fogo; deram gritos fortíssimos:
— Estamos aqui.
Na ilha!! Socorro!
Perderam vários
paus de fósforo antes que a madeira seca pegasse fogo. Afinal uma chamazinha
azul começou a se elevar; Eduardo deu gritos de entusiasmo:
— Agora eles vão
nos encontrar! Ponha mais pau seco, Henrique! O motor está cada vez mais perto!
Nesse momento o
ruído do motor que parecia tão próximo, passou sobre as suas cabeças. Era um
avião. Eduardo olhou para cima dizendo desanimado:
— Não é lancha, é
avião. Ele não pode nos ver. E vai indo embora tão depressa.. .
Chorou sem parar
de falar:
— E perdemos tantos
fósforos. . . Se eu soubesse, não tinha feito fogueira...
— Não faz mal,
disse Henrique. Vamos deixar a fogueirinha acesa; se alguém vê fogo na ilha,
vai contar ao padrinho e ele vem ver o que é. Não chore. Amanhã começaremos a
jangada, você vai ver.
Sentaram-se de
novo, muito tristes. Logo depois Henrique deitou-se na cama de folhas, pôs o
braço sob a cabeça como se fosse um travesseiro e dormiu. Eduardo ficou
acordado durante muito tempo, tristonho e pensativo; estava também
impressionado com a situação. Se ninguém viesse procurá-los ali poderiam
morrer, ou de fome, ou picados por alguma cobra venenosa. Devia haver muitas na
ilha; lembrando-se disso, pôs outro pau na fogueira para que nenhum animal se
aproximasse; cansado, afinal deitou-se também e dormiu.
Acordaram de
madrugada, um pouco assustados com a algazarra que muitas aves faziam nas
árvores ali por perto; algumas eram desconhecidas. Da fogueira que haviam feito
na véspera, nem sinal, apenas cinzas ainda mornas. Eduardo disse logo:
— Vamos tratar de
procurar alguma coisa para comer; não podemos ficar aqui parados.
— Estou com o
corpo todo dolorido, queixou-se Henrique. Nunca estive assim, parece que tenho
febre.
— É porque
dormimos no chão e não estamos acostumados, explicou Eduardo. Vamos andar um
pouco que isso passa. Tenho ainda um pedacinho de pão e uma «faisquinha» de
laranjada que esqueci no pacote. Vamos comer.
Henrique ficou
zangado:
— Você me
enganou, disse ontem que não tinha mais nada...
Eduardo explicou:
— Nem eu sabia,
Henrique. Fiquei tão atrapalhado que não reparei; e depois precisamos poupar
munição. ..
Tomou um
pedacinho de pão que já estava bem duro, partiu em dois, colocou sobre eles uns
fiapos de laranjada e comeram; comeram bem devagarinho. Quando terminaram,
Eduardo falou:
— Agora acabou de
verdade; não temos mais nada, temos que procurar.
Sacudiu o
guardanapo onde viera o almoço e esvaziou os bolsos para o irmão ver. Henrique
lembrou:
- Tenho uma
idéia. Vou tirar a camisa e colocá-la num pau bem alto para chamar a atenção de
quem passar na margem. Que acha?
— Boa idéia. Mas
em que pau será? Deve ser o mais alto possível.
Olharam à volta,
à procura de uma árvore bem alta; avistaram um coqueiro bem na beira do rio,
mas era tão alto que parecia muito difícil e arriscado subir nele; viram outra
árvore também na margem, Eduardo falou:
— Aquela está
ótima.
Henrique tirou a
camisa, enrolou-a no pescoço e experimentou subir na árvore, mas não conseguiu.
Depois de várias tentativas, voltou-se para o irmão:
— Não posso, meu
corpo dói tanto, veja se você consegue.
Eduardo tomou a
camisa de Henrique, e começou a subir na árvore; mais de uma vez quase
desistiu; parou para descansar e tomar fôlego. Era muito mais difícil do que
imaginava; lembrando-se, porém, de que disso talvez dependesse a salvação dos
dois, fez um esforço supremo e conseguiu chegar até a copa, junto aos últimos
galhos.
Sentou-se então
lá em cima e descansou; depois cortou alguns galhos com a faca para que aquela
parte ficasse bem à vista da margem, amarrou as mangas da camisa à volta de um
galho e deixou a fralda solta para que o vento a agitasse; depois desceu
rapidamente. Quando pôs os pés em terra, voltou-se para Henrique, a fisionomia
alegre: encontrara lá em cima um ninho com cinco ovos. Tirou-os do bolso da
calça e colocou-os no chão; eram menores que os ovos de galinha e bem
pintadinhos. Eduardo falou, satisfeito:
— Hoje não
passaremos fome; temos ovos para comer.
Henrique
admirou-se:
— Ovos de quê?
— Não sei; só sei
que são ovos e alimentam. Não gosto de desmanchar ninhos, acho isso um ato
horrível, mas como é para matar nossa fome, não hesitei. Serão ovos de sabiá?
Henrique
examinou-os:
— Pode ser que
sejam de sabiá; são bem bonitinhos. Mas também podem ser estragados. Xi!, Eduardo,
vai ver que é ovo choco.
— Será? Daqui a
pouco vamos ver, quero fazer uma fritada.
— Fritada onde?
Em que frigideira? Para fritar ovos é preciso uma frigideira...
Só então Eduardo
lembrou-se de que não havia jeito de fritar os ovos. Ficou olhando para
Henrique, de repente sugeriu:
— E se a gente
arranjasse um pedaço de madeira tão dura como ferro e que resistisse ao fogo?
— Onde encontrar
essa madeira? Impossível.
Eduardo coçou a
cabeça tristemente:
— Ora, se
soubesse, não teria desmanchado o ninho. Que pena.
— Vamos procurar
alguma fruta, isso sim.
Antes de penetrar
na mata, olharam para cima; a camisa de Henrique estava desfraldada e o vento a
agitava como se fosse uma bandeira. Colocaram os ovos no chão e entraram na
mata, resolvidos a procurar algum alimento.
O dia estava
muito bonito e o sol prometia esquentar mais tarde; a passarada fazia alvoroço
nas árvores mais altas. Para não se perderem como no primeiro dia, foram
cortando paus e fincando-os pelo caminho para saberem voltar quando quisessem.
Andaram durante muito tempo sem encontrar nada. Henrique de vez em quando
queixava-se de canseira e de fome. Eduardo examinava todas as árvores
procurando alguma fruta, mas nada encontrava.
Assim andando,
chegaram ao outro lado da ilha; nesse lugar havia uma espécie de praia e a
areia estava cheia de objetos trazidos pela enchente durante a noite. Viram um
sapato de criança, pedaços de madeira, uma garrafa. Henrique lembrou:
— Quem sabe há
até uma frigideira para fritar os ovos? Procure bem, Eduardo.
Eduardo que se
afastara um pouco, chamou Henrique com um grito:
— Venha!
Depressa!
Mancando um pouco
Henrique correu para perto de Eduardo; ali ao lado do irmão erguia-se uma
bananeira. Henrique olhou esperançoso, mas que desilusão — não havia cachos de
bananas, a árvore era muito nova.
— Deve haver
outras, disse Eduardo. Vamos procurar.
Andaram cerca de
meia hora pela prainha e encontraram mais adiante um cacho de bananas ainda
verdes. Eduardo riu com satisfação:
— De fome não morreremos.
Ao menos comeremos bananas.
Henrique tirou o
canivete do bolso e auxiliado por Eduardo derrubou o cacho; eram grandes e
pareciam gostosas, mas estavam ainda verdes.
— Eu como assim
mesmo, disse Eduardo. Tenho muita fome...
Comeram algumas
no mesmo instante e as acharam deliciosas; resolveram levar as bananas com todo
cuidado para o abrigo improvisado no outro lado da ilha. Descansaram um pouco
sobre a areia e batizaram aquela parte da ilha com o nome de — prainha. De
repente Eduardo foi ficando pálido e pôs a mão no estômago; fez uma careta:
— Ih! Henrique,
acho que estou doente. Estou sentindo umas dores no estômago...
Henrique
queixou-se:
— Eu também não
estou muito bem, acho que foram as bananas. Quem sabe, bebendo-se água, passa.
Tomaram uns goles
de água e ficaram deitados na areia uma porção de tempo. Quando se sentiram
melhor, Eduardo propôs ficarem morando na prainha enquanto não viesse socorro;
assim como haviam encontrado a bananeira, talvez houvesse outras frutas. Ali
mesmo poderiam fazer a jangada que projetavam. Henrique concordou, mas nesse
dia ainda dormiriam no outro lado, porque lá haviam ficado os ovos e o pedaço
de corda que sobrara da canoa.
Para não perder
tempo começaram a trabalhar na jangada; ambos haviam lido num livro de que
forma se faz uma jangada. Cortariam primeiro uns paus mais grossos para fazer a
armação; os paus menores seriam postos em cima e amarrados com cipós. Passaram
o dia todo e não conseguiram cortar nem um pau, embora manejassem, um o
canivete, outro a faca. Quando perceberam, o dia estava declinando. Eduardo
propôs atravessar a ilha sozinho e ir buscar os ovos e a corda que haviam
ficado no outro lado. Henrique perguntou:
— E se você se
perder? Será muito pior.
— Não há perigo.
Deixei todo o caminho marcado; fica nesta direção, olhe. Você está mancando e
com dor no corpo, eu vou num instante.
— Mas você teve
dor de estômago, falou Henrique.
— Agora já estou
bom.
Eduardo sentiu
vontade de comer mais bananas, mas receou que fizessem mal; bebeu uns goles de
água e entrou sozinho na mata prometendo voltar logo. Henrique continuou a
procurar paus para a jangada.
A ILHA TINHA
HABITANTES
De vez em quando
Henrique assobiava para disfarçar a solidão. Arrependia-se de haver deixado o
irmão ir só; desde que haviam desembarcado na ilha, só haviam cometido erros. E
se Eduardo se perdesse? Quando sentiu a fome apertar, comeu outra banana e
deitou-se para descansar. Sentia-se cansadíssimo. Fechou os olhos um instante,
depois abriu-os novamente e, deitado de costas, ficou olhando o céu.
De repente
percebeu uma sombra que se aproximava; voltou-se de lado pensando que era o
irmão e já ia perguntar: «Já voltou?», quando viu um homem desconhecido diante
dele; tinha barbas compridas, cabelos pelos ombros, estava quase nu. Sobre seu
ombro esquerdo carregava um lindo papagaio que olhava fixamente para Henrique.
O homem também
olhava Henrique sem dizer nada. Espantadíssimo, Henrique também não falava,
parecia mudo. De súbito, o homem perguntou:
— O que está
fazendo aqui? Não sabe que esta ilha é minha?
Henrique
levantou-se um pouco amedrontado:
— Não sabia, não
senhor.
O homem deu uma
volta examinando o menino, depois continuou a falar:
— Vivo nesta ilha
há muitos anos e não gosto de ser importunado; todos os que vêm aqui, vêm por
maldade: para caçar os bichos que são meus amigos. Eu não gosto disso.
— Eu não vim para
caçar, disse Henrique. Viemos passear aqui e a nossa canoa rodou rio abaixo.
Agora não podemos voltar, estamos fazendo uma jangada para voltarmos. Eu e meu
irmão Eduardo. O senhor pode nos ajudar?
O homem sacudiu a
cabeça:
— Não acredito em
nada do que você está dizendo. Vocês vieram aqui para me espiar, para descobrir
minha vida. Pois não terão esse gosto; quem vem por curiosidade fica meu
prisioneiro. Acompanhe-me.
Um pouco
assustado, Henrique ficou parado na frente dele; depois murmurou:
— Nós não viemos
por curiosidade; nenhum de nós acreditava que a ilha fosse habitada. Pode
acreditar no que estou dizendo. Meu irmão e eu viemos passear aqui e pretendíamos
voltar no mesmo dia quando veio a enchente. Não pudemos voltar e ficamos
esperando a enchente passar; nossa canoa rodou, não pudemos voltar. O senhor
desculpe, mas precisamos ir embora para nossa casa.
O homem sorriu e
coçou a barba comprida. O papagaio gritou:
— Vamos embora,
Simão!
O homem passou a
mão nas penas do papagaio:
— Quieto, Boni.
Depois falou para
Henrique:
— Voltar de que
jeito? Você pensa que quem chega até aqui consegue voltar? Está muito enganado,
quem vem parar aqui, fica. Acompanhe-me.
Henrique hesitou:
— E o meu irmão
Eduardo? O senhor não pode esperar um pouquinho? Ele foi ao outro lado da ilha
buscar umas coisas que deixamos lá... Se ele não me encontrar aqui, ficará
assustado.
A voz de Henrique
estava trêmula; o homem respondeu, meio zangado:
— Deixe de
lamúrias e venha comigo. Por que vieram? Isto aqui é meu e ninguém tem direito
de tomar o que é meu. Venha.
O homem bateu no
peito; Henrique resolveu insistir para mostrar que não tinha medo:
— Faça o favor de
esperar Eduardo. Ele não demora, disse que vinha logo...
O homem não
deixou Henrique continuar; zangou-se e respondeu:
— Menino teimoso
e desobediente. Cale-se. Não diga uma palavra mais. E acompanhe-me bem
direitinho, se não vai se arrepender.
O homem começou a
andar pela areia; humildemente, Henrique acompanhou-o; sentia dor nos pés e na
cabeça. Foi mancando atrás do homem que andava depressa; olhou para trás com
pena de deixar a jangada já começada. Entraram pela mata adentro.
Henrique teve a
idéia de deixar algum sinal para Eduardo saber o que acontecera, mas não havia
nada que pudesse fazer. Então espetou o canivete numa árvore pequena na entrada
da mata. Eduardo havia de descobrir o canivete enterrado ali e. havia de
desconfiar, quem sabe até seguiria o mesmo caminho.
O papagaio
começou a cantarolar sobre o ombro do homem; de vez em quando olhava para trás
para ver se Henrique vinha seguindo. Andaram em silêncio durante algum tempo;
os galhos das árvores batiam no rosto de Henrique e ele nem sentia; percebeu
que estava escurecendo e logo seria noite fechada.
Com surpresa
Henrique viu de repente um caminho sem arbustos, sem cipós, sem árvores; era
uma pequena estrada bem limpa, sem nada que atrapalhasse os caminhantes. Pensou
que Eduardo e ele haviam andado tanto através da ilha e não tinham descoberto
aquela bonita estrada.
O homem caminhava
na frente, sem olhar para os lados e sem falar; dava passos largos como se
estivesse muito acostumado a andar por ali. Nesse momento Henrique reparou que
ele carregava uma machadinha na cintura.
Chegaram ao fim
da estrada; com surpresa, Henrique viu na frente deles uma escadinha de pedra,
mas tão escondida entre a folhagem que seria difícil ou quase impossível
descobri-la. O homem levantou a folhagem com os braços compridos e, depois que
Henrique começou a subir, deixou cair a folhagem novamente e nada mais se viu
da escada. Subiram uns degraus até chegar à outra parte da ilha, muito mais
elevada que a primeira. Ali devia ser a habitação do homem barbudo; havia árvores
pequenas cheias de flores azuis e roxas, papagaios, periquitos, macacos. Era
bem a ilha que Henrique imaginara. A bicharada começou a fazer barulho ao ver o
homem, mas ele levantou um braço pedindo que ficassem quietos e tudo se
aquietou.
Então Henrique
viu uma espécie de gruta de pedra em cima de um barranco; ao lado do barranco,
duas árvores gigantes. Uma outra escada de quatro degraus, feita de cipós e
tábuas, conduzia à porta da caverna. Quando Henrique levantou os olhos para a
morada do homem, ficou branco de susto: deitada na entrada da gruta, uma
oncinha pintada lambia as patas. Era pequena, mais parecia um gato enorme;
tinha olhos amarelados, o pêlo brilhante todo cheio de pintas amarelas e
bigodes de fios compridos e pretos. Quando viu Henrique passar ao lado, ela
levantou-se com o pêlo eriçado e assoprou como um gato quando está bravo:
ufffff ufffff... Mas o homem falou umas palavras que Henrique não compreendeu e
ela acalmou-se. Tornou a deitar-se e a lamber as patas.
* * *
Entraram na caverna.
Era bem grande e forrada de areia clara; sobre a areia havia peles de animais e
folhas secas; de um lado estava a cama do homem; era feita de tiras de couro
trançadas e presas nos paus da cama. Sobre as tiras, estavam estendidas peles
de animais servindo de colchão e uma espécie de manta feita de penas coloridas
de aves.
Nas paredes da
gruta, viam-se penas, plantas, armas feitas de pedra. Henrique olhava tudo,
mudo de admiração. A oncinha deu umas voltas pela gruta, depois deitou--se na
entrada como se fora um cão de guarda
— E o senhor
mora nesta ilha desde moço?
— Desde que eu
tinha vinte e poucos anos.
O homem disse a
Henrique que se deitasse sobre um colchão de penas de aves; não era
propriamente um colchão, mais parecia uma colcha multicor. Henrique estava tão
cansado que obedeceu imediatamente; deitou-se e sentiu-se melhor. O homem
ofereceu-lhe uma bebida numa caneca feita de madeira; Henrique tomou uns goles
e sentiu um gosto amargo. Devia ser feita de frutas ou folhas fermentadas; mas
sentiu um grande bem-estar e cerrou os olhos.
Quando os abriu,
viu o homem andando de um lado para outro, preparando o jantar; só então
Henrique percebeu que já era noite e havia uma lanterna no canto mais escuro da
caverna. Era uma luzinha fraca, mas iluminava tudo muito bem. Vendo a chama
avermelhada numa vasilha de ferro, Henrique não pôde deixar de perguntar:
— Que espécie de
óleo o senhor usa na lâmpada?
— Óleo de
capivara, respondeu o homem mexendo a comida no fogãozinho.
— E o senhor mora
nesta ilha desde moço?
— Desde que eu
tinha vinte e poucos anos.
Henrique queria
conversar mais e saber uma porção de coisas, mas o homem barbudo não queria
conversa. Henrique ficou meio deitado olhando a luz que o vento fazia oscilar;
um ventinho fraco penetrava pela porta da gruta. Depois Henrique perguntou:
— E mora sozinho
aqui?
— Tenho vários
companheiros, não está vendo? Estão sempre comigo.
Só então Henrique
reparou nos outros animais que estavam na caverna: uma tartaruga, uma coruja
com olhos muito abertos e redondos e um morcego que começou a andar de um lado
para outro arrastando as asas enormes. A coruja e o morcego estavam se
preparando para sair; dormiam durante o dia e, à noite, enquanto os outros
animais dormiam, eles saíam para percorrer a ilha.
HENRIQUE PENSA
QUE ESTÁ SONHANDO
Nesse mesmo
instante Henrique ouviu gritos agudos do lado de fora da gruta; eram uma
espécie de guinchos. O homem que estava quebrando ovos numa lata, nem se
perturbou. Assustado, Henrique olhou para a entrada de pedra e quase deu um
grito de espanto: cinco micos entraram um atrás do outro, dando guinchos e
piscando os olhinhos muito vivos; ao mesmo tempo mostravam ao homem o que
haviam trazido. Alguns deles carregavam um ovo em cada mão e outro enrolado na
ponta da cauda; outros traziam frutas apertadas nas mãozinhas negras. Eram
maracujás, mas Henrique nunca os vira tão grandes assim.
O homem falou com
os micos mostrando-se muito satisfeito e tudo o que eles haviam trazido foi
depositado numa cesta feita de cipó. Depois foram para o outro lado, onde havia
um grande cacho de bananas maduras e começaram a comê-las, uma atrás da outra.
Em seguida aproximaram-se de Henrique cheios de curiosidade por vê-lo ali, e
começaram a examiná-lo; um estendeu a mão com muito cuidado e apertou o braço
de Henrique, outro cheirou-lhe a cabeça, depois arrancou-lhe uns fios de cabelo
e examinou-os bem de perto. Outro ainda sentou-se aos pés de Henrique e
inclinando-se começou a olhar-lhe os sapatos com muita atenção.
Henrique achou
graça; os miquinhos eram mesmo engraçadíssimos; mas depois foram tomando tal
confiança que um deles sentou-se na barriga do menino e começou a dar pulinhos,
outro coçou o nariz de Henrique com uma força danada. Henrique pensou: «Nossa
Senhora, ele vai esfolar meu nariz».
Foi então que o
homem voltou-se e deu um grito com os micos:
— Um! Dois! Três!
Quatro! Cinco! Deixem o menino!
Como se fossem
crianças peraltas, os micos largaram a brincadeira e amontoaram-se num dos
cantos da gruta, um coçando a cabeça do outro e piscando para Henrique. Ele riu
e perguntou ao homem barbudo:
— Eles se chamam
Um-Dois-Três-Quatro-Cinco? Que nomes engraçados!
O homem voltou-se
para Henrique e disse meio sorrindo:
— Eu não sabia
como havia de chamá-los quando os encontrei; estavam meio mortos de fome, a mãe
tinha morrido. Contei várias vezes. Um-Dois-Três-Quatro-Cinco e resolvi
chamá-los assim. Boni também sabe chamá-los.
— Boni é o
papagaio? perguntou Henrique.
— É.
Nesse instante a
oncinha entrou muito silenciosamente, pegou um grande osso e começou a roê-lo,
apertando-o entre as patas. O homem apresentou a Henrique uma folha larga que
servia de prato; sobre ela havia um mexido de ovos e carne que Henrique comeu
com a mão; não havia garfos, nem colher. Achou a comida deliciosa e estava
curioso por saber que espécie de carne seria aquela, mas não teve coragem de
perguntar. Os bichos todos olhavam para ele, pois era um estranho ali. Para
mostrar que não tinha medo, Henrique levantou-se, tomou um pouco de água que
havia num canto dentro dum pote de madeira, depois deitou-se de novo; ainda se
sentia cansado.
O homem
ofereceu-lhe frutas e mel numa outra folha; ele aceitou e agradeceu outra vez.
Achou tudo muito bom, pois estava faminto. Assim que acabaram a refeição, a
coruja bateu as asas e voou para fora; o morcego saiu silenciosamente e
desapareceu. A oncinha acabou de roer o osso, espreguiçou-se, lambeu-se toda,
passou mais de uma vez pelas pernas do homem como se fosse um gato e deixou a gruta,
saindo pela noite afora em busca de caça.
O homem apagou a
lâmpada e disse a Henrique:
— Trate de
dormir; talvez estranhe a cama, mas é só isso que posso oferecer. Boa noite.
— Está tudo muito
bom, respondeu Henrique. Nunca pensei encontrar nesta ilha uma morada tão
interessante e tão boa como a sua. Aqui o senhor tem tudo: cama fofa, comida
boa, animais amigos da gente. Muito obrigado por tudo. Boa noite.
Os micos ficaram
juntinhos um ao lado do outro e prepararam-se para dormir; só a tartaruga ficou
acordada na entrada da caverna; o papagaio, que estivera andando o tempo todo
pela gruta e comera alguma fruta, ficou quieto num canto. Resmungou qualquer
coisa e dormiu.
O homem deitou-se
no leito de couro e penas e começou a ressonar. Henrique preparou-se também
para dormir; nesse momento sentiu o coração apertar-se de tristeza: onde
estaria Eduardo? Que pensaria ele não o encontrando na prainha? E os padrinhos?
E os pais em São Paulo sem saber de nada? È aquele homem barbudo que o tinha
prisioneiro e quase não falava? O que seria dele ali prisioneiro? Até quando
ficaria na caverna? Era preciso fugir, sim, fugiria. Na noite seguinte, sairia
da caverna enquanto estivessem dormindo e acharia o caminho da prainha.
Não podia ficar
sempre na gruta. Impossível. Sentia um vento fresco que entrava pela porta da
caverna; voltou-se na cama várias vezes antes de dormir; apalpou as penas,
apalpou a cama também. Estaria sonhando? Sim, devia estar sonhando. Parecia
impossível que naquela ilha tão perto da fazenda, vivesse um homem solitário
numa caverna e rodeado de bichos. Estava so-nhando; tudo aquilo era sonho e no
dia seguinte tudo seria diferente. Pensando assim, Henrique dormiu.
A ESTRANHA
VIDA DO HOMEM BARBUDO
ACORDOU no dia
seguinte com um chilrear incessante de pássaros na entrada da gruta; deviam ser
milhares. Olhou à volta e admirou-se; estava sozinho. Levantou-se ainda com o
corpo todo dolorido, desceu a escapa de cipó e saiu. No planalto que havia na
frente da caverna, uma centena de pássaros de todas as cores rodeava o homem
barbudo; uns sobre os ombros, outros sobre a cabeça, outros ainda passeando
pelos braços estendidos do homem. Quando viram Henrique, assustaram-se e voaram
para as árvores próximas, onde continuaram a chilrear e a cantar. Henrique
nunca vira espetáculo tão bonito.
Agora, à luz do
dia, admirava-se de tudo, pois, na tarde anterior estava tão assustado que não
pudera observar bem a morada do homem. A gruta era imensa; uma espécie de
caverna de pedra oculta pelas árvores e arbustos; por mais que se olhasse, não
se descobria a entrada da gruta.
De um lado desse
planalto, havia uma inclinação do terreno que levava a um lago pequeno com água
cristalina e azulada. Lá estava a tartaruga tomando banho na beira do lago; ela
mergulhava e tornava a aparecer, o pescoção fora da água.
Extasiado,
Henrique não sabia o que,mais admirar quando o homem se aproximou oferecendo
frutas; eram mamões pequenos e avermelhados. Henrique não gostava de mamão, ia
recusá-los quando resolveu o contrário, pois lá não havia café com leite e pão.
O mamão era tão doce que parecia açucarado; Henrique comeu dois num abrir e
fechar de olhos, dizendo que nunca apreciara mamões, mas aqueles eram
gostosíssimos.
Um-Dois-Três-Quatro-Cinco
rodeavam o homem como se esperassem ordens; de repente ele estendeu o braço
para uma parte da ilha, falando:
— Vão ver se os
cocos estão maduros; se estiverem, tragam todos.
Os micos eram bem
pretos, tinham as cinturinhas finas, caudas longas e peludas. Deram grunhidos
de satisfação ao ouvir as palavras do homem e logo pularam para a árvore maior
que havia ali dando gritinhos agudos. Henrique olhou para vê-los melhor mas não
viu nem sinal dos micos, já haviam desaparecido entre a folhagem. Perguntou:
— O senhor
ensinou esses micos?
- Ensinei-os
desde pequenos, respondeu o homem. São meus amigos; como disse ontem,
encontrei-os sozinhos na floresta. Trouxe-os comigo e os domestiquei; chamo
cada um por um número.
— Que engraçado!
E a oncinha?
— Também a
encontrei ainda pequena; tinha uns quinze dias quando a salvei da morte;
trouxe-a para aqui e criei-a. Nunca mais quis me deixar. Vive na gruta.
Henrique não pôde
deixar de perguntar:
— E há mais onças
na ilha?
— Não. Nunca
encontrei nenhuma; sei que há onças nas florestas ao longo do rio, mas aqui
não. E se houvesse onças aqui na ilha,- não fariam mal algum. Elas temem os
homens civilizados. Eu sou igual aos animais; vivo como eles vivem e não os
ataco. Todos me conhecem.
Henrique hesitou
um pouco, depois disse:
— Ontem ao jantar
o senhor me deu carne para comer. Que carne era?
— Carne de
capivara; tenho um cercado onde crio algumas para comer; a carne parece um
pouco com carne de porco. E também tiro o óleo que me serve muito. As únicas
carnes que como são a de peixe e a de capivara de vez em quando. Já me
acostumei só com frutas, ovos e legumes.
Nesse momento um
lindo veado apareceu no planalto; quando viu Henrique, parou hesitante. Mas o
homem sorriu para ele chamando:
— Venha, Lucas.
Não tenha medo.
O veado
aproximou-se e o homem cocou-lhe a cabeça durante uns minutos. Depois perguntou
virando-se para Henrique:
— Como é seu
nome?
— Meu nome é
Henrique; tenho um irmão chamado Eduardo que está também na ilha. Deve estar
aflito sem saber onde estou. Coitado!
O homem não
respondeu e convidou Henrique para dar uma volta. Foram os três: o veado Lucas
também.
A todo momento
Henrique sentia verdadeira admiração pelo homem barbudo. Viu um pequeno pomar
escondido no meio da mata atrás da caverna. Havia mamoeiros de um metro e pouco
de altura carregados de mamões ma-duros, laranjeiras cobertas de laranjas
amarelas; viu figueiras, bananeiras, pessegueiros, macieiras. Depois do lago
onde o homem tomava banho, a água corria para uma pequena horta, onde havia batata-doce,
abóbora, cará, mandioca. Chegaram ao cercado onde as capivaras moravam; eram
parecidas com porcos.
Mais adiante,
aparecia o rio e nesse lugar o homem pescava duas ou três vezes por semana.
Voltaram por outro caminho, onde Henrique viu grotas, pedras enormes e
nascentes de água pura entre pedrinhas e flores.
E por toda a
parte havia pássaros, macacos, veados, papagaios; quando eles passavam, uns
pulavam de contentamento, outros gritavam; os papagaios falavam:
- Bom dia, Simão!
Bom dia, Lucas!
Boní saltou do
meio dos companheiros e foi para o ombro de Simão. O homem acariciou-lhe a
cabecinha e o papagaio fechou os olhos, satisfeito.
Henrique estava
cada vez mais admirado; de repente, não se conteve:
— O senhor também
ensinou o papagaio?
— Boni? Vive
comigo há muitos anos. Dei-lhe o nome de Bonifácio, mas como esse nome é muito
comprido, digo apenas — Boni. É um bom amigo. Dorme na gruta e de manhã bem
cedo vem brincar com os companheiros nas árvores do pomar.
Henrique sorriu a
uma idéia:
— Então o senhor
vive como Tarzan... Não ouviu falar de Tarzan?
O homem barbudo
ficou curioso por saber a história de Tarzan; então sentaram-se numa pedra, à
sombra de uma figueira enorme e Henrique contou tudo que lera a respeito de
Tarzan. Simão escutou achando graça; mas as vidas de ambos não eram iguais.
Tarzan vivia na floresta e não conhecia outra vida; ele abandonara a vida
civilizada e fora viver na floresta porque queria. Era dife-rente.
Levantaram-se e ele convidou Henrique para voltar, pois era hora do almoço.
O veado Lucas
encostou o focinho na perna do homem como se se despedisse e, num salto muito
ágil, desapareceu na floresta. Simão falou:
— Pode me chamar
de Simão e não precisa dizer senhor. Henrique perguntou:
— Lucas foi
embora? Não volta mais?
— Amanhã ele
volta outra vez; visita-me todos os dias. É outro bom amigo.
Ao chegar ao
planalto ouviram uma algazarra; eram os micos que haviam voltado da excursão em
busca dos cocos; cada um trazia vários cocos numa cestinha a tiracolo. Entraram
na caverna para guardá-los e tornaram a sair dando guinchos alegres. Simão
propôs:
— Henrique, vamos
subir na árvore para inspecionar.
Os micos subiram
antes e Simão subiu atrás deles; Henrique não conseguiu chegar aos galhos mais
altos; ficou olhando de baixo e pensando: «Agora estava bom para fugir,
enquanto eles estão lá em cima. Vou descer e procurar Eduardo, eles não me
pegam mais».
Num instante
estava embaixo da árvore outra vez; olhou para cima, não se via nada, o homem e
os micos haviam desaparecido, pois a árvore era altíssima.
Henrique olhou à
volta pensando que estava só, mas não estava. Ao dar os primeiros passos em
direção à floresta, viu a oncinha; ela estava deitada num galho baixo de árvore
e olhava Henrique com olhos vigilantes. Henrique teve a certeza de que se
começasse a correr, a oncinha havia de persegui-lo. Sentou-se no chão e esperou
outra oportunidade.
Logo mais
desceram os micos e Simão; haviam olhado à volta da ilha, como faziam várias
vezes por dia e nada haviam visto, a não ser o rio e a floresta das margens.
Era uma inspeção que faziam todos os dias para ver se algum importuno
desembarcava naquele lugar que era só deles. Assim vigiavam sempre os arredores
da ilha.
Simão desceu,
abriu os cocos com a machadinha e foi para dentro da caverna preparar o almoço;
Henrique acompanhou-o. Só então observou que havia uma espécie de forno num
canto da caverna; era feito de barro. Ali Simão preparava a comida e, durante o
inverno, o forno ficava sempre aceso com bastante fogo para aquecer a gruta.
Henrique perguntou se fazia frio na ilha.
— Às vezes,
respondeu Simão. Nos dias muito frios, a caverna fica cheia de bichos que vêm
se aquecer aqui.
— Deve ser
engraçado, disse Henrique.
— Já estou tão
acostumado que nem reparo, disse Simão.
Henrique procurou
a chaminé. Simão mostrou-a, estava atrás, entre as pedras e era tão boa que
levava toda a fumaça para fora.
Como na véspera à
noite, Simão preparou num instante a comida para ambos: batata-doce com pedaços
de coco triturados entre duas pedras próprias para isso. Como sobremesa,
maracujás dos grandes. Henrique perguntou:
— Simão, quem
plantou todas essas frutas na ilha? Ele respondeu:
— Algumas são
nativas daqui, outras eu trouxe quando vim.
Henrique tornou a
perguntar:
— Quando o senhor
veio para cá, veio para ficar?
— Vim para ficar.
Não me chame de senhor.
— E não gosta das
cidades?
— Não. Prefiro
viver nas florestas, ser livre, fazer o que quiser. Sou muito esquisito.
Henrique olhava
para ele achando-o extraordinário; tornou a perguntar:
— E não se
importa em viver sem falar com ninguém?
— Não. Sempre
gostei de falar pouco; e aqui falo com meus companheiros. São excelentes porque
não respondem e estão sempre contentes.
Foram
interrompidos por gritos estranhos vindos da floresta; Simão foi olhar pela
abertura da gruta enquanto o coração de Henrique deu um salto no peito: não
seria Eduardo? Devia ser Eduardo que descobrira o caminho da caverna.
Não era. Era um
bando de macacos trazendo um macaquinho doente para Simão curar. Foi uma das
coisas mais extraordinárias que Henrique viu naquela ilha; todos os macacos
ficaram à volta da gruta e com gestos e guinchos mostravam o doente a Simão. O
doente era um pouco maior que os outros e estava com uma perna quebrada.
Simão examinou-o
muito bem, depois fez duas talas de madeira fina e colocou-as na perna do
animal; em seguida deu uma bebida para o doente tomar; ele bebeu o remédio
fazendo caretas horríveis e cuspindo. A macacada olhava em silêncio o trabalho
de Simão; quando terminou, ele fez um gesto dizendo que podiam ir embora. O
bando dispersou-se num instante entre os galhos das árvores; o doente foi
coxeando atrás de todos. Henrique perguntou:
— O senhor também
é médico deles?
— Faço o que
posso, respondeu Simão. Curo aqueles que posso curar; eles sabem disso, por
isso vêm me contar tudo o que acontece e pedir socorro. Tenho curado aves,
veados, e outros bichos que aparecem. Uma vez também estive doente, com muita
febre, e todos eles vieram me visitar como se quisessem fazer alguma coisa por
mim. Os micos davam-me água para beber, Boni trazia frutas, todos me trataram
um pouquinho. A oncinha não me largava dia e noite.
Henrique
sentia-se cada dia mais admirado. Nunca pensou que existissem homens como
Simão.
NO MUNDO DA
MACACADA
Henrique estava
vivendo uma vida tão estranha que às vezes parecia sonho. Acompanhava Simão
todas as manhãs ao banho no lago, depois iam pescar. Às vezes trabalhavam na
horta ou limpavam o pomar, sempre juntos. O veado Lucas aparecia quase todos os
dias, muitas vezes acompanhado por mais dois ou três companheiros. A oncinha
vivia na caverna como se fosse um gato numa casa; dormia durante o dia e saía à
noite para caçar. Lambia as patas e o pêlo, passava as patas na cara como se a
lavasse, deitava-se de barriga para cima e muitas vezes brincava com os micos.
Henrique já
estava acostumado com todos os habitantes: a coruja, o morcego de asas
compridas, a tartaruga, e com Um-Dois-Três-Quatro-Cinco.
Brincava durante
horas com os miquinhos e já estava aprendendo a pular de um galho a outro com a
maior facilidade. Era bem tratado e não tinha de que se queixar, pois todos
eram bons para ele. Apesar disso, pensava sempre em fugir. Onde estaria seu
irmão Eduardo? E os padrinhos? Como poderia viver sempre ali com Simão e os
bichos? Não era possível. Tinha de dar um jeito e fugir; pensava todas as
noites em planos de fuga.
Dias depois
apareceu o macaco que havia quebrado a perna; apareceu com mais dois
companheiros e trouxe cocos para os habitantes da caverna. Simão examinou a
perna e tirou as talas; ele já estava bom, mas ainda mancava.
O macaco estava
contente; saltava e dava guinchos como se quisesse exprimir seu agradecimento.
Com a machadinha,
Simão abriu os cocos e deu um para Henrique; ali mesmo tomaram a água de coco,
que estava saborosa.
Em seguida os
macacos convidaram Henrique para um passeio na floresta; com os braços
estendidos, mostravam a mata repetidas vezes, depois andavam um pouco em direção
a ela e voltavam outra vez; seguravam a mão de Henrique e tentavam arrastá-lo.
Ele hesitou, Simão permitiria?
Henrique
sentiu nesse momento o coração apertar-se de tristeza:
Onde estaria
Eduardo?
No mesmo
instante, Simão disse que ele podia ir. Henrique pensou na fuga; apresentava-se
agora uma ótima ocasião para fugir. Resolveu acompanhar os macacos; o macaco
que Simão curara, ia dando pulos pelo chão; às vezes saltava nos galhos baixos,
estava sempre ao lado de Henrique; os outros haviam desaparecido nas árvores;
iam pulando de galho em galho.
Andaram assim
durante umas horas pelo meio da mata; Henrique olhava de um lado para outro
procurando sinais de Eduardo. O irmão não teria passado por ali? E pensava na
prainha; Eduardo devia estar na prainha esperando-o. Pensou em abandonar o
macaco de perna quebrada e fugir, mas o «perna quebrada» não o deixava um
minuto; às vezes subia rapidamente numa árvore, colhia uma fruta e a trazia
para Henrique; apanhava algumas que Henrique não conhecia e nunca havia comido.
Henrique saboreava a fruta e continuava a andar; assim caminhando, chegaram ao
lugar mais sombrio da mata.
Henrique deu uns
passos para o lado contrário tentando enganar o «perna quebrada», mas este
estava alerta; correu, pegou a mão de Henrique e puxou-o para outro lado.
De repente
pararam; o «perna quebrada» ficou à escuta como se ouvisse qualquer coisa;
Henrique ouviu um zunzum como se ali perto houvesse uma reunião de pessoas, mas
os ruídos eram estranhos e ele ficou sem compreender. Escutaram durante uns
segundos, depois viram um dos macacos descer de uma árvore próxima e fazer
sinal para que o acompanhassem.
Silenciosamente,
caminharam no meio da folhagem que nesse lugar era muito cerrada e Henrique
percebeu que estavam cada vez mais próximos do tal barulho. De súbito pararam e
olharam para cima: numa árvore gigante que havia ali ao lado, Henrique viu uma
porção de macacos sentados, alguns entre os galhos, outros de pé em atitude
zangada, outros em atitude humilde.
Os companheiros
convidaram Henrique a subir numa árvore ao lado, como se fossem assistir a um
espetáculo. Henrique, que só usava um calçãozinho para facilitar os movimentos
e estava cada dia mais perito nesse exercício, subiu agilmente. Sentou-se num
dos galhos mais altos acompanhado pelo «perna quebrada» e os outros dois.
Olhou a cena:
diante dele, na árvore gigante, havia uma reunião de macacos. Seriam uns trinta
ou mais, alguns ainda moços, outros com cara de velhos, sonolentos; uns
quietos, outros confabulando com os vizinhos. Henrique pensou: «O que será
isso? Parece que eles também têm juizes e vão julgar algum criminoso. Que
será?»
Percebeu quase
imediatamente que era uma espécie de júri no qual estavam julgando quatro
macaquinhos que haviam cometido um erro qualquer.
Henrique
arregalou os olhos de espanto; achou tudo tão interessante que se esqueceu de
fugir. Os quatro culpados estavam juntos, um ao lado do outro, num galho do
meio; olhavam para o chão, envergonhados e arrependidos. Em outro galho
comprido estavam as testemunhas; eram umas vinte. Às vezes, quando interpeladas
por meio de gestos e guinchos, ficavam de pé e acusavam os culpados apontando
os braços e guinchando.
O macaco mais
velho, que parecia o juiz, tinha pêlos brancos na cabeça e no queixo; estava ao
lado de mais dois macacos velhos, todos sentados confortavelmente num galho
grosso.
Os outros
macacos, espalhados pela galharia, eram os assistentes; às vezes faziam sinais
entre si e davam saltinhos no mesmo lugar, manifestando entusiasmo.
Com a máxima atenção,
Henrique olhava, admirado. Em certo momento, uma das testemunhas começou a
falar; saltou para o chão, enrolou uma fruta na ponta da cauda, voltou para o
galho e mostrou-a para toda a assistência virando-se para todos os lados; a
assistência, silenciosa, olhava a fruta, causa do julgamento: era um maracujá.
Os culpados
baixaram mais as cabeças; Henrique percebeu que o crime fora roubo. Eles, com
certeza, haviam roubado frutas de algum companheiro. Quando a testemunha parou
de mostrar a fruta e fazer gestos e depositou o maracujá no chão, Henrique viu
um monte de maracujás, mangas e jataís. Os jataís eram enormes e eram chamados,
na ilha, de «pao-de-ló-de mico».
O roubo havia
sido grande. Um macaquinho magro e nervoso, pulou para perto dos culpados e
apontando-os com a mão direita estendida, começou a guinchar; Henrique supôs
que fosse o advogado de defesa e, «falando» a favor dos culpados. Fazia gestos
engraçados e, cheio de dengues, coçava a barriga a todo o momento e fazia
caretas para a assistência boquiaberta.
Percebia-se que
ele queria provar que o roubo não tinha a importância que os outros estavam
dando; roubar frutas não é crime. Os quatro culpados sentiram-se mais alegres e
animados; levantaram as cabeças e encararam o juiz; este coçou a barba branca e
ficou escutando.
Quanto mais o
advogado fazia gestos e dengues e mostrava as frutas com ar de pouco caso, mais
os quatro macaquinhos ficavam animados no galho; pareciam rir. Um chegou a
mudar de posição e mostrou os dentes à assistência; estava rindo. Houve um
silêncio depois que o macaquinho advogado terminou a defesa.
Os outros todos
ficaram ansiosos esperando o resultado, mas a sessão ainda não terminara;
apareceu um macaco grande, de rabo mais comprido que os outros; antes de
começar a guinchar, ficou dependurado pela cauda bem na frente dos quatro
culpados e começou a fazer caretas; era a acusação. Discursou acusando os
quatro culpados; deu urros, saltos, pulos; mostrou as frutas no chão, depois
tomou uma delas com a mão e encostou-a quase no nariz do juiz. O macaco velho
recuou e fez um gesto de enfado como quem diz: «Pra que tanto barulho?»
A assistência
gozava com tudo o que via. Henrique percebeu que a sessão se iniciara algumas
horas antes da sua chegada; os assistentes comiam jogavam os caroços de fruta
nas cabeças dos que estavam mais abaixo. Outros levantavam-se, davam umas
voltas e vinham outra vez esperar o resultado do julgamento.
Aqueles que eram
atingidos por caroço de fruta na cabeça ficavam furiosos e queriam avançar no
agressor, mas os outros pediam silêncio.
De súbito o
advogado da acusação, que estava de pé ao lado das frutas, dependurou-se pelo
rabo e continuou a fazer caretas de cabeça para baixo; parecia acusar
fortemente os quatro réus pedindo uma boa surra para cada um deles. E então,
talvez para mostrar o castigo que devia ser aplicado aos culpados, pegou uma
varinha e surrou a si próprio.
Nesse momento
houve grande algazarra entre a macacada; os parentes dos acusados começaram a
se lamentar e a guinchar todos ao mesmo tempo em sinal de protesto; olhavam
para o juiz pedindo socorro. Ele era quem devia decidir; o macaco velho tornou
a coçar a barba branca, piscou repetidas vezes os olhos e, inclinando--se para
os lados, consultou os companheiros que pareciam tão velhos quanto ele.
Como a
assistência continuasse a se manifestar ruidosamente, o juiz guinchou forte
como a pedir silêncio; não foi atendido. Então o juiz e os dois companheiros ao
seu lado começaram a jogar bolotas com toda a força sobre os assistentes barulhentos.
Henrique não percebeu de onde saía tanta bolota; diante de tal tiroteio, a
assistência resolveu comportar-se melhor.
Ficaram quietos;
o juiz preparou-se para «falar». Os quatro rebeldes, tão animados durante a
defesa, estavam agora de cabeça baixa, humildes e tristonhos. O juiz
levantou-se com toda imponência, o rabão erguido; andou de um lado para outro
sobre o galho entre os dois companheiros que se afastaram respeitosamente.
Um assistente,
sentado num galho acima do juiz, deu um palpite qualquer. O «magistrado»
percebeu quem havia cometido o desacato e resolveu castigar o malcriado,
dando-lhe com a ponta da cauda uma pancadinha não muito leve; o barulhento
quase caiu de cima do galho e por isso resolveu ficar quieto e não se
manifestar mais.
O juiz, que tinha
uma barriguinha redonda piscou repetidas vezes, coçou-se todo e começou a «discursar»;
de vez em quando parecia pedir opinião a doze macaquinhos que estavam num
galho separado e que deviam ser os jurados.
Os jurados ouviam
com atenção a arenga do juiz e de quando em quando sacudiam a cabeça como que
confirmando. Qual seria a sentença? A expectativa era enorme entre a macacada;
não tiravam os olhos do juiz. Alguns parentes dos quatro réus protestavam
enquanto outros pareciam chorar, e os quatro condenados esperavam a sentença.
O advogado da
acusação, o tal de rabão comprido, parecia rir; batia as mãos uma na outra,
todo satisfeito. De repente o juiz deu a sentença; coçou primeiro a barriga,
piscou, sussurrou qualquer coisa aos dois vizinhos, depois fez gestos mostrando
a sentença: os quatro réus precisavam levar uma boa surra para aprenderem que
roubar do próximo é crime. Não era preciso uma surra muito grande porque há
crimes piores, mas os quatro ladrõezinhos mereciam uma surra bem regular
Henrique percebeu
tudo isso quando viu os quatro macaquinhos esconderem as cabeças entre os
braços, muito assustados. O advogado da defesa, aproximou-se deles como a
dar-lhes coragem enquanto o da acusação dependurou-se pela cauda para assistir
melhor ao espetáculo.
O juiz deu a
ordem; então os doze jurados desceram do galho, pegaram os quatro réus e os
levaram para baixo; começou a pancadaria.
A assistência
guinchava numa torcida danada; uns aprovaram o juiz, outros eram contra, de
modo que se formaram dois partidos. As quatro vítimas apanhavam com cipó e o
cipó zunia no ar: plaf! plaf! plaf!
Alguns tapavam os
ouvidos para não ouvir os gritos dos infelizes condenados, deviam ser os
parentes ou amigos dos réus. Outros pareciam bater palmas de contentamento.
O advogado da
acusação estava tão satisfeito que se balançava de um lado para outro, seguro
apenas pela ponta do rabo; achava que a sova era bem merecida.
O juiz esperava o
resultado sentado no mesmo lugar entre os dois companheiros mais velhos, estava
tão acostumado com essas cenas que nem olhava. Distraía-se catando pulgas no
pêlo com toda calma.
No chão, onde os
quatro macaquinhos apanhavam, via-se apenas uma mistura de rabos, patas,
cabeças, caretas, guinchos, mãos pretas, não se sabia mais quem estava
apanhando, nem quem estava surrando.
Afinal veio a
ordem de cessar o castigo; o juiz fez sinal com a mão e todos olharam para ele.
Então os quatro surrados ficaram em liberdade e foram imediatamente socorridos
pelos parentes aflitos; os quatro se lambiam para se consolar.
A assistência
começou a dispersar-se de galho em galho, ainda comentando o acontecimento do
dia. O juiz e os companheiros sentaram-se no chão e começaram a comer as
frutas, causa de tanta infelicidade. Os dois advogados também deixaram o local,
partindo cada um para um lado.
Amparados pelos
pais inconsoláveis, os quatro que haviam levado a surra, foram embora coçando
as partes doloridas, enquanto o monte de frutas diminuía a olhos vistos, diante
do juiz e dos companheiros. Para se divertirem, jogavam os caroços de mangas e
as cascas de maracujá nas costas dos que iam embora; estes não reclamavam
porque o juiz era respeitado.
Nesse ponto,
Henrique que estivera inteiramente absorvido por essa cena extraordinária,
procurou seus companheiros e não os encontrou. Estava só; com certeza os que o
haviam trazido tinham descido para tomar parte no barulho. Resolveu então
fugir. Quando encontraria melhor ocasião? Desceu sorrateiramente da árvore e
pisou o chão coberto de folhas úmidas. Essa parte da floresta era muito
sombria, pois nela o sol raramente entrava.
Ele foi andando
passo a passo, um pouco nervoso, um tanto ressabiado. De vez em quando olhava
para trás e espiava o juiz que continuava a devorar as frutas, auxiliado pelos
companheiros e pelo advogado da acusação que voltara, com certeza a convite do
juiz.
De repente pan!
um caroço de jatai na cabeça de um macaco que ficara para trás, o bichinho
coçava a parte atacada e lambia o pão-de-ló-de-mico.
Henrique deu mais
alguns passos, todo esperançoso; quando já estava longe da árvore gigante,
certo de que estava livre, sentiu um rabo escuro e peludo enrolar-se na sua
perna; era o «perna quebrada» que o havia trazido para assistir ao júri.
Henrique tentou
resistir e correr, procurando desenlear-se da cauda peluda; conseguiu
desenrolar o rabo preto e dar mais uns passos. Qual! Outros rabos peludos
apareceram por todos os lados e ele foi envolvido num instante pela macacada
alvoroçada.
Ele percebeu que,
se resistisse mais, apanharia com cipó, como vira fazerem aos quatro
condenados; então resolveu acompanhar docemente o «perna quebrada». Assim,
voltou para a caverna de Simão.
Ainda olhou para
trás e viu o juiz atirando cascas de frutas nos que estavam atrasados; recebeu
também um caroço de pão-de-ló-de-mico bem no meio da cabeça. Henrique sentiu
uma dorzinha e quis voltar para jogar um caroço no juiz, mas os companheiros
puxaram-no para diante.
Sentiu-se
desanimar dessa vez. Como poderia fugir, vigiado por toda a bicharada? Quando veria
Eduardo novamente?
Simão esperava-o
com o jantar preparado; nesse dia havia ovos de sabiá com fatias de pão.
Henrique dilatou os olhos de espanto:
— Onde é que você
arranjou este pão? Foi você que fez? Com o quê?
Simão achou graça
e respondeu:
— Este pão é
tirado de uma árvore chamada fruta-pão; é uma planta nativa das ilhas do
Pacífico.
Henrique comeu
mais um pedaço, cheio de admiração:
— Então o senhor
esteve lá nessas ilhas?
— Estive há
muitos anos; consegui transplantar um pé de fruta-pão aqui na ilha infelizmente
só uma planta. Não me chame de senhor.
Henrique quase
não acreditava no que ouvia. Perguntou:
— E como é que se
prepara, Simão? É só colher e comer?
— Põe-se a fruta
no forno e em poucos instantes ela fica como pão. Coma mais um pedaço.
Henrique ficou
pensando que Simão era meio mágico; tiveram como sobremesa mel de abelhas e
mangas deliciosas. Henrique contou então o espetáculo a que assistira; Simão
sorriu e disse que no fundo das florestas acontecem coisas extraordinárias, tão
extraordinárias que os homens das cidades nem podem imaginar. E que certamente
ele iria presenciar outras coisas estupendas e dignas de admiração.
HENRIQUE
CONTINUA PRISIONEIRO
No dia seguinte
toda a ilha estava silenciosa. Simão convidou Henrique para uma pescaria na
beira do rio; foram de manhã bem cedo levando iscas para os peixes e almoço
para ambos.
Os animais que
viviam nâ gruta ficaram entretidos em seus afazeres; os micos estavam
passeando, Boni fazendo visitas aos amigos, a tartaruga na beira do lago
tomando banho; era muito asseada e tomava vários banhos por dia. A coruja, o
morcego e a oncinha estavam dormindo depois de terem se divertido durante a
noite inteira.
Henrique seguiu
Simão; essa parte do rio era desconhecida para Henrique; ele não sabia onde
ficava, nem se era longe do lugar onde Eduardo e ele haviam posto o pé na ilha
pela primeira vez.
Sentia às vezes
tantas saudades do irmão que nesse dia resolveu falar com Simão; estavam
sentados um perto do outro; de súbito Henrique perguntou:
— Simão, este
lugar fica longe daquele onde você me encontrou?
— Fica, disse
Simão.
— Muito longe?
— Muito longe.
Ficaram quietos
um instante e Simão pegou um grande peixe que tirou do anzol e colocou na cesta
de cipó que ele havia tecido, Henrique resolveu continuar:
— Bonito peixe.
Simão, você não tem parentes?
— Não tenho
ninguém.
— Então é por
isso que você não se importa de viver aqui sozinho.
Simão não
respondeu; Henrique sentiu um movimento no anzol; puxou-o e viu um peixe
brilhante pulando no ar; tirou-o e colocou-o na cesta. Jogou novamente o anzol
e perguntou:
— Você não me
deixa mais voltar para casa?
— Não sei,
respondeu Simão.
— Por que não
quer me deixar voltar?
Simão olhou
aborrecido para Henrique:
— Porque a
primeira coisa que você vai fazer ao chegar lá é contar que aqui existe um
homem barbudo que leva uma vida muito esquisita no meio da bicharada. E toda a
gente virá aqui me procurar ou me caçar como se eu fosse um animal feroz e
adeus minha tranqüilidade. Não terei mais sossego.
Henrique ficou de
pé e até deixou escapar um peixinho:
— Se o senhor não
quiser que eu conte, não contarei nada, Simão. Se é por isso, pode ficar
descansado. Juro ao senhor que nunca contarei nada a pessoa alguma, nem aos
meus pais, nem ao meu irmão Eduardo.
Simão deu uma
risada esquisita:,
— Olhe, menino.
Já vivi entre os homens e sei que eles juram falso. Muitas vezes fui enganado
por eles, agora não me enganam mais. Não creio em sua palavra. Já disse que não
precisa me chamar de senhor.
Henrique fez cara
de choro:
— Mas eu juro,
Simão. Pode crer em mim; eu juro que não contarei nada. Digo a todos que fiquei
perdido na ilha e me alimentei de raízes e frutas, mas nada direi sobre você,
nem sobre a caverna...
Continuaram a
pescar e não falaram mais; Henrique ficou pensando de que maneira poderia
convencer Simão
Em último caso,
ele fugiria, havia de fugir de qualquer jeito. De repente, Simão disse:
— Meu anzol
quebrou-se. Você é capaz de voltar sozinho à gruta e trazer mais anzóis? Estão
dentro de uma cestinha.
Henrique
confirmou com a cabeça; Simão explicou bem o "caminho, ele levantou-se e
foi. Caminhou em direção à caverna com uma idéia fixa na cabeça: fugir. Quando
poderia encontrar melhor ocasião do que aquela? Nem o papagaio Boni, nem o
veado Lucas, nem os micos careteiros, nem a oncinha, ninguém estava a segui-lo.
Resolveu ir
diretamente à caverna, quem sabe Simão o estava seguindo. Lá arranjaria alguma
coisa para comer no caminho e tomaria outro rumo. Sabia de que lado devia
seguir para encontrar a prainha, tinha certeza de que a encontraria. Levaria
também a machadinha de pedra que vira dependurada na parede da gruta; Simão
tinha várias iguais àquela.
Animado com essa
idéia, dirigiu-se diretamente à caverna; de quando em quando parava para
escutar se alguém o estava acompanhando; não percebeu nada. Nas proximidades da
gruta, parou outra vez. Só silêncio.
Contornou a
caverna, passou pelo lago onde tomavam banho e viu a tartaruga deitada na
margem; ela nem olhou.
Com o coração
batendo fortemente, Henrique subiu a escadinha de cipó e espreitou para dentro
da caverna; viu a coruja cochilando num pau que fora posto lá para ela e o
morcego dormindo profundamente dependurado no teto. Sem perder tempo, ele
vestiu o paletó que estava aí num canto, pois desde que chegara não o usara
mais; encheu os bolsos de ameixas, bebeu a bebida que Simão fazia de frutas
fermentadas e dizia que era fortificante, tomou a machadinha e amarrou-a à
cintura. Pegou também uma vasilha de madeira que servia para carregar água,
olhou à volta como se despedisse e saiu sorrateiramente Desceu a escada olhando
para os lados e tomou rumo da floresta.
Foi andando na
direção onde devia ficar a prainha, mas tinha um medo louco de se enganar. De
vez em quando tirava uma ameixa amarela do bolso e comia. Foi andando...
Estaria certo? Reparou que o sol estava bem em cima da sua cabeça, devia ser
meio-dia: aprendera com Simão a conhecer as horas pelo rumo do sol. Sentiu que
o solo estava muito úmido, na véspera havia chovido; de repente escorregou e
para não cair, segurou-se a uma planta que havia ao lado; foi como se recebesse
golpes ou navalhadas nas mãos; ficou todo ferido. Que planta seria aquela?
Nunca encontrara coisa semelhante.
Parou um pouco
para descansar; estava suando pois já se habituara a não usar paletó e agora
estranhava o calor e o peso nas costas. Tomou uns goles de água e comeu
ameixas, encostado no tronco de uma árvore. Viu as mãos cheias de sinais
vermelhos e doloridos; parecia ter recebido, navalhadas.
Nesse instante
ouviu um grito, não percebeu se era de papagaio ou outro animal; outro grito
respondeu mais perto. Seu coração deu um salto; estavam à sua procura. Simão
contara uma vez que havia uma espécie de telegrafia sem fio na ilha. Um animal
avisava outro do perigo, qualquer que ele fosse, e todos se preveniam. Trêmulo,
Henrique deitou-se no chão, cobriu-se com uns galhos que cortou rapidamente com
a machadinha pois já aprendera a lidar com ela e ficou imóvel, esperando.
Ouviu mais
gritos, uns muito longe, outros mais próximos; estavam em comunicação. De
repente sentiu uma bicada forte nas costas, outra no pescoço; olhou e viu
formigas negras que avançavam sobre seu corpo. Horrorizado, deu um pulo e
esfregou-se todo, esmagando formigas por todos os lados. Nas partes onde elas
haviam mordido, nos braços, nas pernas, no pescoço a pele ficou inflamada e
muito dolorida.
Tirou o paletó,
procurou mais formigas, matou todas as que encontrou e teve vontade de chorar.
Tivera tão pouca sorte que se deitara justamente ao lado de um formigueiro.
Agora iam
descobri-lo no mesmo instante; caminhou ao acaso sentindo dores pelo corpo e
sem saber mais o rumo a tomar. Estava desorientado e triste. Como encontrar seu
irmão Eduardo? Não havia mais esperança de sair da ilha; estava vigiado e Simão
nunca permitiria. O que fazer?
Nesse instante
ouviu um grito.
Seu coração
deu um salto; estavam à sua procura.
Ouviu gritos
próximos; olhou para cima e procurou algum conhecido entre as árvores. Seria
algum dos Cinco? Desejou nesse instante voltar para a caverna e pedir um
remédio para suas dores do corpo e para as navalhadas das mãos. Simão tinha
remédio para tudo.
Ouviu um
barulhinho nas folhas, bem sobre sua cabeça; olhou. Lá estavam
Um-Dois-Três-Quatro-Cinco espiando e fazendo caretas para ele. Pareciam rir do
rosto desanimado de Henrique.
Um fez sinal que
o acompanhasse, Henrique obedeceu. Outros dois desceram e mostraram a Henrique
as frutas que traziam, eram bananas-de-mico. Fazendo piruetas, subindo nos
galhos, balançando-se um instante e atirando-se para a árvore da frente, os
micos da caverna foram mostrando o caminho a Hen-rique.
A inflamação das
mordidas das formigas doía cada vez mais e Henrique sentia dor de cabeça e
mal-estar.
Quando chegaram
ao planalto, Henrique avistou Simão de pé na entrada da gruta, um ar severo.
Sem dizer nada, mandou-o subir a escadinha de cipó; lá dentro, examinou as mãos
doloridas de Henrique e disse que isso devia ter sido causado por uma árvore
chamada navalha-de-macaco que cortava mesmo como navalha. Passou uma pomada
sobre as mãos, depois examinou as mordidas das formigas negras, passou um
bálsamo sobre elas, deu uma bebida a Henrique, depois disse:
— Eu mandei você
buscar o anzol só para experimentar; tinha certeza de que tentaria a fuga. Já
avisei e torno a avisar que ninguém deixará a ilha sem minha ordem, é inútil
tentar fugir. A telegrafia sem fio trabalha noite e dia, é inútil qualquer
tentativa para iludi-la.
Henrique baixou a
cabeça sem nada dizer; à hora do jantar, já se sentia muito melhor das mordidas
e das navalhadas. Comeu peixe, pois estava com muita fome; depois Simão
ofereceu-lhe uma espécie de doce de coco que Henrique saboreou com prazer.
Então, Simão
explicou que aquele coco não era propriamente coco; tinha quase o mesmo gosto,
mas era tirado do tronco do jaracatiá. O jaracatiá era uma árvore grande, mas
oca por dentro, tinha só casca; dentro continha uma polpa com gosto de coco, e
as suas frutas eram comidas pelos macacos e micos do mato; a fruta era chamada
«banana-de-mico».
Um--Dois-Três-Quatro-Cinco
devoravam as bananas, careteando para Henrique.
Depois do jantar
Henrique resolveu pedir desculpas a Simão do que havia feito; explicou que às
vezes sentia muitas saudades dos seus, por isso tentara a fuga. Elogiou o
jantar e a sobremesa dizendo que Simão cozinhava que era uma beleza.
Meia hora depois
já não sentia dores no corpo. Agradeceu a Simão o bálsamo milagroso, assim como
a pomada. Simão disse que rara é a árvore que não faz benefícios à humanidade;
de cada uma delas tira-se ou uma fruta ou uma flor ou um remédio ou um bálsamo
para alimentar ou curar os homens.
MORTE NA ILHA
SIMÃO costumava
destinar cada dia da semana à realização de uma determinada tarefa; o dia
seguinte ao da tentativa de fuga de Henrique, era dia de tecer. Simão tecia uma
espécie de sandálias feitas com cipó-imbé, maleável como couro; com esse mesmo
cipó, tecia certas roupas para seu uso, cestos para carregar frutas, peixes,
etc. Em pouco tempo, Henrique aprendeu a tecer; teceu para si umas sandálias
muito cômodas e roupas para forrar sua cama.
Os Cinco queriam
tecer também, mas não podiam aprender; então ficaram na frente de Henrique
imitando todos os seus gestos, o que provocou grandes risadas. Quando viram que
não conseguiam nada, foram buscar os «pentes-de-macaco» para se pentear; cada
um tinha um pente e o guardava cuidadosamente num canto da caverna,
Esse pente era
uma fava grande, espinhada, tirada de uma certa árvore; quando não tinham o que
fazer, os Cinco iam se pentear; e quando cansavam de se pentear, iam se catar.
Henrique não sabia se eram pulgas o que eles catavam uns nos outros, entre
caretas e guinchos.
Enquanto teciam,
a oncinha chegou; farejou o ar e deitou-se aos pés de Simão como se fosse um
gato. Simão contou a história da oncinha; encontrara-a rodando rio abaixo,
ferida no pescoço. Tratara dela, curara o ferimento e ela nunca mais se fora;
ficara na ilha vivendo com Simão e os outros animais em íntima camaradagem. Nesse
dia ao almoço tiveram carne de capivara com abóbora e como sobremesa mandioca
cozida adoçada com mel. A batata-doce da ilha era tão doce como se tivesse
açúcar e Henrique comia-a quase todos os dias. Depois do almoço, Simão olhou o
céu dizendo:
— Duas horas já,
vamos continuar nosso trabalho.
Já estava
começando a anoitecer quando pararam para tomar água de coco verde; então viram
o veado Lucas chegar correndo, subir para o planalto e encostar-se às pernas de
Simão quase sem fôlego. Simão admirou-se e perguntou como se o veado pudesse responder:
— O que há,
Lucas? Aconteceu alguma coisa?
E passou a mão
pela testa do animal; Lucas não sabia falar por meio de palavras, mas fez
gestos mostrando a Simão o que ele queria e foi como se tivesse falado.
Caminhou para o lado da mata, voltou outra vez e olhou Simão; encostou o
focinho na mão do homem como que o convidando a acompanhá-lo. Simão
compreendeu; disse a Henrique que guardasse os trabalhos que estavam fazendo e
se aprontasse, pois com certeza iriam andar a noite toda. Entraram na caverna e
prepararam-se para a longa caminhada. Henrique perguntou:
— O que foi,
Simão? O que aconteceu com Lucas?
— Não sei ao
certo, mas alguma coisa houve, senão Lucas não viria me chamar; algum dos
companheiros dele está doente ou ferido, não sei ainda. Você não viu como ele
pede para que eu o acompanhe? Vamos ver o que é.
Dizendo isso,
Simão preparou paus resinosos que serviriam de tochas na escuridão da mata e
arranjou a cesta com farnel e água pura. Depois os dois puseram as machadinhas
na cintura; antes de sair, Simão colocou remédios feitos por ele mesmo numa
caixa de madeira, talvez esses remédios fossem precisos.
Enquanto isso,
Lucas esperava do lado de fora andando de um lado para outro, muito aflito.
Algumas vezes punha a cabeça na entrada da gruta e olhava para ver se Simão
estava pronto.
Afinal os três
deixaram a caverna e encaminharam-se para a mata; Boni foi com eles enquanto a
oncinha ficava tomando conta da morada de Simão. Andaram durante umas duas
horas sem parar; Lucas ia na frente mostrando o caminho, depois vinha Simão e
Henrique um pouco mais atrás. Boni ia às vezes no ombro de Henrique ou de Simão
muito bem refestelado. Às vezes conversava com Simão como dois velhos amigos;
Henrique não podia deixar de rir quando Boni avisava que o caminho estava ruim.
— Cuidado, Simão,
você cai! Olhe o buraco!
Simão respondia:
— Eu tenho
cuidado, Boni. Não se incomode.
Às vezes Boni
prevenia Henrique:
— Rique! Rique!
Não vá por esse lado. Tem cobra.
Boni tinha muito
medo de cobra; Simão contara que uma vez uma cobra quase matara o papagaio; ele
estava distraído num galho de árvore, a cobra veio de manso e já ia dar o bote
quando Simão deu um grito avisando; foi só o tempo de Boni voar e assim escapou
da bicha. Desde esse dia, Boni ficara medroso, pois conhecia o perigo; quando
via alguma coisa se mexendo no chão, ficava com as penas alvoroçadas e dava
gritos de medo. Às vezes não era nada, ou apenas um serelepe procurando frutas.
Depois de duas
horas de marcha, Simão parou para comerem alguma coisa; após terem comido,
beberam água e continuaram. A noite estava cerrada; ouvia-se o cricri dos
grilos nas moitas, um ou outro grito de animal vindo da folhagem mais fechada.
De repente Lucas parou farejando o ar; olhou à direita e à esquerda, com ar receoso.
Simão perguntou baixinho:
- O que há,
Lucas? Está ouvindo alguma coisa?
Pararam todos e
ficaram escutando. Não se ouvia nada, mas Simão percebeu que o veado estava com
medo; resolveu acender uma tocha e procurar o que estava assustando Lucas.
Abriu sem fazer o
menor ruído a caixa de madeira onde guardava os remédios e também os pauzinhos
que ele chamava de fósforo; eram uns paus pequenos e tão secos que ao esfregar
com força um no outro, pegavam fogo sem demora. Aliás, Simão estava tão perito
nisso que num instante aparecia uma faísca, como se fosse mesmo um fósforo que
se acendesse. Como Simão era homem previdente e sabia que não tinha outros
recursos senão os que ele mesmo arranjava, trazia sempre uma brasa na sua
caixinha. Num instante apareceu uma luzinha e Simão acendeu uma das tochas que
Henrique levava entre as mãos. Olharam à volta examinando o lugar onde estavam;
era mato cerrado e úmido; havia cipós trançados entre uma árvore e outra.
Os olhos de Lucas
estavam assustados e fixos nos cipós; Boni ficou com as penas assanhadas e com
os olhinhos redondos procurava alguma coisa no chão. Seriam os cipós que teriam
assustado Lucas?
Simão levantou a
machadinha e ia cortar o cipó mais grosso que havia à sua frente, quando ouviu
um grito aflito de Boni; Boni estava no ombro de Henrique e gritara de medo.
Simão ficou parado com a machadinha no ar e procurou Lucas; este tremia
encostado a um tronco de árvore.
Henrique com a
tocha acima da cabeça, iluminava a cena e disse baixinho a Simão que não vira
nada a não ser os cipós trançados acima da cabeça dos companheiros. O que
seria?
A resina da tocha
crepitava de leve; não havia vento nesse lugar e tudo estava parado, imóvel;
até a chama da tocha não se movia. Simão levantou novamente o braço e deu a machadada
nos cipós; eles todos se movimentaram e um deles, o mais grosso, ficou
dependurado no espaço sem parar de mexer; Simão recuou, horrorizado e empurrou
Henrique para
mais longe; Boni caiu no chão dando gritos de terror; bateu as asas, assustado,
sem poder falar. Depois gritou com a vozinha fina:
— Cuidado, Simão.
É cobra.
E desta vez, era
mesmo. Na frente deles, dependurada pela cauda, uma cobra enorme cor de cipó
procurava dar o bote; o que Simão e Henrique julgavam ser cipó, era cobra. Ela
fora ferida, e desesperada, procurava morder os que estavam mais próximos.
Todos recuaram,
mas Simão voltou com a machadinha e deu-lhe outro golpe; ela foi cortada pelo
meio. Caiu ao chão em dois pedaços que ainda ficaram fazendo movimentos. Lucas,
que havia recuado, voltou para olhar, ainda trêmulo de susto. Boni, quase morto
de medo, fechava os olhos com força sem coragem de olhar. Simão apenas disse:
— Vamos continuar
a marcha. Para a frente, Lucas.
Todos
recuaram, mas Simão voltou com a machadinha e deu-lhe outro golpe; ela foi
cortada pelo meio.
Henrique
assistira a toda a cena e admirara muito a coragem de Simão; mas não disse nada
e continuou a andar atrás dele; ia agora com a tocha acesa para iluminar a
mata. Mais adiante, falou:
— Simão, você não
tem medo de nada. Admiro sua coragem; eu não seria capaz de fazer o que você
fez.
Simão sorriu e
respondeu:
— O que eu havia
de fazer, Henrique? Sair correndo e deixar a cobra venenosa no meio dos cipós?
A gente às vezes aprende a ser valente.
Henrique respondeu:
— Não, creio que
você não aprendeu, nasceu valente. Eu queria ser assim...
— Se você vivesse
sempre na mata, seria assim.
Caminharam mais
duas horas, afinal pararam para tomar água numa grota; desceram cautelosamente
por trás de uma grande pedra, e chegaram a uma nascente que havia lá embaixo
entre avencas e samambaias; beberam a água puríssima e Henrique disse:
— Ih! Está tão
fria que parece gelada.
Boni também quis
beber, mas não achou graça; Lucas bebeu em grandes goles. Subiram novamente o
caminho que estava bem trilhado por animais que costumavam ir beber na
nascente. Henrique sentia-se cansado e de novo com fome, mas não se queixava
para não interromper a marcha.
Chegaram afinal a
um lugar muito limpo no meio da floresta; ali não havia cipós, nem folhagem
cerrada; divisava-se longe através dos troncos das árvores. Era um bosque de
pinheiros, com o chão forrado de folhas secas; havia entre as árvores uma
plantinha rasteira que dava uma florzinha azul muito mimosa.
Viram então uma
cena que Henrique jamais pôde esquecer: dois veados grandes rodeavam uma
veadinha ferida na cabeça. Lucas que caminhava sempre na frente deu dois pulos
e aproximou-se do grupo; parecia querer mostrar a Simão o que ele devia fazer.
Simão olhou a
veadinha e pediu a Henrique para iluminar o lugar com a tocha; acendeu outra
tocha que ele mesmo colocou no chão e ajoelhando-se ao lado do animal, começou
a examinar a ferida. Era um ferimento de bala no meio da cabeça; não havia
salvação, a veadinha ia morrer. O sangue corria sem parar.
Simão abriu a
caixa de madeira, tirou o bálsamo que derramou sobre o ferimento, depois
procurou extrair a bala, mas não a encontrou, pois o ferimento era muito
profundo. Ficou amparando a cabeça do animal agonizante; olhou os veados que
pareciam os pais da veadinha e viu lágrimas nos olhos deles; Lucas também
chorava. Eram lágrimas verdadeiras que corriam dos olhos dos animais; pareciam
sentidíssimos com a morte da veadinha.
Henrique nunca
vira um animal chorar e ficou muito admirado olhando a cena; Simão murmurou:
— Os caçadores
não têm coração. Matam um pobre animal inofensivo pelo prazer de matar. Veja
você: matar um bichinho tão inocente, tão bonito, tão delicado. Para quê? Se
fosse para saciar a fome, ainda bem, mas é para se divertir que eles matam.
Matam por crueldade. Querem apostar para ver quem mata melhor, quem mata
primeiro.
E Simão ficou de
cabeça baixa olhando a veadinha que já estava morrendo. Henrique perguntou:
— Foram caçadores
que fizeram isso?
— Quem mais se
não eles? Matam os pobres animais só por divertimento; se gostam tanto de matar
assim, deviam ir para África caçar leões ou então caçar tigres na Índia. Isso
sim, seria medir forças. Mas matar um animalzinho destes que não faz mal a
ninguém? É crueldade. Nem gostam da carne de veado, acham-na muito seca, dão
para os cães. Mas matam, matam sempre. Por isso vivo sozinho, sou mais feliz
assim. E olhe uma coisa, Henrique, os homens sofrem e são infelizes porque são
maus. A maldade só pode trazer infelicidade.
Levantou-se e fez
sinal a Henrique indicando que a veadinha já estava morta; Lucas e os outros
dois veados aproximaram-se e começaram a lamber a cabeça do animal bem no lugar
da ferida, de onde continuava a escorrer sangue.
Henrique teve
vontade de chorar; como é que simples animais compreendiam que a companheira
estava morta? Perguntou a Simão:
— Eles choram,
Simão? Parecem gente chorando. Nunca vi isso.
— Choram, disse
Simão tristemente. Muitos animais choram assim como gente.
Henrique
afastou-se para um lado e sentando-se num tronco de árvore, ficou pensativo.
Boni refestelou-se ao seu lado, convencido de que prestara um grande serviço
vindo também: Simão sentado de um lado, esperava o dia clarear. Logo os
primeiros raios de sol atravessaram os pinheiros e iluminaram a cena; Henrique
que cochilara um pouquinho, acordou com uma bicada de Boni no seu nariz. Boni
tinha esse costume: acordar os outros com bicadas no nariz.
Henrique olhou à
volta e ficou impressionado com o que viu: havia mais veados à volta da
veadinha, talvez uns dez. E todos pareciam sensibilizados com o que acontecera.
Depois ouviu um barulhinho nas árvores e olhou; viu serelepes, macacos, aves de
várias espécies que olhavam para baixo com ar entristecido. Perguntou a Simão:
— Eles vieram por
causa da veadinha?
— Penso que sim,
respondeu Simão. Todos se compreendem na floresta.
Henrique tornou a
perguntar:
— Simão, estamos
no reino dos veados?
— Sim, disse
Simão. Quase todos moram neste bosque de pinheiros; só Lucas é que gosta de
andar pela mata.
Henrique estava
cada vez mais admirado:
— Então há homens
caçando na ilha? Pois mataram a veadinha.
— Não, disse
Simão. Esta veadinha foi ferida numa das margens do rio; naturalmente os
caçadores atiraram e quando ela se viu ferida nadou para cá; veio morrer no
lugar onde nasceu.
— E o que será
que ela foi fazer lá na margem?
— Ah! Muitos
animais às vezes atravessam o rio deste lado que é mais estreito e vão procurar
coisas para comer lá na margem. Com certeza foi isso que aconteceu; são animais
bons que ainda não conhecem a maldade dos homens.
E tudo o que
Henrique presenciou depois, mais parecia sonho que realidade. Sabiás cantavam
sem cessai entre os pinheiros como a chorar a morte da veadinha; baitacas,
araras e papagaios desceram ao solo e ficaram ao redor dos veados, todos
cochichando entre si como se comentassem o triste acontecimento. Até os
pinheiros pareciam sentidos: o vento começou a passar entre eles e os galhos
secos foram caindo em sinal de tristeza; o solo ficou forrado de galhos e
folhas.
Henrique sentia
admiração cada vez maior; seria possível o que estava vendo? Ou seria sonho?
Viu os veados mais velhos arrastarem o corpo da veadinha para a margem do rio.
Só então reparou que o rio corria ali perto do bosque de pinheiros. Com os
focinhos, eles empurraram o corpo do animal até jogá-lo no rio e as águas do
Paraíba levaram a veadinha para longe.
Voltando para o
interior do bosque, Henrique viu Simão fechando a caixa de madeira e o veado
Lucas ao seu lado; todos os outros animais haviam desaparecido só o vento
sacudia os galhos das árvores. Simão murmurou:
— Pobre Lucas!
E Boni que era
muito novidadeiro, respondeu três vezes com a voz esganiçada:
— Pobre Lucas!
Pobre Lucas! Pobre Lucas!
Voltaram para a
caverna onde chegaram à tarde, famintos e cansados; Lucas também voltou com
eles. Deitou-se num canto da gruta e ficou quieto, como se dormisse. Simão
preparou uma fritada de ovos e como sobremesa tiveram mangas que os Cinco
haviam trazido aquela tarde do pomar.
A VOLTA
CORRERAM dois
dias sem novidade. De manhã nadavam no lago, depois iam pescar ou tratar da
horta. Quando não havia tarefa determinada por Simão, Henrique aprendia a subir
nas árvores com Um-Dois-Três-Quatro-Cinco; pulava de uma árvore a outra e trepava
pelos cipós até chegar ao topo, sem medo algum. Passava a tarde brincando com
os animais e assim se fazia amigo de todos: até coçava a barriga da oncinha e
ela, contente, ronronava então como gato, os olhos semicerrados.
Boni
acompanhava-o por toda a parte e dizia o nome de Henrique cortado pelo meio.
Grilava: Rique! Rique! com toda a força.
Uma tarde,
Henrique estava muito triste sentado na beira do lago quando Simão aproximou-se
e perguntou:
— Por que está
triste, Henrique?
Henrique ficou
muito perturbado e resolveu falar a verdade:
— Penso nos meus
pais e no meu irmão Eduardo. Tenho saudades deles; lembro-me também dos
padrinhos que moram em Taubaté e devem estar pensando que eu morri. Por isso
fico triste às vezes. Mas gosto muito desta vida, muito mesmo.
Simão ficou
pensativo, depois respondeu:
— Está bem,
Henrique, gostei da sua franqueza; e sei que você precisa mesmo voltar. Quer
voltai?
— Quero,
respondeu Henrique imediatamente.
- Muito bem.
Amanhã levo você até o meio do caminho e ensino de que lado fica a prainha e
você irá até lá. Está contente?
- Estou sim.
Muito obrigado. Simão continuou:
— Quando
perguntarem onde você esteve, você dirá que esteve com o homem barbudo e
misterioso que mora na Ilha Perdida. E tenho certeza de que ninguém vai
acreditar em você.
Simão deu uma
risada e Henrique respondeu:
— Pode ficar
certo, Simão, de que nunca esquecerei sua bondade e a maneira como você trata
os animais. Aprendi com você essa grande virtude.
Simão tornou a
falar:
— Escute uma
verdade, Henrique: Quanto mais culto um povo, melhor ele sabe tratar os
inferiores e os animais. Isso demonstra grande cultura e você nunca deve
esquecer.
— Nunca
esquecerei, Simão. Pode ficar certo.
À noite, Henrique
quase não pôde dormir; pensava na volta. Eduardo estaria ainda na prainha? E se
não estivesse? De que modo voltaria à fazenda dos padrinhos?
No dia seguinte
cedo, preparou-se para partir, conforme Simão determinara; Simão queria que ele
voltasse como viera, sem levar nada da caverna a não ser alguma coisa para
comer no caminho. Queria que fosse com os mesmos sapatos e as mesmas roupas.
Henrique perguntou:
— Não me deixa
levar nem a machadinha como lembrança?
— Nada.
— Simão, deixa-me
levar ao menos as sandálias que teci...
— Não, respondeu
Simão.
Deu almoço para
Henrique e alguma fruta para ele levar; depois de tudo pronto, disse:
- Então vamos.
Acompanho você até o fim desta primeira floresta.
Antes de deixar a
gruta, Henrique despediu-se dos seus habitantes; coçou a cabeça da oncinha,
disse um adeus à coruja, ao morcego, à tartaruga, a Um-Dois-Três-Quatro-Cinco.
Deixou a caverna
com o coração triste; Boni quis acompanhá-lo juntamente com Simão. Não pôde
despedir--se de Lucas que estava ausente desde o dia anterior. Partiram. Simão
caminhava na frente, depois Henrique; Boni como sempre, ora no ombro de um, ora
de outro. Durante o percurso, Henrique perguntou:
— Simão, quando
eu estiver entre os meus outra vez, posso contar que estive aqui? Posso contar
tudo o que vi ou não quer que conte nada?
Simão parou um
pouco para refletir, depois disse:
— Henrique,
estive pensando durante esta noite. Acho que você pode contar tudo o que viu
porque ninguém acreditará; vão dar risada das suas aventuras e vão dizer que
você inventou tudo isso, vai ver.
Na frente dele,
Henrique tornou a falar:
— Mas, Simão, as
pessoas que vivem no mundo civilizado são muito curiosas; são capazes de
organizar uma expedição e vir aqui à ilha para saber se falei ou não a verdade.
— Deixa que
venham, respondeu Simão, ninguém me descobrirá. Sei esconder-me muito bem,
assim como meus bichos. Tenho certeza de que não me encontrarão.
— Muito bem.
Farei como você mandou, Simão.
Continuaram a
andar por mais algum tempo no meio da floresta; de repente, Simão parou e
disse:
— Henrique, vamos
nos separar aqui. Indo direito por este lado, veja bem, você vai dar na
prainha, não demora nem meia hora de marcha. Adeus e seja feliz, Quero ainda
fazer um pedido a você, um pedido muito sério: Ouça bem, nunca maltrate os animais;
seja sempre bom e caridoso para com eles, principalmente para esses que vivem
conosco e nos prestam serviços. Nunca os maltrate. Ouviu bem?
— Ouvi, respondeu
Henrique.
Henrique e Simão
apertaram-se as mãos fortemente;
Henrique disse:
— Obrigado,
Simão. Nunca esquecerei o quanto você foi bom para mim; se algum dia eu puder
voltar, voltarei. Você permite que eu volte para uma visita algum dia?
— Pode voltar,
mas sozinho. Quando encontrei você na prainha, pensei que iria ter um
companheiro daí em diante, mas vi você com tantas saudades da sua gente que
resolvi fazer você voltar. Seja feliz.
— Uma coisa
ainda, Simão. Se por acaso meu irmão Eduardo não estiver mais na prainha, o que
farei? Ficarei sozinho até vir socorro? E se não vier nunca? Penso que não
saberei voltar para a caverna.
Simão sorriu:
— Seu irmão
Eduardo ainda está na prainha tenho certeza. Pode ir descansado.
Henrique
perguntou:
— Então a
telegrafia sem fio andou trabalhando muito?
— Trabalha
sempre, respondeu Simão. Sei tudo o que se passa nos arredores. Seja feliz.
Adeus!
Simão voltou as
costas e entrou no mato outra vez sem dizer uma palavra mais. Henrique beijou a
cabecinha de Boni:
— Adeus, Boni.
Volte com Simão.
Boni compreendeu;
gritou primeiro:
— Que pressa é
essa, Simão? Espere um pouco! - Falou as mesmas palavras que Simão falava para
ele quando estavam se aprontando para percorrer a floresta. Depois Boni bateu
as asas e voltou para o ombro de Simão. De lá gritou bem alto:
— Rique! Rique!
Adeus!
Henrique sentiu vontade
de chorar, falou alto com a voz comovida:
- Adeus, Simão, e
obrigado. Adeus, Boni!
Não ouviu
resposta, já estavam longe. Caminhou na direção que Simão indicara e foi à
procura da prainha. Vivera todos esses dias uma tão grande aventura que se contasse
ninguém acreditaria, tinha certeza.
Andou mais de
meia hora sem encontrar nada. Comeu a última fruta que trouxera e continuou a
caminhar pelo mato adentro. Começou a ouvir o barulho do rio. Resolveu gritar:
— Eduardo!
Eduardo!
Nada de resposta.
Estava cansadíssimo, pois caminhava desde muito cedo e já devia ser tarde. Onde
estaria a prainha? Resolveu sentar-se um pouco e descansar; recostou-se no
tronco de uma árvore grossa e ficou quieto, com a cabeça encostada na árvore.
Que horas seriam? Sem sentir, cochilou; acordou assustado, parece que ouvira um
barulhinho. Seria sonho? Tornou a recostar a cabeça e dormiu profundamente. Não
sabe quanto tempo dormiu assim; acordou com um frio esquisito no rosto e uma
voz chamando:
— Henrique! Meus
Deus! É Henrique mesmo!
Pensou que era
Boni; ia dizer: «Boni, você voltou?» quando reconheceu a voz do irmão. Abriu os
olhos e viu Eduardo na frente dele; estava magro, meio nu, os olhos fundos;
passava um pano molhado no rosto de Henrique, era o resto da sua camisa. Falou
para o irmão:
— Por onde andou,
Henrique? Diga logo. O que aconteceu com você?
Henrique esfregou
os olhos; não quis falar logo a verdade, deixou para mais tarde, senão Eduardo
pensaria que ele não estava bom da cabeça. Disse:
— Estive perdido
na floresta todo esse tempo. E você? Ficou sempre na prainha? Sozinho?
— Estive
procurando você, depois desisti; estou fazendo a jangada para voltarmos para a
fazenda dos padrinhos. Pensei que você tivesse caído no rio e se afogado. Quase
morri aqui sozinho.
— Eu quis voltar,
mas não consegui, Eduardo. Aconteceu tanta coisa comigo...
Eduardo estava
curioso e queria saber tudo:
- O que foi?
Conte depressa. Viu alguém na ilha? Vamos primeiro ver a jangada. Está pronta?
Eduardo
entusiasmou-se:
— Está quase pronta;
imagine você que se eu tivesse de trabalhar só com a faca decerto levaria um
ano, mas encontrei outro dia na praia uma machadinha formidável Quer ver?
Henrique
acompanhou Eduardo; tinha a cabeça ainda atordoada, nem sabia onde estava.
Perguntou:
— O que você
comeu durante todo esse tempo? Você está magro, Eduardo...
— Comi frutas e
raízes de árvores. E você?
— Comi de tudo,
contarei depois. Eduardo continuou:
— Quando voltei
para a prainha naquela tarde, não encontrei você. Onde você foi?
— Fui procurar
frutas na floresta, depois encontrei Simão, o morador aqui desta ilha..
— O quê?
Henrique, você está maluco? Na ilha não existe morador algum.
Henrique sorriu:
— Ora se
existe... Vivi na caverna dele todo esse tempo. Com ele e os bichos...
Eduardo estava
cada vez mais admirado:
— Que bichos?
— Uma porção de
bichos: micos, papagaio, coruja, onça...
— Qual, você está
sonhando... Henrique perguntou:
— E aquela
enchente terrível?
- Já acabou há
muito tempo; creio que foi essa enchente que trouxe a machadinha para a praia.
Venha
Assim
conversando, eles caminharam até o lugar onde estava a jangada. Eduardo
trabalhara muito; não era uma jangada muito grande, mas, os paus estavam bem
amarrados com cipós e com certeza navegaria sem dificuldade. Henrique
admirou-se:
— Como você
trabalhou, Eduardo! E sozinho aqui?
— Sozinho. Apenas
com esta machadinha que encontrei por acaso.
Quando Henrique
olhou, reconheceu uma das machadinhas feitas por Simão; naturalmente Simão encontrara
um jeito de dar uma machadinha para Eduardo trabalhar. Que bom homem era Simão!
Henrique não disse que co-nhecia a machadinha; só perguntou.
— E o canivete
também não serviu? Era um bom canivete...
Eduardo
respondeu:
— Você levou o
canivete... Henrique protestou:
— Não levei,
deixei-o espetado numa árvore para mostrar o caminho a você.
— Você está
sonhando, Henrique. Em que árvore? Vamos ver...
Logo encontraram
o canivete espetado num tronco, tal qual Henrique deixara. Comeram bananas que
Eduardo guardara escondidas sob uns galhos; depois ele mostrou a Henrique a
cama que arranjara debaixo de uma grande pedra.
Quando anoiteceu,
dormiram aí nesse lugar; mas Henrique não dormiu bem, acordou muitas vezes
pensando em Simão e na gruta. Bem dissera Simão que ninguém acreditaria no que
ele contasse. Era verdade.
No dia seguinte
prepararam-se para voltar à fazenda; o rio estava calmo, mas a viagem ia ser
difícil. Se conseguissem ao menos atravessar o rio e chegar a uma das margens,
subiriam a pé depois até à fazenda;
Antes de partir
Eduardo comeu umas raízes e disse a Henrique que comesse também; não era muito
gostoso mas servia para matar a fome. Henrique experimentou, mas não conseguiu,
lembrou-se da caverna e dos quitutes que Simão sabia preparar.
Disse que
preferia comer uns ingás que havia na beira do rio; Eduardo disse que ingá era
uma fruta insignificante e não matava a fome; Henrique não respondeu, comeu
alguns, encheu os bolsos com outros e preparou-se para pular na jangada.
Arranjaram paus compridos para servirem de remos; esses paus ao menos serviriam
para dirigir um pouco a embarcação.
Eduardo pulou
primeiro, depois Henrique; a jangada começou a balançar sobre as águas;
desamarraram a corda que a prendia e ela deslizou de leve rio abaixo. Então os
dois meninos fizeram um grande esforço para que ela atravessasse o rio e fosse
para a margem oposta; mesmo que aportassem longe da fazenda, encontrariam
alguém que os guiasse por terra; sozinhos na jangada que não obedecia, iriam
parar sabe Deus onde e seria perigoso.
Mas a correnteza
estava forte e teimava em arrastar a jangada rio abaixo; Henrique começou a
desesperar.
— Onde iremos
parar? Desse jeito, vamos ficando cada vez mais longe da fazenda. Depois não
poderemos voltar.
Eduardo esforçava-se
para remar.
— Coragem,
Henrique. Não vamos desanimar agora que estamos quase vencendo. Procure
empurrar a jangada com o outro pau; ao menos serve de remo.
— Já tentei e não
consegui; ela não obedece.
E os dois
esforçavam-se para levar a jangada para a beira do rio, mas a jangada era
puxada pela correnteza e ia descendo o rio, sem esperança de parar. Eduardo
perguntou:
— Onde iremos
parar assim? Ela vai nos levar para muito longe.
Henrique disse:
— O pior é esta
água que começa a entrar por entre os paus; parece que a jangada vai se abrir.
— Qual o que,
disse Eduardo. Eu prendi tudo muito bem com cipó; levei horas fazendo esse
trabalho.
— Mas você não
tem prática, Eduardo.
— Não tenho
prática, mas fiz tudo muito bem feito. Duvido que os cipós não estejam firmes.
— Decerto estão
firmes, mas se ficarmos muito tempo assim, eles não agüentarão.
— Garanto que
agüentam muito bem. Felizmente naquele lugar o rio corria muito devagar, de
modo que a jangada flutuava de manso e os dois meninos não perdiam a coragem.
De vez em quando Henrique comia um ingá e oferecia a Eduardo, haviam trazido
bananas para comerem mais tarde, se tivessem muita fome. Queriam economizá-las,
pois não sabiam quanto tempo iriam ficar sem ter o que comer.
Foi quando os
dois viram, quase ao mesmo tempo, uma embarcação que vinha em sentido
contrário; era dirigida por três homens. A distância, não percebiam muito bem
se eram três ou quatro homens. Os dois meninos ficaram de pé na jangada, mudos
de espanto e alegria; estavam salvos.
Quando ficaram de
pé, a jangada quase virou com eles; sentaram-se outra vez e Eduardo tirou o
paletó e colocou-o na ponta do pau que servia de remo para que os homens
vissem; Henrique pôs a mão no canto da boca e gritou com força:
— Socorro!
Socorro!
Quando ficaram
de pé, a jangada quase virou com eles.
Henrique
começou a gritar por socorro.
Nada disso era
preciso; os homens já haviam avistado a jangada, pois eram empregados da
fazenda do padrinho e há oito dias não faziam outra coisa senão percorrer o rio
à procura dos dois rebeldes. Padrinho estava noutro barco que passara horas
antes.
No momento em que
o barco se aproximou da jangada, todos viram com horror que os paus já estavam
se desamarrando uns dos outros; mais meia hora e os meninos se afogariam no
rio.
Bento estava
entre os homens da fazenda; quando viu os meninos, foi falando logo:
— Xi! Na fazenda
pensaram que vocês haviam morrido afogados. Estão todos assustados, ninguém tem
dormido direito...
Auxiliaram os
dois meninos a pularem para o barco; Eduardo que havia construído a jangada,
quis levar ao menos uns paus como lembrança, mas não conseguiu; ela se separou
em duas partes e rodou pelo rio. Os homens queriam saber quem construíra e
quando Eduardo contou que fora ele sozinho, não quiseram acreditar, parecia
impossível.
Bento não parava
de falar; disse que Henrique estava bem, mas Eduardo parecia muito magro;
perguntou se haviam passado muita fome. Quando Henrique contou que comera muito
bem na caverna de Simão, todos queriam saber quem era Simão; mas ninguém
acreditou em Henrique.
Os homens sorriam
olhando uns para os outros, depois perguntaram se Henrique estivera com febre,
pois era bem possível que ele tivesse tido febre esse tempo todo e tivesse
sonhado.
Eduardo e
Henrique sentaram-se no fundo da canoa, exaustos e famintos; a canoa foi
subindo dirigida pelos empregados que não cansavam de perguntar a respeito da
ilha. Queriam saber onde haviam dormido e o que haviam comido. Henrique
perguntou:
— Vocês não foram
até a ilha? Por que não procuraram lá?
Os empregados
contaram que haviam contornado a ilha várias vezes e até percorrido uma parte
dela; haviam gritado pelos nomes deles e como não houvessem encontrado rasto,
nem vestígio algum, tinham voltado.
Os meninos
respondiam o que os homens perguntavam, e estavam ansiosos por chegar a
fazenda; meia hora depois, avistaram a canoa em que vinham o padrinho e mais
dois empregados.
Eduardo e
Henrique sentiam-se muito envergonhados do que haviam feito; baixaram as
cabeças com vontade de chorar. Padrinho nem acreditou quando os viu; abraçou os
dois meninos com ar meio zangado, dizendo que eles nunca deviam ter feito
aquilo Eduardo fez cara de choro e Henrique pediu logo des culpas.
Padrinho
continuou contando que o desaparecimento deles causara grande alvoroço na
fazenda e que madrinha estava inconsolável, chorava todos os dias. Contou
também que duas canoas estavam sempre navegando rio abaixo e rio acima à
procura dos dois; e toda a vizinhança dizia que eles se haviam afogado.
Padrinho levou à
boca um apito e tocou demoradamente três vezes; depois disse que era para
avisar madrinha que eles estavam sãos e salvos.
Quando os barcos
chegaram à vista da fazenda, viram madrinha, Quico, Oscar, a cozinheira
Eufrosina e outros empregados esperando na margem do rio; houve muitos abraços
misturados com lágrimas e beijos. Voltaram juntos para casa; Oscar queria saber
tudo de uma vez: onde eles haviam estado, por que haviam demorado tanto? Quando
ele e Quico souberam que os dois haviam pas-sado toda essa semana na Ilha
Perdida, abriram a boca cheios de espanto. Oscar disse:
— Impossível!
Quico perguntou
logo:
— Há gente
morando lá? Henrique respondeu:
— Há um homem
muito bom chamado Simão... Eduardo interrompeu:
— Mas eu não vi
nada; Henrique é que esteve com ele.
Os dois pequenos,
assim como madrinha, ficaram sem compreender. Madrinha disse:
— Mas peço a
vocês que nunca mais façam isso; desta vez nós perdoamos, nem mandamos contar
aos seus pais em São Paulo. Mas quero que me prometam nunca mais deixar a
fazenda sem um de nós.
Henrique e
Eduardo prometeram solenemente e con taram o arrependimento que sentiam por
terem ido para a Ilha Perdida sem contar nada a ninguém.
Madrinha censurou
os dois meninos até chegarem à casa. Eduardo fez outra vez cara de choro,
padrinho disse:
— Está bem, agora
vão tomar um banho que estão precisando, depois vamos conversar.
Tomaram banho com
sabonete perfumado, depois jantaram muito bem, achando tudo delicioso,
principalmente Eduardo que só comera raízes e frutas. Os dois sentiam-se fracos
e cansados; então madrinha mandou-os para o quarto; precisavam dormir, dormir
muito. Quico pediu:
— Mas nós
queríamos saber hoje mesmo tudo o que aconteceu...
Padrinho disse:
— Deixe os dois
descansarem bem; amanhã terão tempo de sobra para ouvir as aventuras.
Quico insistiu:
— Conte alguma
coisinha, Eduardo. Por favor.
— Eu fiquei na
prainha da ilha, disse Eduardo. Henrique desapareceu e só apareceu ontem.
— Não diga! Onde
ele andou?
Ficaram olhando
para Henrique com ar admirado. Oscar falou primeiro:
— Henrique! Onde
você esteve? Conte! Henrique que já estava na porta do quarto, voltou-se para
dizer:
— Estive morando
na caverna de Simão. Ninguém acreditou; pensaram que Henrique estivesse
delirando e madrinha pôs a mão na sua testa para ver se tinha febre. Depois
falou:
— Está muito bem;
amanhã você conta isso. Vá dormir.
AS HISTÓRIAS
DE HENRIQUE
No dia seguinte
os dois meninos acordaram um pouco admirados por estarem novamente na fazenda
dos padrinhos após tantos dias de ausência. Abriram a porta do quarto e
avistaram Quico e Oscar andando de um lado para outro ansiosos por saberem as
novidades.
Foram todos tomar
café; padrinho e madrinha apareceram na sala de jantar perguntando se haviam
passado bem a noite e não haviam estranhado o colchão, pois há muitos dias não
sabiam o que era dormir numa cama. Quico perguntou com a boca cheia de pão:
— Conte,
Henrique. Onde você esteve? Não estiveram juntos?
Padrinho disse
com voz severa:
— Antes de mais
nada, quero dizer que vocês fizeram muito mal. Onde se viu tirar a canoa sem
nossa licença? Quero que prometam nunca mais fazer uma coisa dessas.
Os dois disseram
quase ao mesmo tempo:
— Prometemos
padrinho. Nunca mais faremos isso, pode ficar sossegado.
Madrinha
continuou:
— Não mandamos
contar nada aos seus pais em São Paulo porque eles ficariam desesperados, mas
passamos uma semana horrível sem saber o que havia acontecido. Nem dormimos
direito, pois nossa preocupação era enorme.
Eduardo e
Henrique tornaram a pedir desculpas aos padrinhos pelo mal que haviam causado e
disseram que na véspera estavam tão tontos e cansados que nem sabiam o que
diziam. Padrinho ainda fez um pequeno sermão sobre meninos desobedientes e
terminou falando que daquela vez perdoava, mas que eles nunca mais caíssem
noutra.
Depois do café
com leite que os dois acharam uma delícia, padrinho pediu que cada um contasse
por sua vez o que havia acontecido. Eduardo falou primeiro e quando contou que
construíra a jangada sozinho e apenas com auxílio de uma faca e depois de uma
machadinha encontrada por acaso, todos ficaram admirados e Quico quis saber de
que jeito ele amarrara os paus.
Eduardo contou
tudo bem direitinho e acabou de falar; então Henrique contou sua própria
aventura; desde o momento em que ficara na prainha sozinho e aparecera um homem
barbudo perguntando o que estava fazendo ali.
Padrinho
perguntou muito admirado:
— O quê? Vive
alguém na Ilha Perdida?
Então Henrique
contou a história de Simão; de como ele vivia lá na ilha há quase vinte anos e
dos bichos que viviam na sua caverna. Henrique percebeu logo que ninguém estava
acreditando nas suas palavras; madrinha olhou para padrinho sem dizer nada;
Quico e Oscar também ficaram de boca aberta. Madrinha perguntou meigamente:
— Não seria
sonho, Henrique? Você não esteve doente?
— Não, madrinha.
Não sonhei, nem estive doente. Tudo isso é verdade.
Oscar perguntou:
— E os sapatos
feitos de cipó? Por que não os trouxe para casa?
Quico disse:
— Eu queria ver a
machadinha que você usava na cintura. Onde está?
Henrique
respondeu:
— Simão não quis
que eu trouxesse nada da ilha; quis que eu viesse do mesmo jeito que lá
cheguei.
Voltou-se para o
irmão e perguntou:
— Eduardo, onde
está a machadinha que você achou na ilha?
— Não sei, ela
estava com Você.
— Comigo não,
Eduardo. Quem estava com ela era você.
Ficaram tristes
ao ver que nenhum deles trouxera a machadinha, uma das únicas ou a única
lembrança da ilha.. Henrique continuou a falar:
— Pois essa machadinha,
que serviu para Eduardo construir a jangada, foi feita por Simão. Vi várias
iguais na caverna.
Eduardo sacudiu a
cabeça sem acreditar; depois perguntou:
— Então como é
que ela foi parar na prainha?
— Não sei, disse
Henrique. Quem sabe Simão fez de propósito; deu um jeito de pôr a machadinha na
prainha para ajudar você.
— Impossível,
falou Eduardo.
Padrinho pediu:
— Está bem,
Henrique, conte mais alguma coisa. Quais eram os bichos que viviam com Simão?
Henrique então
falou sobre os micos e a oncinha; contou como Boni vivia no ombro dele e os
Cinco o ensinavam a pular de galho em galho. Madrinha per-guntou:
— E o que comiam
ria caverna, Henrique? Comiam frutas e raízes?
— Comíamos
frutas, carne de capivara, ovos, peixe que Simão pescava. Laranjas, bananas,
cocos, mamões, maracujás, ameixas, mangas, fruta-pão...
Arregalaram os
olhos. Quico gritou:
— Como passavam
bem!
Henrique sorriu e
disse:
— Os micos comiam
pão-de-ló...
Quico e Oscar
pensaram que Henrique estava inventando demais; Henrique terminou:
— Vocês conhecem
aquela fruta que tem um pó amarelo — jatai?
Todos sacudiram a
cabeça dizendo que conheciam. Henrique continuou:
— Pois o jatai é
chamado — pão-de-ló-de-mico. Os miquinhos gostam muito.
Todos deram
risada. Henrique tornou a falar:
— Há uma árvore
na ilha que dá espécie de fava espinhuda; pois essa fava é chamada
pente-de-macaco. Os micos se penteavam com essa fava quase todos os dias, cada
um tinha a sua.
Quico perguntou
com olhos arregalados:
—
Um-Dois-Três-Quatro-Cinco precisavam pentear os cabelos?
Eduardo corrigiu:
— Nao penteavam
os cabelos, Quico. Penteavam os pêlos. Mico tem pêlo.
Oscar perguntou a
Henrique:
— Então você sabe
pular de galho em galho? Aprendeu com os micos? Vamos já tirar a prova!
Quico concordou:
— É mesmo. Se ele
aprendeu com os micos, vai mostrar como é que mico faz. Vamos para o pomar.
Levantaram-se da
mesa e foram; Eduardo também estava duvidando do irmão. Padrinho e madrinha
acompanharam; Bento apareceu com o rosto muito desconfiado e foi atrás deles.
Chegando ao
pomar, Henrique tirou os sapatos e as meias, como fazia na ilha; depois o
paletó. Todos ficaram à volta dele esperando as proezas. Henrique deu um pulo e
dependurou-se num galho da mangueira; experimentou saltar para outro galho, mas
teve receio, então deixou-se cair ao chão. Escolheu outra árvore e outro galho;
preparou-se todo e num pulo alcançou o galho. Quico gritou:
— Isso eu também
faço...
— Psiu... fez
padrinho. Deixem Henrique sossegado.
Henrique ficou
dependurado calculando a distância entre um galho e outro; de repente criou
coragem e deu o pulo; quebrou-se o galho onde ele segurou e quase foi ao chão,
padrinho auxiliou-o a descer. Pela terceira vez ele tentou; dessa vez ficou
suspenso no ar sem coragem para saltar; padrinho tornou a auxiliá-lo.
Madrinha olhou
padrinho e os dois sacudiram a cabeça duvidando das his-tórias de Henrique. Ele
disse meio desanimado:
— Eu ainda estava
aprendendo, padrinho. Eu não disse que sabia, disse que os micos estavam me
ensinando.
Madrinha disse:
— Está bem, está
bem. E que mais? Aprendeu mais alguma coisa com Simão?
Henrique falou
sobre a horta e o pomar. Contou que a fruta-pão viera de uma ilha do Pacífico.
Bento que escutava de um lado, perguntou:
— Então tinha
horta também? Como é que temperava alface?
— Tinha outras
coisas, mas alface não. Abóbora, batata-doce, cará, mandioca...
Oscar perguntou
duvidando sempre:
— E a fruta-pão?
Você comeu? É como pão mesmo? Henrique tornou a afirmar que comera; contou que
dormiam na caverna sobre xales feitos de penas coloridas de aves. Qual! Ninguém
acreditava. Uns achavam que ele sonhara, outros achavam que ele inventara isso
tudo para fazer bonito. Quico disse:
— Você afirmou
que Simão era bom para todos os animais. Então como é que ele matava as aves
para tirar as penas?
— Ele não matava
as aves, respondeu Henrique. Essas penas eram encontradas no planalto quase
todos os dias. Perto da gruta havia um planalto onde os pássaros e as aves
vinham todos os dias visitar Simão. E deixavam aí uma porção de penas que
Um-Dois-Três--Quatro-Cinco ajuntavam e guardavam na caverna para depois Simão
fazer as cobertas.
— Hum! resmungou
Bento. Tudo isso é bem esquisito ...
Todos os dias era
a mesma coisa; pediam a Henrique que contasse alguma história da Ilha Perdida e
quando ele contava ninguém acreditava. Henrique já estava desanimado e pensando
como fazer para que acreditassem nele.
VERA E LÚCIA,
PINGO E PIPOCA CHEGAM À FAZENDA
Na mesma semana
chegou uma carta de São Paulo contando que Vera e Lúcia viriam passar as férias
de dezembro na fazenda dos padrinhos. Houve grande alvoroço entre eles. Queriam
saber se Pingo e Pipoca também viriam, mas isso ninguém sabia, a carta não
dizia.
Passaram-se mais
alguns dias em grandes preparativos; afinal as duas meninas chegaram
acompanhadas pelos dois cachorrinhos.
Quico ficou
entusiasmado:
— Ih! Que farra!
Começaram as
correrias pelo pomar, pelo campo, pelo riozinho. Organizaram pescarias onde
quase ninguém pescava. Levantavam de madrugada para andar a cavalo. Henrique e
Eduardo iam buscar os bezerrinhos no pasto. Pingo e Pipoca não sabiam o que
fazer; era tanta folia que eles não tinham tempo nem para se coçar.
Tupi, o cachorro
da fazenda, ficou desconfiado nos primeiros dias ao ver que Pingo e Pipoca eram
mais queridos; depois não deu mais importância; já estava mesmo velho e só
gostava de dormir. Dormia quase o dia inteiro; mas à noite, ficava alerta
tomando conta de tudo.
Vera gritava:
— Venha,
meninada, venha brincar.
Chamava os
cachorros de meninos; Lúcia chamava-os para outro lado. Henrique e Eduardo iam
até a margem do Paraíba e queriam que os cachorrinhos fossem com eles. Os
bichinhos pinoteavam para cá e para lá sem saber a quem seguir. Divertiam-se a
valer.
Depois do jantar,
a criançada sentava-se no terraço e conversava até a hora de dormir; Vera e
Lúcia ficaram sabendo tudo a respeito da Ilha Perdida.
Lúcia
interessou-se muito pelos micos; queria saber como andavam, se tinham rabo
comprido, o que faziam com o rabo quando dormiam. Vera queria saber se Lucas
tinha chifres; Henrique respondeu que os veados que vivem nas florestas não têm
chifres. Só os têm os que vivem nas planícies.
Durante horas e
horas faziam mil perguntas a Henrique; queriam saber se ele gostaria de voltar
à ilha; Henrique respondia que tinha vontade, mas era tão difícil, nem pensava
nisso.
Muitas vezes,
durante o dia, surpreendiam Henrique sentado no alto do morro contemplando a
ilha lá embaixo, no meio do rio. Ele nada dizia, mas pensava com saudades em
Simão e em todos seus companheiros da caverna.
As duas meninas
pediram a Eduardo que fizesse uma jangada do mesmo jeito que ele havia feito na
prainha da ilha, utilizando apenas a machadinha do Nhô Quim. Foram pedir a Nhô
Quim que emprestasse a machadinha. Eduardo prometeu fazer a jangada; foram
todos para a mata que havia na fazenda e Eduardo começou a trabalhar na
presença de todos; mas ninguém auxiliava; sentaram-se à volta dele e ficaram
olhando. Bento também veio espiar.
De vez em quando
um perguntava:
— Foi assim que
você fez? Outro .dizia:
— Mas assim os
paus não ficaram seguros.
Quico pediu:
— Ninguém deve
dar palpites. Vamos deixar Eduardo trabalhar.
Eduardo
queixava-se de que naquela mata não havia cipós como na ilha; ali eram cipós
duros que não torciam como ele queria. Davam risadas e caçoavam dos esforços
que Eduardo fazia para construir a jangada. Tinham pressa que a jangada ficasse
logo pronta para levá-la ao riozinho; queriam saber se ela navegava mesmo.
Eduardo trabalhava o dia inteiro, mas o trabalho não progredia, ia muito
devagar.
Padrinho sorria e
dizia que a necessidade faz milagres; Eduardo fizera a jangada para se salvar,
por isso não achara difícil; agora fazia por divertimento, por isso o serviço
não progredia.
Um dia estavam
todos no pomar quando Vera veio com a novidade; contou aos outros que ouvira
padrinho dizer à madrinha que pretendia fazer uma excursão à ilha na semana
seguinte.
Quico e Oscar não
acreditaram, disseram que achavam isso impossível. Eduardo achou a idéia esplêndida
e queria saber se eles também iriam; então resolveram mandar Lúcia sondar.
Lúcia era a menor
e podia disfarçadamente perguntar qualquer coisa à madrinha: durante três dias
Lúcia andou atrás da madrinha sondando; mas nada descobriu.
Foi então que Oscar
veio com outra notícia:
— Acho que vamos
ter novidade; papai mandou pedir emprestada a canoa do Seu Viriato.
Seu Viriato era
um fazendeiro vizinho. Ficaram excitados. — Então é verdade! Padrinho está
projetando uma excursão à ilha!
Quando a canoa do
Seu Viriato foi amarrada à margem do rio, nas terras da fazenda, ninguém
perguntou nada ao padrinho, mas cada um por sua vez foi espiar.
Lúcia foi mandada
em primeiro lugar; chamou Pingo e Pipoca e foi examinar a canoa.
Voltou
desapontada dizendo que decerto padrinho ia sozinho, a canoa era muito pequena.
Durante dois dias, cada um deles ia até o lugar onde estava a canoa, espiava e
voltava dizendo que tudo ia na mesma, não havia novidade.
De repente a
excitação das crianças aumentou; viram padrinho mandar buscar outra canoa,
desta vez era uma espécie de barco, onde cabiam muitas pessoas. Quando o barco
chegou, ficaram duas noites sem dormir direito. Iriam mesmo à Ilha Perdida?
A EXPEDIÇÃO
Afinal, dias
depois, à hora do almoço, padrinho falou: — Quem quer ir comigo à ilha? Quem
quiser levante a mão direita.
Os seis
levantaram a mão imediatamente e padrinho deu risada, depois explicou:
— Estou
preparando tudo para fazer uma visita a Simão, o amigo de Henrique. Vamos todos
no barco e Bento e Tomásio vão na canoa levando mantimentos e barracas.
Conforme for, dormiremos uma noite na ilha, vamos descobrir o homem barbudo.
Vamos descobrir o mistério da ilha que por enquanto só Henrique conhece.
Foi um sucesso.
Desse dia em diante não se falou nem se pensou noutra coisa a não ser na
excursão. Só Henrique ficou tristonho, Simão não queria que o descobrissem; ao
mesmo tempo lembrou-se das palavras dele:
— Podem vir,
ninguém me encontrará.
Passaram mais uns
dias em preparativos; Vera e Lúcia prepararam as calças compridas e as
blusinhas; madrinha tratava das coisas que levariam. Arranjava cestas com latas
de presunto, patê, compotas. Amarrava frigideiras, panelas, garrafas
para água, copos de papelão, roupas para os meninos, meias.
Padrinho arrumava
numa caixinha de injeções contra mordidas de cobra, vários remédios contra
gripe, cortes, queimaduras Todos se sentiam animados e satisfeitos com a
aventura, que seria uma verdadeira expedição.
Escolheram uma
quinta-feira e na madrugada desse dia, prepararam-se para embarcar; levariam os
dois cachorrinhos, pois eles poderiam prestar bons serviços na ilha. Levaram
também uma cestinha com ovos cozidos, vários quilos de lingüiça e uns pacotes
de manteiga que Eufrosina lhes deu à última hora para reforçar a matula feita
por madrinha.
Madrinha
despediu-se deles no terraço da casa, desejando que fossem felizes na excursão.
Ainda estava escuro quando a caravana desceu o morro a caminho do lugar onde
estavam amarrados o barco e a canoa. Embarcaram com coragem e animação. Assim
que os barcos começaram a descer o rio, o sol surgiu no horizonte e Henrique e
Eduardo lembraram-se do dia em que haviam fugido, umas semanas antes; fora numa
madrugada como aquela.
Navegaram durante
umas horas e os barcos deslizaram pelo rio levando o bando de crianças ansiosas
pela aventura na ilha; queriam conhecer Simão e ver a caverna onde Henrique
morara durante oito dias. Mas no íntimo não acreditavam nem na existência de
Simão, nem na da caverna, nem em nada do que Henrique contara.
Quando avistaram
a ilha, deram gritos de alegria; os cachorros latiram. Padrinho perguntou:
— De que lado
ficará a prainha? Vamos desembarcar na prainha onde Eduardo construiu a
jangada.
Eduardo e
Henrique não souberam explicar de que lado ela ficava; tinham ido parar nela
por acaso e não sabiam agora descobri-la. Quando Henrique viu outra vez a ilha
de perto, com suas palmeiras e coqueiros, suas grandes árvores, seu ar de
mistério, sentiu o coração pulsar fortemente.
Com certeza Simão
estava nesse momento no ponto mais alto da ilha, olhando os barcos que se
aproximavam. E a telegrafia sem fio estaria trabalhando entre os animais; todos
estavam avisando uns aos outros do perigo que se aproximava. Os animais haviam
de se esconder e Simão desapareceria nalgum lugar misterioso que ninguém
descobriria,
Padrinho resolveu
encostar os barcos em qualquer ponto da ilha, pois já era tarde e estavam com
fome; a prainha não fora encontrada.
Todos
desembarcaram; Bento e Tomásio começaram a preparar as panelas para o almoço;
as crianças foram fazer uma excursão pelos arredores juntamente com padrinho.
De repente ouviram o grito de Bento:
— O almoço está
na mesa!
Voltaram dando
risada, pois não havia nem sombra de mesa; sentaram-se no chão e com os pratos
de papelão nas mãos, comeram lingüiça com ovos e pão. Depois comeram pessegada
e tomaram café feito pelo Bento. Deitaram se um pouco depois do almoço, depois
padrinho disse:
— Vamos então dar
umas voltas.
Penetraram na
mata e caminharam abrindo caminho entre cipós e folhagem cerrada; padrinho e
Tomásio iam na frente, depois as crianças e atrás seguia Bento com uma grande
faca de cozinha entre as mãos. Os cachorros pulavam de um lado para outro,
entusiasmados com o passeio. De vez em quando, padrinho parava e perguntava,
indicando uma árvore ou uma rocha:
— Não reconhece
este lugar, Henrique?
Henrique sacudia
a cabeça; não estava reconhecendo nada, nem árvores, nem pedras. Parecia nunca
ter passado por ali; quando um dos cachorros parava e latia para uma moita, iam
espiar o que havia. Às vezes era um coelho ou uma raposa que se escondiam ou
saíam correndo aos pinotes pelo mato adentro. Assim andando, foram parar num
rochedo muito alto; contornaram o rochedo e desceram o caminho que havia atrás
dele. Era uma espécie de trilho existente atrás das pedras. O caminho era
batido e padrinho disse logo:
— Muitos bichos
passam por aqui, vejam como a terra está pisada.
Henrique falou:
— Os bichos vão
tomar água no riozinho que há lá embaixo, padrinho. É uma nascente com água
muito pura.
Padrinho parou
para olhar Henrique:
— Como é que você
sabe que há uma nascente lá embaixo?
Todas as crianças
olharam Henrique quando ele respondeu:
— Eu vim aqui um
dia com Simão e Boni; foi no dia em que a veadinha morreu. Eu me lembro que
paramos, descemos este caminho e bebemos água no riozinho. É um lugar cheio de
avencas e samambaias.
Desceram correndo
para ver se de fato havia a nascente que Henrique falara; lá estava ela entre
samambaias muito verdes e avencas que caíam em pencas nas margens. Padrinho
ficou pensativo; tornou a perguntar:
— Então vocês
passaram por aqui, Henrique?
— Passamos, sim
senhor.
— Nesse caso,
você sabe o caminho da gruta.
— Não sei,
padrinho. Depois que saímos daqui, fomos diretamente para o bosque de
pinheiros. Quando voltamos de lá, fomos para a gruta sem passar por aqui.
Ficaram durante
algum tempo examinando o lugar, tomaram água fresca e voltaram subindo outra
vez por trás do rochedo.
Depois de
caminharem mais de uma hora pelo meio da mata sem encontrar nada, padrinho
resolveu voltar para o lugar onde haviam ficado os botes; já era tarde e ainda
tinham que preparar o jantar e armar as barracas para passarem a noite.
Voltaram pelo mesmo caminho, todo marcado com galhos quebrados e cortes de faca
nos troncos; esses cortes haviam sido feitos de propósito para evitar que se
perdessem e assim pudessem chegar ao lugar onde haviam desembarcado pela manhã.
Trataram
imediatamente de armar duas barracas, todas as crianças auxiliaram; depois
comeram o jantar preparado por Bento. A noite caiu rapidamente. Padrinho chamou
todos para dentro das barracas, não queria que ninguém ficasse fora.
Uma vela ficou
acesa até mais tarde enquanto os mais velhos conversavam; os cachorros
deitaram-se ao lado de Vera e Lúcia e dormiram no mesmo instante; mas era um
sono leve, pois a todo o momento abriam um olho e davam uma espiada para os
lados. Se ouviam um barulhinho qualquer, ficavam alertas, as orelhas espetadas,
esperando alguma coisa.
Quico e Oscar ficaram
na mesma barraca com Vera, Lúcia e padrinho; na outra, ficaram Bento, Tomásio,
Henrique e Eduardo. Às dez horas todos estavam dormindo. Apesar de ser verão, a
noite estava muito fresca. Haviam levado oleados para serem usados caso
chovesse na ilha, mas naquela noite não choveu.
Já estava
chegando a madrugada quando Henrique ouviu uma espécie de assobio; lembrou-se
que os micos assobiavam assim. Levantou-se sem fazer barulho, arrastou-se para
fora da barraca e espiou à volta; havia uma mancha no céu, era o sol que já
vinha surgindo. O rio corria manso e uma leve brisa passava entre o arvoredo.
Pingo estava fora da barraca olhando para todos os lados, um ar desconfiado,
decerto também ouvira alguma coisa. Henrique chamou baixinho:
— Pingo! Pingo!
Vem cá!
O cachorro
aproximou-se amistosamente e Henrique segurou-o pelo pescoço dizendo:
— Quieto! Vamos
ver o que há!
Olhou as árvores
próximas, olhou as moitas, procurou por todos os lados acompanhado por Pingo e
não viu nada; mas tinha certeza de que ouvira o assobio e não se enganara. O
cachorrinho também procurava como se quisesse descobrir alguma coisa escondida
na folhagem. Não seria Boni que estava por ali espiando? Chamou:
— Boni!
Nada. Pingo
levantava o focinho e suas narinas aspiravam o ar; Henrique entrou na mata e
chamou Pingo; caminharam juntos procurando por todos os lados; Henrique subiu
numa das árvores, pois parecia que a folhagem movia-se lá em cima. Chegou até
quase ao alto sem nada encontrar; Pingo, vendo-o desaparecer entre os galhos,
começou a latir como que chamando-o.
Henrique desceu
outra vez e escutou; ralhou com o cachorrinho; só ouviu o vento sussurrar entre
os ramos e o barulhinho do rio que passava sem cessar. Voltou para a barraca
ainda procurando; foi então que encontrou uma casca de banana no chão. Como não
tinham levado banana para a ilha, isso significava que alguém estivera por ali;
ou Simão, ou um dos micos. Decerto tinham vindo espiá-los enquanto dormiam.
Guardou a casca de banana no bolso.
Quando chegou à
beira do rio, viu Bento procurando lenha para fazer fogo; disse que ia preparar
um bom café. Todos já estavam se levantando e Pipoca vinha saindo da barraca,
todo sonolento, atrás de Vera.
Espreguiçou-se e
foi beber água no rio. Vera e Lúcia debruçaram-se na margem para lavar os
rostos; disseram que haviam dormido muito bem. Queriam saber o que Henrique
fora fazer na mata tão cedo, só com Pingo.
Henrique não
mentia; contou que ouvira um assobio e fora "verificar o que era;
encontrara então a casca de banana. A casca passou de mão em mão; era de uma
qualidade de banana que não existia na fazenda; Bento chegou a cheirar a casca
dizendo que o cheiro era de banana selvagem.
Padrinho
examinou-a sem dizer nada.
Depois de terem
lavado os rostos e escovado os dentes, padrinho chamou-os para o café com
leite; madrinha pusera uma lata grande de leite condensado na cesta. Comeram
bolachas e queijo.
Guardaram tudo
novamente e prepararam-se para outra excursão através da ilha.
HENRIQUE SENTE
SAUDADES
Eram ste horas da
manhã quando se embrenharam na floresta; enquanto iam andando, deixavam sinais
de sua passagem para saberem voltar.
Encontraram
orquídeas, viram serelepes pulando entre os galhos, subiram em árvores bem
altas para observar os arredores. Assim caminhando foram dar na prainha.
Eduardo deu
gritos de alegria quando reconheceu o lugar onde ficara sozinho durante uma
semana construindo uma pobre jangada apenas com a machadinha e uma faca. Correu
e mostrou o pé de ingá, cujos galhos estavam dependurados na margem do rio;
mais adiante mostrou uma touceira de bananeiras; infelizmente naquela ocasião
não havia bananas.
Mostrou a pedra
que servia de abrigo quando chovia e sob a qual ele dormia. .Reconheceu as
árvores, das quais tinha cortado os galhos para fazer a jangada.
Ficaram muitas
horas na prainha e resolveram almoçar naquele lugar; Bento fez fogo para o
café. Depois do almoço, que haviam levado em cestas, andaram ainda ali por
algum tempo procurando mais alguma coisa; Henrique então mostrou o lugar onde
estivera sentado no momento em que Simão aparecera pela primeira vez.
Mostrou também o
lugar onde entrara na mata acompanhando Simão; lembrava-se da árvore onde
deixara o canivete cravado para que o irmão visse quando voltasse.
Todos entraram na
mata acompanhando Henrique; ele andava na frente mostrando o caminho que estava
reconhecendo. Seria incapaz de levar a turma até a caverna de Simão, mesmo que
soubesse o caminho. Sabia que isso perturbaria seu amigo e não queria
aborrecê-lo.
Depois de algum
tempo de marcha, parou dizendo que não sabia mais o lugar por onde andara com
Simão, olhou de um lado para outro dizendo que se perdera, não sabia mais nada.
Resolveram então
voltar. Como esse lugar era muito cerrado, um andava atrás do outro, em fila
indiana. De repente pan! Henrique sentiu uma pancadinha na cabeça; olhou para
cima e não viu nada. Apenas uma bolota que lhe caíra na testa. Mais adiante
pan! Outra pancadinha; tornou a olhar para cima. Nada. Apenas uns galhos que se
moviam lá no alto. Seriam seus amigos, os micos, que estavam com brincadeiras?
Ouviu a voz do Bento gritar lá na frente:
— Ih! Já levei
duas pancadas no coco. Não sei o que será!
Nesse instante
Lúcia deu um gritinho:
;— Xi! Eu também.
Levei uma coisinha na ponta do nariz!
Todos começaram a
rir. Pararam e olharam para cima, não havia nada.
Tudo era silêncio
na floresta. Continuaram a andar; Eduardo gritou:
— Eh! Agora é
comigo. Levei uma na cabeça. O que será?
Henrique assobiou
da maneira que os micos assobiavam; um outro assobio respondeu longe, depois
outro e Outro. Henrique sentiu saudades deles. Gritou com animação:
— São eles! São
eles! Um-Dois-Três-Quatro-Cinco! Onde vocês estão? Venham dar um abraço! Sou
Henrin que! Como vai Simão? E Boni? E Lucas?
Todos ficaram
parados, esperando. Vera estava até comovida esperando conhecer os amigos de
Henrique; Lúcia teve um pouquinho de medo e chegou-se para perto do padrinho.
Henrique continuava a chamar; ouviram movimento nas folhas das árvores; todos
esperavam ver a turma de micos aparecer de repente, mas nada apareceu. Apenas o
barulho do vento entre a folhagem. Henrique tornou a chamar com delicadeza.
Nada. Eduardo aconselhou:
— Henrique, fique
sozinho atrás de todos e você vai ver como eles aparecem só para você.
Henrique parou no
meio do caminho enquanto os outros continuaram; mas percebeu que o irmão, os
primos e Bento voltaram disfarçadamente e esconderam-se por trás dos troncos
das árvores. Henrique tornou a chamar e a assobiar; nenhum mico apareceu. Ele
sabia que os amiguinhos não apareceriam enquanto os outros estivessem ali
esperando.
Resolveram
continuar a marcha. Mais adiante Bento gritou esfregando a cabeça:
— Oh! Bichinhos
danados. Jogaram com toda a força outra bolota no meu coco!
Novas risadas.
Vera e Lúcia também levaram bolotadas na cabeça; olharam para cima e não viram
nada. Os cachorrinhos latiam sem saber o que estava acontecendo. Quando
deixaram a mata e chegaram à margem do rio, viram que o tempo havia se
transformado completamente Havia nuvens negras que ameaçavam chuva. Padrinho
disse:
— Vamos nos
preparar que a chuva vem mesmo. E é das boas!
Bento e Tomásio
prepararam rapidamente o jantar. Enquanto jantavam o vento tornou-se tão forte
que parecia querer levar as barracas; tiveram que amarrá-las de novo com cordas
dobradas. Trovões fortes reboaram no céu e tudo escureceu. Correram para dentro
das barracas onde acabaram o jantar; e as primeiras gotas de água começaram a
cair lá fora. A chuva caiu torrencialmente durante quase toda a noite e ninguém
pôde dormir muito bem.
Vera queixou-se
de uma goteira na cabeça; Lúcia ficou impressionada com a enxurrada que
atravessava o chão da barraca. Quico espiou para fora e ao clarão de um
relâmpago, disse que viu «as árvores curvarem-se quase até o chão por causa do
vento».
Henrique passou a
noite pensando em voltar um dia sozinho à ilha, pois assim com tanta gente, não
veria seus amigos; nem Simão, nem os bichos. Mas como voltar sozinho? Daria um
jeito; tinha saudades dos seus companheiros de caverna, mesmo dos que não falavam.
Eram bons amigos, leais e sinceros.
O dia seguinte
amanheceu quente e bonito, mas nova chuva ameaçava cair à tarde; padrinho
resolveu voltar para a fazenda. As crianças protestaram; queriam ficar mais um
dia ou dois; queriam brincar com Boni, ver Simão, brincar com
Um-Dois-Três-Quatro-Cinco. Padrinho prometeu voltar em outra ocasião, deu ordem
para desmanchar o acampamento, no que todos auxiliaram.
Dobraram camas de
campanha, guardaram vasilhas nos sacos, empacotaram o pano das barracas e
colocaram tudo nos barcos. Antes de deixar a ilha, deram ainda um pequeno
passeio pelos arredores; a mata estava muito molhada devido à chuva e
escorregavam a todo o momento. Quico levou um tombo e bateu o nariz num galho
de árvore. Vera e Lúcia ficaram com lama até nas blusas. Padrinho disse:
— Voltaremos
outra vez sem ser tempo de chuva. Vejam como estão bonitos, enlameados desse
jeito!
Colheram algumas
flores para a madrinha; Henrique dizia consigo mesmo: «Um dia voltarei
sozinho».
Entraram nos
barcos de volta à fazenda; quando as canoas contornaram a parte sul da ilha,
pareceu a Henrique ver um braço se agitando na direção dos barcos, numa das
árvores mais altas da ilha. Quico e Oscar disseram quase ao mesmo tempo:
— Se Simão
vivesse mesmo na ilha, ele viria ver-nos. Decerto ele já foi embora.
Henrique ficou
olhando para aquele ponto onde parecera ver um braço se agitando durante algum
tempo, enquanto coçava a cabeça de Pipoca; depois levantou também o braço num
gesto de adeus e gritou bem alto, apesar de saber que Simão não poderia ouvir:
— Até um dia,
Simão!
FIM
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