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"Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem."

Mario Quintana


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Os miseráveis




Os Miseráveis
Literatura em minha casa
Victor Hugo
Tradução e adaptação Walcyr Carrasco
Sumário Geral
Primeira Parte
Um universo sem fim
Nota dos editores
Primeira parte: A liberdade
Capítulo 1 — Jean Valjean
Capítulo 2 — Monsenhor Benvindo
Capítulo 3 — O roubo
Capítulo 4 — A moeda de prata
Segunda parte: O prefeito
Capítulo 5 — Cosette
Capítulo 6 — A fábrica
Capítulo 7 — A queda
Capítulo 8 — Briga na rua
Terceira parte: A perseguição
Capítulo 9 — O acusado
Capítulo 10 — Julgamento
Capítulo 11 — Prisão
Quarta parte: A vida com Cosette
Capítulo 12 — A boneca de louça
Capítulo 13 — Perseguição e fuga
Segunda Parte
Quinta parte: Paris
Capítulo 14 — Marius
Capítulo 15 — Uma família de vigaristas
Capítulo 16 — A cilada
Capítulo 17 — O primeiro beijo
Capítulo 18 — A barricada
Capítulo 19 — À beira da morte
Capítulo 20 — O casamento
Capítulo 21 — A hora do adeus
Por que amo este livro
Primeira Parte
A Liberdade
Capítulo 1
Jean Valjean
Em um dos primeiros dias de outubro, em 1815, antes do pôr-do-sol, um homem
viajava a pé. Tinha aparência assustadora. Seria difícil encontrar alguém com aspecto
mais miserável. Era forte, de estatura mediana. Parecia ter de quarenta e cinco a
cinqüenta anos. Na cabeça, um boné com aba de couro. A camisa, de tecido grosseiro,
mal fechada deixava ver o peito cabeludo. Calças esfarrapadas. Sapatos sem meias.
Nas costas, um volumoso saco de viagem de soldado. Trazia na mão um cajado
de madeira, cheio de nós. Cabeça raspada e barba crescida. O suor e o pó da estrada
tornavam sua aparência ainda pior.
Chegou à cidade francesa de Digne. Lá, ninguém o conhecia na cidade. Como
era hábito na época, passou na Prefeitura para se identificar. Apresentou seu documento,
uma espécie de licença, exigida para viajar pelo país na época. Em seguida, procurou a
melhor estalagem local, de propriedade de um tal Jacquin Labarre. Os fogões estavam
acesos. A lareira aquecia o ambiente. Labarre preparava o jantar destinado aos hóspedes.
Quando ouviu a porta se abrir, sem tirar os olhos do que estava fazendo, perguntou:
— Que deseja?
— Comer e dormir.
— Nada mais fácil!
Olhou o recém-chegado dos pés à cabeça e fez uma observação:
— Pagando!
O homem mostrou uma bolsa de couro.
— Tenho dinheiro.
— Estou às ordens — respondeu Labarre.
O recém-chegado tirou o saco de viagem dos ombros. Sentou-se perto do fogo.
Em Digne, cidade próxima à montanha, na região dos Alpes franceses, as tardes e as
noites são frias. O dono da hospedaria, entretanto, não tirava os olhos do homem.
Escreveu uma mensagem. Deu-a a um rapazinho que lá trabalhava. Este correu
para a Prefeitura. O forasteiro, com fome, perguntou:
— E o jantar?
— Não demora — respondeu Labarre.
O rapaz voltou com a resposta. O dono da hospedaria leu com atenção. Pensou
um pouco. Foi até o viajante e disse:
— Senhor, não posso hospedá-lo.
O homem espantou-se.
— Se quiser, pago adiantado.
— Não tenho quarto.
— Durmo na estrebaria.
— Não é possível, está cheia de cavalos.
— Fico em um canto qualquer. Depois do jantar, combinamos.
— Mas não posso lhe servir o jantar — disse Labarre, com voz firme.
O viajante quis explicar. Falou que fizera uma longa viagem.
— Estou morto de fome e cansaço. Eu pago! Mesmo assim, não posso jantar?
— Não tenho nada para servir.
O homem deu uma gargalhada. Mostrou os fogões.
— Aquilo, o que é?
— Tudo isso já está reservado para os outros hóspedes. Pagaram adiantado.
O viajante insistiu:
— Não saio sem jantar!
O dono da hospedaria aproximou-se e falou-lhe firmemente ao ouvido:
— Vá embora!
Surpreendido, o forasteiro ergueu a cabeça. O outro continuou:
— Já sei como se chama. Seu nome é Jean Valjean! Logo na chegada, desconfiei
da sua pessoa. Mandei perguntar quem é na Prefeitura, onde se identificou. Aqui está a
resposta. Sabe ler?
O homem olhou o papel. Labarre prosseguiu:
— Costumo ser educado. Por isso peço mais uma vez: vá embora!
Sem responder, o outro pegou o saco de viagem. Partiu. Andou pela rua principal,
humilhado e triste. Não olhou para trás. Se tivesse se virado, teria visto o dono da
hospedaria na porta, cercado de gente, falando enquanto o apontava com o dedo. Pelo
jeito daquelas pessoas, sabia que dali a pouco seria comentado em toda a cidade.
Caminhou um bom tempo pelas ruas, que não conhecia. A fome aumentou. Procurou outra
estalagem, onde pudesse hospedar-se.
Por acaso, havia uma no fim da rua. Olhou pela vidraça. Viu o fogo da lareira,
alguns homens que comiam e bebiam. Sobre o fogo, uma panela de ferro que soltava
fumaça. Foi até a porta.
— Quem está aí? — perguntou o dono do local.
— Alguém que deseja comer e uma cama para dormir esta noite.
— Entre. Está no lugar certo.
O homem entrou. Enquanto tirava o saco de viagem, todos o observavam.
Sentou-se à beira da lareira. Estendeu para perto do fogo os pés cansados de
andar. Aspirou o cheiro da comida na panela. Por um instante, seu rosto teve uma leve
aparência de satisfação. Mas em uma das mesas estava certo peixeiro.
Pouco antes, passara pela outra estalagem. Fizera parte do grupo de curiosos
onde se falara do homem. Fez um pequeno sinal ao dono do lugar, que se aproximou.
Conversaram em voz baixa. O estalajadeiro (1) foi até o desconhecido.
Ordenou:
— Vá embora!
O viajante respondeu calmamente:
— Ah! O senhor já sabe?
— Sei!
— Não quiseram hospedar-me na outra estalagem.
— E daqui está sendo expulso!
— Para onde quer que eu vá?
— Para longe!
O homem pegou seu cajado, seu saco de viagem e saiu.
Alguns rapazes que o seguiram desde a outra hospedaria pareciam estar à sua
espera. Atiraram-lhe pedras. Ele os ameaçou com o cajado. Os jovens correram. Em
seguida, caminhou até a cadeia. Havia uma porta com uma sineta.
Tocou-a. Abriu-se uma janelinha na porta. Pediu:
— Senhor carcereiro, pode fazer o favor de me abrigar esta noite?
— A cadeia não é albergue! Dê um jeito de ser preso e dormirá aqui!
Continuou andando. Entrou em uma rua cheia de pequenos jardins. Avistou uma
casinha com a janela iluminada. Mais uma vez, olhou pela vidraça. Era uma sala simples,
pintada de branco, com uma cama, um berço em um canto, algumas cadeiras e uma
espingarda pendurada na parede. Uma lamparina iluminava a toalha de pano grosseiro,
com uma tigela cheia de sopa bem quente.
À mesa, um homem de uns quarenta anos, sorridente, balançava um menino em
seus joelhos. Sua mulher, ainda jovem, dava de mamar a outra criança. O viajante
observou, durante algum tempo, essa cena agradável. Pensou que onde havia tanta
felicidade também devia existir compaixão. Bateu levemente na vidraça. Não ouviram.
Bateu novamente. A mulher falou com o marido:
— Ouvi baterem.
— Não — respondeu o marido.
Bateu pela terceira vez. O dono da casa pegou a lamparina. Abriu a porta.
— Desculpe, senhor — disse o viajante. — Será que se eu pagar, pode me dar um
prato de sopa e me deixar dormir naquele coberto lá do quintal?
— Quem é você?
— Venho de longe. Andei o dia todo para chegar até aqui.
— Por que não vai para a hospedaria?
— Não há lugar.
O dono da casa estranhou:
— Não é possível. Hoje não é dia de feira, nem de mercado. Foi à estalagem de
Labarre?
Sem jeito, o forasteiro balbuciou:
— Ele não me quis hospedar.
— Mas há outra, tentou ir até lá?
— Também não me receberam.
Uma expressão de desconfiança tomou conta do rosto do dono da casa.
Observou o viajante da cabeça aos pés.
— Então... você é o sujeito de que estão falando?...
Afastou-se. Apoiou a lamparina na mesa. Pegou a espingarda. A mulher agarrou
os filhos e correu a refugiar-se atrás do marido.
— Vá embora!
— Por caridade — insistiu o viajante —, um copo de água.
— Leva um tiro, se não for! — respondeu o outro.
Em seguida, bateu a porta. Trancou-a. O forasteiro ouviu enquanto ele colocava
uma tranca de ferro.
A noite descia. O vento frio, vindo das montanhas, aumentava. Exausto, viu em
um quintal uma casinha estreita e baixa. Pensou que fosse onde o jardineiro guardava as
ferramentas. Tinha fome e frio. Conformado com a fome, resolveu pelo menos abrigar-se.
Entrou de gatinhas dentro da cabana, onde havia uma boa cama de palha. Deitou-se. De
repente, ouviu um latido feroz. Olhou. Na entrada da casinha, no escuro, estava um
cachorro enorme. Tinha se abrigado na casinha do cachorro.
Graças à sua grande força, conseguiu se defender com o cajado do ataque do
cachorro, usando o saco de viagem como escudo. Conseguiu sair a duras penas da
casinha e do quintal e pular a cerca. Na rua, sem abrigo, sozinho, expulso até mesmo de
um canil, caiu sentado e disse para si mesmo:
— Não valho nem um cachorro!
Caminhou mais algum tempo, com a cabeça caída no peito. Vagou pelas ruas, ao
acaso. Ao passar em frente à catedral, ameaçou a igreja com a mão cerrada. Finalmente,
deitou em um banco da praça.
Uma velha saía da igreja. Ao ver aquele homem estendido no banco de pedra,
aproximou-se:
— Que faz aí, meu amigo?
— Como vê, estou deitado — respondeu ele duramente, com raiva.
Ela insistiu:
— Nesse banco?
— Por dezenove anos, em vez de colchão, tive uma tábua — disse o homem. —
Hoje posso dormir em um colchão de pedra.
— Foi soldado?
— Sim, minha boa senhora. Soldado.
— Por que não vai para a estalagem?
— Não tenho dinheiro.
— Ih! Só tenho quatro moedinhas — disse a marquesa.
— Mesmo assim, me dê!
O homem pegou as moedas. A marquesa insistiu:
— É muito pouco para pagar a hospedaria. Mas não pode passar a noite aqui.
Deve estar com frio e fome. Talvez alguém o abrigue por caridade.
— Já bati em todas as portas.
— E o que houve?
— Em todas, me recusaram abrigo.
A mulher pegou no braço do homem. Apontou, do outro lado da praça, uma
casinha branca.
— Naquela porta, já bateu?
— Não.
— Pois é lá que deve bater.
(1) O estalajadeiro era o dono de uma estalagem, estabelecimento que
hospedava e servia refeições a visitantes mediante pagamento.
Capítulo 2
Monsenhor Benvindo
À tarde, o bispo de Digne, depois de passear pela cidade, voltara para casa e fora
para o quarto, onde ficaria trabalhando em um livro que estava escrevendo.
Charles-François Myriel, o bispo, também era conhecido como Monsenhor Benvindo. Era
um velhinho de 75 anos, de uma bondade e simplicidade cativantes. Filho de um nobre,
durante a Revolução Francesa (2) emigrara para a Itália. Na juventude, gostava da vida
social.
Mas, depois da Revolução, ao voltar à França, tornou-se padre. Seu amor pelos
semelhantes demonstrava profunda vocação religiosa. Ao ser nomeado bispo da pequena
cidade de Digne, espantou a todos quando se recusou a viver no suntuoso palácio
episcopal.
Ofereceu o palácio ao hospital. Foi morar com a irmã e uma criada fiel na casa
acanhada onde antes funcionava o hospital. Era um homem para quem os ensinamentos
cristãos de humildade e amor ao próximo não eram palavras ocas, mas normas de conduta
que lhe davam, aliás, grande satisfação. Vivia modestamente, destinando grande parte de
sua renda para os pobres. De sua família nobre, que a Revolução levara à ruína, sobravam
apenas uma concha para sopa e seis talheres de prata e dois castiçais também de prata.
Quando havia convidados para o jantar, Monsenhor Benvindo mandava acender os
castiçais em cima da lareira. Essas preciosidades ficavam guardadas em um armário no
quarto do bispo. Eram sua única vaidade. A qualquer hora do dia ou da noite, quem
quisesse entrar só precisava empurrar a porta, pois a porta da sala de jantar, que dava
para a praça da catedral, não tinha mais fechaduras nem trancas.
Naquela noite, ao sair do quarto para comer, o bispo ouviu a criada conversando
com a irmã dele. O assunto era bastante familiar ao dono da casa. A criada não se
conformava com o fato de a porta não ter trinco nem fechadura. Quando fora fazer
compras, soubera que um homem mal-encarado tinha chegado à cidade.
— Verdade? — surpreendeu-se o bispo.
A criada continuou, dramaticamente:
— Todos estão com medo de que alguma desgraça aconteça esta noite. Não
existem lanternas nas ruas para dar um pouco de luz! A polícia não funciona! Digo e repito,
e sua irmã concorda comigo, que...
— Eu não disse nada — interrompeu a irmã do bispo.
— O que meu irmão faz está bem-feito.
A criada prosseguiu, como se não tivesse ouvido nenhum protesto:
— Nós dizíamos que esta casa não oferece nenhuma segurança. Se o senhor
bispo me permitir, vou chamar o serralheiro para colocar de volta as fechaduras e os
ferrolhos. Esta porta, que qualquer um pode abrir, é um perigo! Além disso, o Monsenhor
manda entrar qualquer um que bata à porta, mesmo no meio da noite...
Nesse instante, alguém bateu com força.
— Entre — disse o bispo.
A porta se abriu. Entrou um homem. Era o forasteiro que já conhecemos vagando
pelas ruas à procura de abrigo. Deu um passo à frente e parou. O saco de viagem nas
costas, o cajado na mão. Seu olhar era rude, violento, mas também cansado. Iluminado
pelo fogo da lareira, parecia assustador. A criada tremeu. A irmã ficou aterrorizada por um
instante. Mas depois olhou para seu irmão, o bispo, que permanecia sentado ao lado da
lareira, e acalmou-se.
O bispo observava o desconhecido com o semblante tranqüilo. Quando abriu a
boca para falar, provavelmente para perguntar o que desejava, o homem apoiou-se no
cajado com ambas as mãos. Mediu o velho e as duas mulheres com os olhos e sem
esperar a pergunta do bispo disse em voz alta:
— Meu nome é Jean Valjean. Cumpri pena como forçado das galés por dezenove
anos. Há quatro dias fui libertado. Vou para Pontalier, que é meu destino. Estou
caminhando há quatro dias. Cheguei quase ao anoitecer. Fui a uma estalagem. Mas não
quiseram me hospedar. Quando cheguei, tive de apresentar meu documento na Prefeitura,
como é obrigatório. E o estalajadeiro descobriu quem sou. Fui a outra e me expulsaram.
Bati até à porta da cadeia e não consegui abrigo. Entrei na casinha de um cão e fugi
debaixo de mordidas. Estava deitado em um banco da praça, quando uma senhora me
apontou sua casa e disse para eu bater à sua porta. Que é isso aqui? Uma estalagem? Eu
tenho dinheiro para pagar. É o dinheiro que ganhei em dezenove anos de trabalhos
forçados. Estou exausto e faminto. Posso ficar?
O bispo avisou a criada:
— Ponha mais um talher na mesa.
O homem aproximou-se, surpreso. Insistiu, como se o bispo não tivesse
compreendido:
— Entendeu? Eu sou um forçado das galés. Aqui está meu documento de
identificação. É amarelo, como o senhor sabe. É por causa dele que me caçam onde vou,
porque diz que cumpri pena. Quer ler? Eu sei ler, senhor. Aprendi quando estava preso.
Aqui está, meu documento diz tudo. Veja o que está escrito: "Jean Valjean, prisioneiro,
solto após dezenove anos. Cinco anos de pena por roubo. Catorze porque tentou fugir
quatro vezes. Esse homem é muito perigoso".
É isso. Todo mundo me expulsou. O senhor quer me receber? Pode me dar um
prato de comida e um lugar para dormir? Pode ser na estrebaria.
— Ponha lençóis limpos na cama de hóspedes — disse o bispo à criada.
A criada obedeceu. Saiu para arrumar a cama. O bispo voltou-se para o homem.
— Senhor, sente-se e aqueça-se. Vamos comer daqui a pouco.
Só então o homem compreendeu. Sua expressão, sombria e dura, foi tomada
pela surpresa, dúvida e alegria. Começou a balbuciar, como um louco:
— Verdade? O senhor vai me abrigar? Não me expulsa? Mas sou um
ex-presidiário.
Um forçado! E me chama de senhor! Eu vou comer! Vou dormir em uma cama
com lençóis e cobertas! Há dezenove anos não durmo em uma cama! Os senhores são
pessoas dignas. E tenho dinheiro. Eu pago. Pago bem. Senhor estalajadeiro, como se
chama? Eu pago o que quiser. O senhor é estalajadeiro, não é?
— Eu sou — disse o bispo — um padre, e moro aqui.
— Um padre? E não quer dinheiro? É o padre daquela igreja lá fora, não é? Pois
sim! Como sou idiota. Ainda não havia reparado nos seus trajes!
Enquanto falava, o homem colocou o cajado e o saco de viagem em um canto e
guardou seu documento de identificação. Continuou:
— O senhor padre tem bom coração. Não me tratou com desprezo! Então, não
tem necessidade de pagamento?
— Não, guarde seu dinheiro — disse o bispo.
A seguir o bispo perguntou quanto dinheiro ele tinha. O homem disse a quantia,
revelando ser o pagamento por dezenove anos de trabalhos forçados. Era uma quantia
espantosamente pequena.
— Dezenove anos! — suspirou o bispo.
O viajante contou que não tinha tocado em seu dinheiro, pois havia realizado um
pequeno trabalho ao sair da prisão. O bispo pediu à criada:
— Ponha o prato do convidado no lugar mais próximo da lareira. O vento que vem
dos Alpes é gelado, e este senhor deve estar com frio.
Quando ouvia a palavra "senhor", o homem se emocionava.
— Este lampião dá pouca claridade — disse o prelado.
A criada entendeu o que ele queria dizer. Foi buscar os castiçais de prata, que
acendeu e pôs sobre a mesa.
— Senhor padre — disse o homem —, é muito bom, não me despreza. Além de
me receber em sua casa, manda acender seus ricos castiçais de prata por minha causa.
Mas eu já disse de onde vim, já falei de minhas desgraças.
O bispo pousou de leve a sua mão na do ex-condenado e comentou:
— Podia ter deixado de dizer quem é. Esta casa não é minha, é de Jesus Cristo.
O senhor tem fome e sede. Seja bem-vindo! Não me agradeça. O dono desta casa não
sou eu, é todo aquele que precisa de ajuda. Tudo que há aqui é seu. Que necessidade
tenho de saber seu nome? Mesmo porque, antes de me dizer, eu já sabia como chamá-lo.
— Verdade? O senhor já sabia meu nome?
— Sim — respondeu o bispo. — Devo chamá-lo de meu irmão.
— Senhor padre, quando cheguei estava morrendo de fome. Mas o senhor é tão
bom que já não sei como me sinto. A fome acabou!
O bispo olhou-o nos olhos e continuou:
— Deve ter sofrido muito.
— Oh! O uniforme vermelho. Uma corrente com bola de ferro no pé. No lugar de
cama, uma tábua. Frio, trabalho, pancadas! Sempre acorrentado, mesmo doente e de
cama. Castigo no calabouço por uma palavra! Os cachorros, senhor, são mais felizes!
Dezenove anos. Tenho quarenta e seis! E agora, esse documento de identificação
amarelo, que revela tudo sobre mim!
— Sim! — exclamou o bispo. — O senhor deixou um lugar triste. Mas lembre-se
de que o céu se alegra com um pecador arrependido. Se deixou essa vida dolorosa cheio
de ódio e raiva, é digno de lástima. Se saiu com pensamentos bons, de paz, vale mais do
que qualquer um de nós.
A criada terminou de servir a mesa. Havia sopa de carne de carneiro, figos, queijo
e um pão de centeio. Pusera também uma garrafa de vinho. O bispo rezou e serviu a sopa,
como de costume. O homem começou a comer, avidamente. De repente, o bispo
exclamou:
— Aqui na mesa está faltando alguma coisa!
De fato, a criada pusera apenas três talheres, para o bispo, a irmã e o hóspede.
Mas quando tinha convidados, o bispo gostava de pôr todos os seis talheres de
prata na mesa. A criada entendeu do que se tratava. Saiu e trouxe os talheres de prata.
Enquanto o homem comia, o bispo evitou sermões. Nem perguntou sobre sua
vida.
Percebeu quanto ele sofria de corpo e espírito. Preferiu tratá-lo como uma pessoa
normal para deixá-lo confortável. Falou sobre a região de Pontalier, para onde ele se
dirigia.
— É um excelente lugar — comentou. — Existem fábricas de papel, de aço, de
relógio, curtumes... e também se fabrica muito queijo!
Quando a refeição terminou, a criada tirou a mesa. O bispo disse ao viajante:
— Deve ir dormir, pois está cansado.
O bispo deu boa-noite à irmã e à criada, pegou um castiçal de prata e ofereceu o
outro a seu hóspede.
— Venha para seu quarto.
A casa era dividida de tal maneira que, para entrar no pequeno quarto de
hóspedes, era preciso atravessar o do bispo. Quando passaram, a criada guardava os
talheres de prata no armário junto à cabeceira da cama do prelado.
O bispo levou seu hóspede ao quarto, onde havia uma cama com roupa branca e
limpa. Apoiou o castiçal em uma mesinha.
— Tenha uma boa-noite. Amanhã, não vá embora sem primeiro tomar uma xícara
de leite quente.
O homem teve uma reação inesperada, que gelaria de susto outra pessoa que
não o bispo. Virou-se para o velho, cruzou os braços e disse, com voz estranha:
— Como pode me oferecer um quarto tão perto do seu? E se eu for um
assassino?
O bispo respondeu:
— Deus é quem sabe!
Ergueu a mão e abençoou o forasteiro. Jean Valjean foi deitar. O ex-condenado
apagou a vela com um sopro das narinas, como era costume entre os forçados. Caiu na
cama e dormiu. O bispo foi passear um pouco no jardim. Depois deitou-se. Logo, reinava
um grande silêncio na casa.
(2) Um pouco antes da época em que se passa a história, a França vivia sob o
governo dos reis (monarcas), que centralizavam o poder e determinavam o destino de
seus súditos. Essa sociedade estava dividida em três classes, sendo muito difícil alguém
mudar sua condição social. A primeira era composta pela Igreja. A segunda, pela
aristocracia, também chamada de nobreza, que apesar de rica pagava bem menos
impostos e vivia dos pagamentos recebidos dos camponeses e do governo. A terceira
classe era constituída pelo maior número de habitantes. Dela faziam parte a burguesia
(representada por banqueiros, industriais, advogados, médicos, comerciantes) e também a
camada mais pobre da população. A burguesia, apesar de possuir dinheiro, não tinha
poder de decisão na vida política e estava revoltada com os privilégios da Igreja e dos
aristocratas. Os mais humildes, que viviam na miséria, eram obrigados a pagar impostos.
Os gastos do rei e de sua corte superavam em muito o dinheiro recebido com tais
impostos. O comércio não ia bem e havia ainda as despesas com as guerras das quais a
França participava. Tudo isso resultou na Revolução Francesa, também chamada
Revolução Burguesa, que teve início em 1789 e se inspirou num conjunto de idéias
contrárias ao poder dos reis e ao domínio religioso, pregando a liberdade, a igualdade e a
fraternidade entre todas as pessoas.
Capítulo 3
O Roubo
Durante a madrugada, Jean Valjean acordou.
O ex-condenado pertencia a uma pobre família camponesa. Quando criança, não
aprendeu a ler. Ao crescer, tornou-se podador de árvores. Órfão de pai e mãe, foi criado
por uma irmã mais velha, casada e com sete filhos. Quando tinha vinte e cinco anos, a
irmã enviuvou. O filho mais velho tinha oito anos, o mais novo um. Jean Valjean tornou-se
o arrimo da família. Passou a sustentar a irmã e os sobrinhos com trabalhos grosseiros e
mal remunerados. Nunca namorou, nem nunca se soube que estivesse apaixonado.
Vivia para a família. Falava pouco, tinha o semblante pensativo. Quando comia,
muitas vezes a irmã tirava o melhor pedaço de seu prato para dar a uma das crianças, e
ele sempre permitia. Mas seu trabalho e o da irmã eram insuficientes para sustentar uma
família tão grande. A miséria aumentou. Certo ano, em um inverno rigoroso, Jean Valjean
não encontrou trabalho. A família ficou sem pão. Sem pão. Exatamente como está escrito.
Sete crianças.
Em uma noite de domingo, o padeiro da aldeia ouviu uma pancada na vidraça
gradeada. Correu. Chegou a tempo de ver um braço passando por uma abertura feita por
um murro na vidraça. O braço pegou um pão. O padeiro perseguiu o ladrão, que tentava
fugir. Era Jean Valjean.
Isso aconteceu em 1795.
Por esse crime, foi condenado a cinco anos nas galés. Explica-se: as galés eram
barcos movidos a remo. Os grupos de remadores, acorrentados, eram constituídos por
prisioneiros condenados. Havia um soldo miserável para cada um deles, guardado até a
libertação. Era um trabalho exaustivo, feito somente por condenados. Jean Valjean
recebeu grilhões nos pés. Foi acorrentado.
Deixou de ter um nome, passou a ser um número: 24.601. E sua irmã? E as
crianças? Pergunte a um vendaval onde arremessou as folhas secas. Sem ninguém por
eles, partiram ao acaso. Abandonaram a terra onde nasceram. Foram esquecidos. Com o
tempo, até Jean Valjean os esqueceu. Uma vez apenas, no quarto ano de sua pena, ouviu
notícias de sua irmã por alguém que os conhecera. Vivia em Paris com apenas um dos
filhos, o menino mais novo. Dos outros, nada se sabia. A irmã trabalhava todos os dias
como operária. Deixava o filho numa escola. Mas, como esta só abria mais tarde, o menino
ficava esperando no frio. Essa notícia foi como um relâmpago, como uma janela aberta
sobre o destino de quem ele amava. Uma janela que se fechou e não se abriu novamente,
porque Jean Valjean nunca mais os encontrou, nem soube deles, por mais que os
procurasse mais tarde.
No final do quarto ano de condenação, Jean Valjean tentou fugir. Ficou livre dois
dias, até ser capturado. Foi condenado a mais três anos. Quando cumpriu seis, tentou
outra vez, mas não conseguiu fugir. Resistiu aos guardas que o encontraram em seu
esconderijo e ganhou mais cinco anos, com castigos. No décimo ano e no décimo terceiro,
quis fugir outras vezes, e sua pena aumentou mais ainda. Até cumprir dezenove anos. Por
tentar roubar um pão.
Durante a prisão, o inofensivo podador de árvores tornou-se um homem temível.
Tinha ódio da lei e da sociedade. Por conseqüência, de toda a humanidade. De
ano para ano, sua alma foi se tornando amarga. Desde que fora preso, há dezenove anos,
Jean Valjean não soltava uma lágrima.
Quando saiu, acreditou que podia ter uma nova vida. Mas recebeu uma quantia
miserável pelos dezenove anos de trabalhos forçados. Seu documento de identificação
dizia se tratar de um homem perigoso. Logo arrumou um trabalho para descarregar fardos,
pois era muito forte. Ao receber, ganhou menos do que os outros por ser um
ex-condenado. Sentia-se escorraçado.
Assim, ao acordar de madrugada, na casa do bispo, começou a pensar nos
talheres e na concha de prata. Seu valor era maior do que tudo que ganhara pelos
dezenove anos! Finalmente, decidiu-se. Tirou uma barra de ferro do saco de viagem para
arrombar o armário. Pôs os sapatos nos bolsos, o saco de viagem nas costas. Entrou no
quarto vizinho. A porta estava encostada.
Ao abrir, rangeu. Parou um instante. Seu coração batia com força. E se o bispo
acordasse, desse o alarme? A polícia viria. Seria condenado outra vez. Andou cauteloso
até o armário. Ergueu a barra de ferro, mas não foi preciso usá-la. A chave estava na
fechadura. Abriu. Pegou os talheres. Voltou a seu quarto sem se preocupar com o barulho.
Colocou-os no saco de viagem. Pegou seu cajado, pulou a janela. Atravessou o jardim e
fugiu.
De manhã, o bispo passeava pelo jardim quando a criada veio correndo,
transtornada.
— Monsenhor, onde está o cesto em que guardo os talheres de prata?
O bispo estendeu o braço para um canteiro de flores. Pegou o cesto.
— Aqui está.
— E os talheres?
— Dos talheres, não sei.
— Meu Deus! A prataria!
A criada correu ao quarto, verificou o armário. Voltou apressadamente:
— O homem foi embora. Roubou e fugiu!
O bispo ficou silencioso. Por fim, refletiu:
— Aquela prataria não nos pertencia. Mas aos pobres. Esse homem era um
pobre!
— Com o que vamos comer agora?
— Com talheres comuns. De madeira.
Mais tarde, o bispo almoçava com sua irmã. A criada resmungava:
— Foi uma má idéia abrigar aquele homem! Ainda bem que se contentou em só
nos roubar! Podia ter sido pior!
Quando estava terminando, bateram à porta.
— Entre — disse o bispo.
Três policiais estavam no limiar. Entre eles, amarrado, Jean Valjean.
— Monsenhor bispo — disse o que comandava o grupo.
— Bispo? — surpreendeu-se o preso. — Pensei que era o padre!
— Silêncio! É o senhor bispo! — bradou um policial.
Monsenhor Benvindo aproximou-se e exclamou, com os olhos em Jean Valjean:
— Ah! Voltou! Estimo vê-lo. Mas agora me lembro. Também lhe dei os castiçais de
prata, como o resto. Por que não os levou, juntamente com os talheres?
Jean Valjean abriu os olhos, espantado. Encarou o bispo com uma expressão
indescritível.
— O senhor deu os talheres a esse homem, Monsenhor? — perguntou um
policial. — Nós o vimos com ar de quem foge e o prendemos para averiguar. Estava com
essa prataria...
— E disse que ganhou de um pobre padre, na casa de quem passou a noite? É
verdade. Por que está preso? É um engano.
Os policiais soltaram Jean Valjean.
— Estou livre, realmente? — perguntou, como se não acreditasse.
— Está solto, não ouviu? — disse um dos policiais.
— Meu amigo, antes de ir embora, pegue os castiçais.
O bispo foi até a lareira. Pegou os dois castiçais de prata. Deu-os a Jean Valjean.
A irmã e a criada olhavam para ele em silêncio. Jean Valjean tremia. Pegou os
dois castiçais, com ar desvairado. O bispo disse aos policiais:
— Podem ir, senhores.
Aproximou-se de Jean Valjean:
— Não se esqueça, não se esqueça nunca de que prometeu usar esse dinheiro
para se tornar um homem honesto.
Jean Valjean, que não se lembrava de ter feito essa promessa, ficou sem
resposta.
O bispo continuou, solenemente:
— Jean Valjean, meu irmão, lembre-se de que já não pertence ao mal, mas sim
ao bem. É sua alma que acabo de comprar. Eu a furto dos maus pensamentos e do
espírito da perdição para entregá-la a Deus.
Capítulo 4
A Moeda de Prata
Jean Valjean deixou a cidade como quem foge. Seguia a esmo pelos caminhos,
sem perceber que dava voltas e acabava nos mesmos lugares por onde já tinha passado.
Tinha sensações desconhecidas. Raiva, mas não sabia contra quem. Seria impossível
dizer se era arrependimento ou humilhação. Às vezes, sentia uma espécie de ternura. Mas
em seguida a repelia, devido ao endurecimento dos últimos anos. Assustava-se com seus
sentimentos. Pensamentos passavam por sua cabeça. Quando entardeceu, estava
sentado atrás de uma moita, na planície, absolutamente deserta naquela hora. A poucos
passos, havia uma trilha.
De repente, ouviu um ruído de alegria. Virou a cabeça. Pela trilha vinha um garoto
de uns dez anos, vestido com calças velhas, rasgadas nos joelhos. Era um garoto da
Sabóia. Na época, esses meninos costumavam ir de aldeia em aldeia, fazendo pequenos
trabalhos. O garoto cantava e brincava com algumas moedas que trazia nas mãos. Era,
possivelmente, toda a sua fortuna. Entre elas, havia uma moeda de prata, mais valiosa. Foi
justamente essa que caiu no chão. Rolou até Jean Valjean.
Ele pôs o pé em cima. O garoto foi até ele.
— Senhor, minha moeda! — pediu.
— Qual o seu nome?
— Gervais, senhor.
— Vá embora! — ordenou Jean Valjean.
— Senhor, devolva meu dinheiro — insistiu o garoto.
Jean Valjean olhou para o chão. O garoto o agarrou, tentando fazer com que
tirasse o sapato de cima da moeda. Começou a chorar.
— Levante o pé! Por favor! Minha moeda!
— Ah, ainda está aí? Fuja para se salvar!
Assustado, o garoto começou a tremer. Depois, saiu correndo sem dar um grito.
De longe, Jean Valjean ouviu-o soluçar.
A noite caiu. Jean Valjean não comera nada o dia todo. Pensava, com o olhar fixo
no chão. Estremeceu com a brisa noturna. Levantou-se, pegou o cajado. Nesse instante,
viu a moeda, quase enterrada no chão. Teve um choque.
— O que é isso?
Era como se a moeda fosse um olho aberto, que o fixava. Depois de alguns
minutos, pegou-a. Olhou para longe. Não viu ninguém. Andou depressa, na direção para
onde fora o garoto.
Gritou, com todas as forças:
— Gervais, Gervais!
Ninguém respondeu. Esperou. Começou a correr, com a moeda na mão, à
procura do menino. Se ele tivesse ouvido, apareceria. Sem dúvida já estava longe.
— Menino! Gervais! — Jean Valjean gritava.
Correu para uma encruzilhada, já iluminada pelo luar. Um padre passava a
cavalo.
— Viu um menino chamado Gervais?
— Não — respondeu o padre.
Jean Valjean deu algumas moedas ao padre.
— Para os seus pobres. — Em seguida pediu, alucinado:
— Prenda-me. Sou ladrão!
Amedrontado, o padre esporeou o cavalo e fugiu.
Jean Valjean continuou a correr à procura do garoto. Até que ficou sem voz, de
tanto gritar na planície solitária. Caiu no chão, com as mãos enfiadas nos cabelos, e a cara
escondida nos joelhos. Exclamou:
— Sou um miserável!
Seu coração endurecido sucumbiu à força da emoção. Chorou. Pela primeira vez
em dezenove anos, chorou!
Jean Valjean já não era mais o mesmo homem. O perdão concedido pelo bispo o
ofuscava. Roubara a moeda do garoto em um impulso, por hábito, por instinto. Mas,
quando Jean Valjean tomou consciência de seu ato, veio a angústia.
Ao gritar "sou um miserável", ele se viu como realmente era. Teve horror de si
mesmo. Comparou o bispo a si próprio. A figura do bispo resplandeceu e encheu sua alma.
Durante muito tempo, chorou.
O que fez depois de chorar? Não se sabe ao certo. Mas um rapaz que levava a
mala do correio para Digne e que chegou à cidade às três da manhã, ao atravessar a
praça da catedral, viu diante da porta de Monsenhor Benvindo um homem ajoelhado,
rezando durante a madrugada.
Segunda Parte
O prefeito
Capítulo 5
Cosette
Dois anos se passaram. Em 1817, o rei Luís XVIII da França comemorou seus
vinte e dois anos de reinado.
Napoleão (3) estava exilado na ilha de Santa Helena. A lembrança da Revolução
e das guerras napoleônicas ainda dividia os franceses.
Alguns ainda acreditavam na Revolução, na qual o rei Luís XVI foi destronado e
morto na guilhotina, assim como sua esposa, Maria Antonieta, sendo criada a República.
Com o fim da Revolução, outros acusavam os republicanos de "regicidas".
Boa parte das pessoas concordava que a era das revoluções tinha acabado. Mas
ainda existiam muitos republicanos, como veremos mais tarde.
Vivia em Paris, nessa época, uma jovem costureira chamada Fantine. Era alegre
e gostava de rir. Ao fazê-lo, mostrava seus magníficos dentes. Tinha longos cabelos loiros.
Lábios rosados. Enfim, era linda. Teve um namorado. Mas ele a abandonou.
Para o rapaz, Fantine foi só uma aventura. Para ela, foi seu primeiro amor. A ele
se entregou completamente. Do romance, nasceu uma menina: Cosette.
Abandonada, Fantine tentou, durante algum tempo, sobreviver das costuras. Mas,
durante o romance, abandonara seus fregueses. Não conseguiu recuperá-los. Percebeu
que estava prestes a cair na miséria. Decidiu voltar à sua cidade natal, chamada
Montreuil-sur-Mer, onde talvez ainda encontrasse algum conhecido e um trabalho. Vendeu
tudo o que tinha.
Pagou suas pequenas dívidas. Já tinha perdido a vaidade. Vestia-se
simplesmente.
Usou os vestidos de seda e as fitas de renda que ainda possuía para fazer roupas
para a filha, a quem amava.
Partiu a pé, com a menina. Às vezes, cansada, sofria pequenos acessos de tosse.
Tinha uma preocupação. Como chegar à sua cidade natal com a menina sem ser
casada? Como explicar que tinha uma filha?
Havia nessa época, nas imediações de Paris, em um lugarejo chamado
Montfermeil, uma taverna. Pertencia ao casal Thénardier. Sobre a porta estava uma
tabuleta com uma pintura. Era o desenho de um homem carregando outro nas costas.
Embaixo, uma inscrição: "Ao sargento de Waterloo (4)".
Representava uma cena da famosa batalha em que Napoleão foi derrotado. Certo
dia, na frente da estalagem, brincavam duas meninas, filhas dos donos. Uma, com pouco
menos de três anos. Outra, com dezoito meses. A alguns passos de distância, sentada à
porta da estalagem, estava a mãe. Tinha a aparência pouco simpática. Mas parecia
enternecedora ao cantar para as filhas.
Justamente nesse momento, Fantine passava por lá. Carregava a filhinha e uma
bolsa de viagem, aparentemente pesada. A menina tinha três anos. Era corada e parecia
ter boa saúde. Dormia. Fantine parou, observando as meninas brincarem.
— A senhora tem lindas crianças!
A mãe agradeceu. Convidou Fantine para sentar-se junto a ela. Conversaram. A
viajante contou sua história, um pouco modificada. Disse que era operária e seu marido
falecera. Ia procurar trabalho em sua terra natal.
Contou como a viagem era cansativa com uma criança que mal conseguia andar.
Nesse instante, Cosette acordou. Mostrou a língua para as outras. Dali a pouco,
as três estavam brincando.
— Crianças fazem amizade com tanta facilidade! Até parecem três irmãs! — disse
a senhora Thénardier.
A frase foi como uma faísca. Fantine pegou na mão da mulher e propôs:
— Quer ficar com a menina?
A senhora Thénardier fez um gesto de surpresa. Fantine continuou:
— Será difícil encontrar trabalho com uma filha. Ao ver a senhora, com as suas
meninas, tive uma inspiração. Não será por muito tempo. Eu pago, se cuidar dela.
Uma voz de homem gritou lá de dentro. Exigiu seis meses adiantados e mais uma
quantia para as primeiras despesas. Era quase tudo o que Fantine possuía, mas ela
aceitou.
— Assim que ganhar dinheiro, volto para buscar minha querida!
Dormiu na estalagem. Deixou todo o enxoval da filha. Partiu de manhã,
angustiada pela separação. Chorava. O senhor Thénardier cumprimentou a mulher:
— O dinheiro é exatamente o que me faltava para pagar uma dívida! Boa
armadilha você armou com as meninas brincando!
— E foi sem querer! — concluiu a mulher.
Quem era, afinal, esse casal Thénardier?
A mulher tinha algo de selvagem. O marido, de velhaco. Tinha sido soldado.
Pintara, ele mesmo, a tabuleta da porta, que fazia referência à batalha de
Waterloo, onde Napoleão perdeu a guerra. Tinham duas filhas, como já sabemos. A mais
velha chamava-se Éponine. A mais nova, Azelma.
A taverna não dava lucro. No mês seguinte, Thénardier empenhou o enxoval de
Cosette. Passou a vesti-la com roupas velhas, deixadas pelas filhas. Para comer,
davam-lhe as sobras dos pratos. Comida um pouco melhor que a do cão e pouco pior que
a do gato. Aliás, era com eles que Cosette comia, embaixo da mesa, em uma tigela de
madeira. Sua mãe, Fantine, não sabia escrever. Mas mandava cartas, escritas por outras
pessoas, pedindo notícias da filha. Os Thénardier sempre respondiam que estava bem.
Logo exigiram aumento da mensalidade. Fantine, acreditando ser a filha bem
tratada, aceitou. Mas a senhora Thénardier detestava Cosette. Não cansava de acariciar
as filhas. Para a menina, eram só pancadas. A troco de nada, Cosette recebia violentos
castigos. Mais uma vez, os Thénardier aumentaram a mensalidade. Ao mesmo tempo, à
medida que Cosette crescia, era transformada na criada da casa. Obrigavam a menina a
fazer compras, varrer os quartos, o pátio e a rua, e até a carregar fardos. O casal
Thénardier sentia-se no seu direito. Principalmente porque a mãe começou a atrasar os
pagamentos.
Se a mãe tivesse voltado, não teria reconhecido sua filha. Antes era corada e
bonita. A miséria a tornou feia. Só restavam seus belos olhos, enormes no rosto magro.
Doía o coração ver a menina, que ainda não tinha seis anos, vestida com farrapos,
varrendo a rua ao amanhecer. As mãos roxas de frio. Uma lágrima nos olhos.
O povo a apelidou de Cotovia.
Mas a pobre Cotovia nunca cantava.
(3) Napoleão Bonaparte era um jovem militar que teve grande destaque durante a
Revolução Francesa. Em 1799, com o apoio da burguesia, Napoleão tomou o poder. Um
de seus objetivos era conter os ânimos das camadas populares, garantindo as conquistas
burguesas, além de expandir o território francês. O período que se seguiu ao fim da
Revolução foi marcado por muitas conquistas militares e pela expansão das idéias
revolucionárias francesas ao restante do mundo. Em 1804, Napoleão foi coroado
imperador. Sob seu comando, em 1812, a França dominava quase toda a Europa
ocidental. Em 1814, porém, um exército formado por Inglaterra, Áustria, Rússia e Prússia
invadiu Paris, a capital francesa. Napoleão foi exilado e o trono da França entregue a Luís
XVIII.
(4) Em março de 1815, Napoleão retornou à vida política francesa, prometendo
mudanças. Acabou conseguindo o apoio da população e voltou ao governo. Mas foi
formada uma nova coligação internacional contra a França e Napoleão foi derrotado em
junho de 1815, na Batalha de Waterloo, na Bélgica.
Capítulo 6
A Fábrica
Após ter deixado sua filha com o casal Thénardier, Fantine seguira viagem até
Montreuil-sur-Mer.
Partira de sua terra natal há dez anos. Ao voltar, encontrou-a em franco
progresso. A principal atividade industrial da cidade era fabricar o azeviche inglês e uma
imitação dos vidrilhos pretos da Alemanha. Vinha em decadência por causa do alto preço
das matérias-primas. Mas, há alguns anos, um desconhecido chegara à cidade. Tornou
lucrativa a fabricação de ambos os artigos, introduzindo a resina na fabricação, no lugar da
goma-laca, e a solda nos braceletes e nas pulseiras. Embora a aparência dos produtos
tenha sofrido pouca mudança, o preço de fabricação caiu bastante. As vendas
aumentaram e, com isso, também subiram os salários e os lucros. Em menos de três anos,
o inventor tornou-se rico. A cidade prosperou novamente.
Pouco se sabia sobre ele. Contava-se que chegara com pouco dinheiro no bolso,
não se sabia de onde. Seus trajes e o modo de falar eram de um simples operário. No dia
de sua chegada, houvera um incêndio na Prefeitura. Arriscando a própria vida, o homem
salvou duas crianças no meio das chamas. Eram os filhos do chefe de polícia. Devido a
esse ato de heroísmo, ninguém fez questão de ver sua identificação. Só depois souberam
que se chamava Madeleine.
Tinha cerca de cinqüenta anos, ar preocupado e boa índole. Seus lucros
cresceram tanto que, no segundo ano após sua chegada, fundou uma grande fábrica. Com
ele, a cidade prosperou. Só era intolerante em um aspecto. Exigia honestidade e pureza
de costumes de todos os funcionários. Dizia sempre:
— Seja um homem honesto! Seja uma moça honesta!
Não se preocupava com sua riqueza ou com seu conforto. Sabia-se que tinha
uma fortuna estimada em seiscentos e trinta mil francos, depositados com um banqueiro.
Mas já tinha gasto mais de um milhão para ajudar os pobres e a cidade. Equipou o
hospital. Fundou escolas e um asilo. Criou um fundo para auxiliar velhos e doentes e uma
farmácia gratuita. Praticava caridade às escondidas, muitas vezes deixando uma moeda
de ouro na casa dos pobres sem se identificar. Em 1819, o rei o nomeou prefeito da
cidade. Mas ele não aceitou. Mais tarde, quando seus produtos fizeram sucesso em uma
exposição industrial, o rei quis lhe oferecer a medalha de Cavaleiro da Legião de Honra.
Novamente, recusou. Finalmente, foi nomeado prefeito outra vez. Houve muita insistência
para que aceitasse, e não pôde recusar novamente.
Continuou simples como sempre. Vivia solitário. Às vezes passeava pelo campo
com uma espingarda para caçar. Nunca atingia um animal inofensivo. Mas, se atirava,
demonstrava pontaria infalível. Não se conheciam amigos ou parentes desse homem. Mas
quando, em 1821, os jornais noticiaram a morte do bispo de Digne, aos 82 anos, o senhor
Madeleine pôs luto. Imaginou-se que tinha algum parentesco com o santo bispo. Sempre
que via, também, um menino da Sabóia procurando chaminés para limpar, perguntava seu
nome e lhe dava algum dinheiro. No início, não faltaram comentários e calúnias sobre o
passado desse homem. Mais tarde, conquistou o respeito da população.
Mas, às vezes, ao caminhar por uma rua, percebia estar sendo observado.
Virava-se e via um homem alto, de casacão, chapéu na cabeça e uma bengala nas mãos.
Este acompanhava o senhor Madeleine com o olhar, pensando:
"Já vi esse homem em algum lugar! A mim, ele não engana!"
Era o inspetor de polícia Javert. Tinha nariz chato, lábios finos. Quando ria, o que
era raro, parecia um tigre. Tinha um apego estrito à lei. Mostrava-se implacável no seu
dever de policial. Seria capaz de denunciar o próprio pai ou a mãe. Já dera a entender a
conhecidos que investigara o passado do senhor Madeleine. Nunca encontrara nenhuma
pista para saber de onde viera ou o que fizera até chegar à cidade. O senhor Madeleine
percebia seu olhar fixo, mas não se importava. Só uma vez pareceu se impressionar.
Certa manhã, o senhor Madeleine passava por uma viela. Ouviu um barulho.
Caminhou até um grupo de gente, que cercava um velho caído embaixo das rodas de sua
carroça carregada. O cavalo, também caído, tinha as patas quebradas. O carroceiro era
um velho chamado Fauchelevent. Estava espremido entre as duas rodas, quase sem
poder respirar. Impossível tirá-lo de lá. Para livrar o velho da morte, só levantando a
carroça. Tinha chovido na véspera. No chão sem calçamento, a carroça afundava sobre o
peito do velho. Em pouco, estaria morto. O senhor Madeleine ofereceu:
— Ouçam! Embaixo da carroça ainda há espaço para um homem se agachar e
erguê-la com as costas. Se alguém fizer isso, dou dez moedas de ouro!
Ninguém se moveu.
— Não é falta de boa vontade — disse Javert. — É falta de força.
Em seguida, Javert continuou, sem tirar os olhos de Madeleine:
— Até hoje, só conheci um homem capaz de fazer isso. Era um forçado das galés.
— A carroça está me esmagando — gritou o velho Fauchelevent.
Madeleine encarou Javert. Sorriu, triste. Em seguida, entrou embaixo da carroça.
Apoiou os ombros. Fez um esforço brutal. Para espanto de todos, levantou a carroça o
suficiente para libertar o velho. Todos correram a ajudar.
O velho agradeceu-lhe de joelhos. Madeleine suava, rasgara a roupa e estava
sujo de lama.
Javert o encarava fixamente.
Fauchelevent foi para o hospital. No dia seguinte, recebeu algum dinheiro e um
recado de Madeleine: "Compro sua carroça e o cavalo". O velho carroceiro sabia que a
carroça estava inutilizada. O cavalo morrera. Ficou coxo de uma perna. Ainda graças à
influência de Madeleine, conseguiu o cargo de jardineiro em um convento de Paris.
Foi pouco depois desse fato que Madeleine aceitou tornar-se prefeito. Javert ficou
ainda mais agitado, como um cachorro que fareja um lobo vestido com as roupas de seu
dono.
O inspetor de polícia passou a evitar Madeleine e só falava com ele quando o
trabalho exigia.
Capítulo 7
A Queda
Tal era a situação da cidade quando Fantine regressou.
Não tinha mais conhecidos. Mas encontrou um emprego na fábrica. Passou a
viver do seu trabalho e, novamente, teve esperanças.
Alugou um quartinho e fez dívidas para mobiliá-lo. Comprou um espelho, voltou a
sentir orgulho de seus belos cabelos e dentes. Pensava na filha, Cosette, e sonhava com
um futuro melhor. Por não ser casada, não tinha coragem de contar a ninguém sobre sua
filhinha. Entretanto, logo começaram os mexericos. As colegas da fábrica falavam dela
com hostilidade. Como não sabia escrever, Fantine pagava para um senhor redigir suas
cartas aos Thénardier pedindo notícias de Cosette. Uma vizinha conseguiu o endereço.
Viajou para saber a verdade.
— Vi a filha de Fantine! — contou para todos.
A superintendente da fábrica chamou Fantine e a demitiu. Deu uma pequena
indenização em nome do senhor Madeleine, pois ele exigia moral das funcionárias.
Fantine ficou desesperada. Isso aconteceu justamente quando os Thénardier
pediram novo aumento da mensalidade. Além disso, devia dois meses de aluguel e não
terminara de pagar os móveis. É claro que o senhor Madeleine nada sabia da história. Mas
Fantine, humilhada, preferiu não o procurar. Bateu de porta em porta, em busca de
trabalho. Quando seu dinheiro já estava no fim, conseguiu camisas dos soldados para
costurar. A maior parte do que ganhava enviava para os Thénardier. Um dia, recebeu uma
carta. O inverno se aproximava e Cosette não tinha roupas de frio.
Exigiam mais dinheiro. Desesperada, Fantine amarrotava a carta nas mãos. De
noite, foi até um barbeiro que morava na esquina. Desatou seus lindos cabelos loiros.
— Quanto me paga por eles?
O barbeiro ofereceu justamente uma boa quantia, porque podia usá-los para fazer
perucas.
Fantine vendeu os cabelos. Comprou roupas de inverno e mandou-as aos
Thénardier. Ficaram furiosos, pois queriam o dinheiro. Distribuíram as roupas entre suas
filhas, e a pequena Cotovia continuou passando frio. Fantine, porém, se conformava,
pensando:
"Minha filhinha não tem frio. Eu a vesti com meus cabelos!"
Um dia, recebeu nova carta dos Thénardier. Segundo dizia, Cosette estava muito
doente. Precisavam de mais dinheiro para os remédios. Fantine passou o dia
descontrolada, rindo. Mas sempre pensando na carta. Saiu à rua. Na praça, havia uma
carruagem extravagante. Em cima dela, um dentista vendia dentaduras completas,
pós-dentifrícios e remédios para tirar a dor. Fantine parou para ouvir, rindo com o discurso
do homem. A certa altura, ele observou Fantine e exclamou:
— A moça tem lindos dentes. Pago duas moedas de ouro pelos dois da frente!
Fantine fugiu correndo, tapando os ouvidos. O homem gritou:
— Pense bem. Se decidir, vá à estalagem me procurar. São duas moedas de ouro
— o homem gritou.
Em casa, Fantine continuou a sentir-se horrorizada com a proposta. Depois,
voltou a ler a carta, pedindo dinheiro.
À noite, quando uma vizinha a visitou, Fantine estava sentada diante da vela, em
silêncio.
— Minha filha não vai morrer sem socorro!
Mostrou duas moedas de ouro.
— Onde arrumou essas moedas? — perguntou a velha, surpresa.
Fantine virou o rosto. Sorriu. Na luz trêmula da vela, via-se um buraco negro na
boca. Tinha vendido os dentes.
Enviou o dinheiro. Era uma nova mentira dos Thénardier.
Cosette não estava doente.
Fantine jogou fora o espelho, pois não queria mais se ver. Perdeu os móveis.
Perdeu a vaidade. Andava com roupas remendadas. Às vezes passava a noite
chorando, com tosse. Sentia uma dor no ombro. Quando pensava, odiava o senhor
Madeleine, tão virtuoso, por culpa de quem julgava ter perdido o emprego. Tinha dívidas.
Recebeu uma nova carta. Os Thénardier exigiam uma quantia mais alta ainda.
Ameaçavam pôr Cosette na rua, onde sem dúvida morreria no frio.
— Mas onde vou arrumar tanto dinheiro? — desesperou-se Fantine.
E decidiu vender o que restava de si mesma. Tornou-se prostituta.
Capítulo 8
Briga na Rua
Oito ou dez meses depois, em uma noite em que a rua estava coberta de neve,
um boêmio se divertia na rua. Atormentava uma mulher que andava, de vestido decotado e
com flores na cabeça, diante do café dos oficiais.
— Que mulher feia! Desdentada! — dizia.
A mulher caminhava pela neve, debaixo da zombaria. Ele pegou um punhado de
neve. Rindo, jogou nos ombros nus da moça. Ela rugiu. Saltou. Cravou as unhas no seu
rosto. Xingava com uma voz rouca, que saía de uma boca à qual faltavam os dois dentes
da frente. Era Fantine.
Foram cercados por curiosos, enquanto a mulher esmurrava o homem.
Subitamente, o inspetor Javert aproximou-se. Prendeu a mulher. O agressor fugiu.
Foram à delegacia. Fantine encolheu-se em um canto, como um cão medroso.
Javert ordenou a um policial:
— Leve-a para a cadeia. Será presa por seis meses.
— Seis meses! Eu tenho uma filha, senhor. E devo dinheiro aos Thénardier!
Tenha piedade!
Minutos antes, entrara um homem sem ninguém notar. Quando Fantine ia ser
levada, ele aproximou-se.
— Um instante!
Javert reconheceu o senhor Madeleine.
— Desculpe, senhor prefeito.
Ao ouvir esse nome, Fantine enfureceu-se. Para ela, o prefeito era o culpado de
toda sua miséria. Foi até ele e cuspiu-lhe no rosto. Madeleine não reagiu. Disse apenas:
Essa mulher está livre.
Mas a raiva acumulada durante todo aquele tempo fazia Fantine gritar:
— Esse homem é um monstro. Por causa dele fui expulsa do meu emprego!
— Quanto deve aos Thénardier? — perguntou Madeleine.
— Não tem nada com isso!
Sem entender o que acontecia, Fantine foi para a porta.
— O prefeito me libertou. Quero passar!
Javert impediu.
— Essa mulher quer fugir. Quem mandou soltá-la?
— Eu — disse Madeleine.
— Essa mulher agrediu um rapaz decente — insistiu.
— Foi ele quem a insultou. Ele é que devia ter sido preso.
— Mas ela insultou o senhor, na minha frente.
— O ofendido fui eu, e não quero dar queixa. A maior justiça é a feita pela
consciência!
Mais uma vez, Javert quis insistir na prisão de Fantine.
— A lei diz que ela merece seis meses de prisão!
Madeleine reagiu. Na época, o prefeito tinha poder sobre o inspetor.
— Essa mulher está livre, de acordo com o artigo 81 da lei de 13 de dezembro de
1799, sobre detenção arbitrária. Obedeça-me!
Javert recebeu a ordem como um soldado diante de um general. Madeleine disse
a Fantine:
— Não sou responsável diretamente pela sua demissão da fábrica. Pagarei suas
dívidas e mandarei buscar sua filha.
Emocionada com essa prova de compaixão, Fantine caiu de joelhos. Beijou as
mãos de Madeleine. Desmaiou. Ele a mandou para o hospital. Fantine ardia em febre.
Delirava. O punhado de neve nas costas naquela noite fria desencadeara a
doença. O senhor Madeleine informou-se sobre a vida da moça.
Escreveu aos Thénardier enviando uma quantia muito maior do que Fantine lhes
devia. Pedia que enviassem Cosette o mais depressa possível. O senhor Thénardier
resolveu explorar ainda mais a situação. Inventou novas despesas. Madeleine pagou,
aceitando a nova extorsão. Mas exigiu que Cosette viesse para perto da mãe.
— Não vamos largar essa mina de ouro! — comentou Thénardier com a mulher.
Fantine piorava. O prefeito decidiu buscar Cosette. Pediu para a moça assinar um
bilhete, que guardou com ele:
"“Senhor Thénardier”, Entregue Cosette ao portador. Todas as despesas serão
pagas. Eu o saúdo com consideração.
Fantine"
Nesse espaço de tempo, ocorreu um fato importante, que mudou o rumo da vida
de nossas personagens.
Terceira Parte
A Perseguição
Capítulo 9
O Acusado
Certa manhã, o senhor Madeleine estava em seu gabinete da Prefeitura
colocando em ordem alguns assuntos urgentes. Vieram avisar que o inspetor Javert queria
lhe falar com urgência.
Madeleine teve uma sensação desagradável. Recebeu Javert com frieza. Em tom
respeitoso, Javert pediu para ser exonerado do cargo de inspetor. Madeleine
surpreendeu-se.
— Qual o motivo?
— Mereço ser punido. Eu denunciei uma autoridade.
— Quem?
— O senhor.
— Não entendo.
Javert explicou:
— Há seis semanas, depois que o senhor me obrigou a libertar aquela mulher, eu
o denunciei à chefatura de polícia em Paris. Como antigo forçado.
O prefeito empalideceu. Javert continuou:
— Eu suspeitava do senhor havia muito tempo. A semelhança física. A sua força,
demonstrada quando ergueu a carroça para salvar Fauchelevent. A pontaria certeira. O
jeito que tem de arrastar a perna... achei que fosse um tal Jean Valjean.
— Um tal... como disse que se chamava?
— Jean Valjean. É um forçado que conheci nas galés, há vinte anos, quando eu
era ajudante de carcereiro na prisão. Sabe-se que esse homem, ao ser libertado, roubou
um bispo. E depois, um menino na estrada. Há oito anos é procurado. Suspeitei que fosse
o senhor e fiz a denúncia.
Madeleine aparentava indiferença.
— Que responderam?
— Que eu estou doido. O verdadeiro Jean Valjean foi encontrado.
Levantando a cabeça, Madeleine olhou fixamente para Javert. Este contou o que
soubera: um pobre homem, chamado Champmathieu, fora pego com um ramo de macieira
roubado. Foi para a prisão, onde foi reconhecido por um antigo forçado como o verdadeiro
Jean Valjean. Fizeram averiguações. Concluíram que o homem mudara de nome para se
disfarçar. Outros dois antigos forçados fizeram a identificação positiva. Embora negasse
com todas as forças, Champmathieu era, sem dúvida, Jean Valjean.
— Eu mesmo fui vê-lo. Reconheci o homem. É Jean Valjean! — concluiu Javert.
— Tem certeza? — perguntou Madeleine, em voz baixa.
— É claro. Eu não sei como pude suspeitar do senhor. Peço desculpas.
— E o homem?
— O caso é grave. Se ele é mesmo Jean Valjean, e não há duvidas de que é,
trata-se de um reincidente. E, como tal, sua pena será a prisão perpétua nas galés. O
homem insiste em dizer que se chama Champmathieu. Mas as provas são muito fortes. Eu
mesmo serei testemunha no julgamento em Arras. Ele não se salvará.
— Quanto tempo durará o processo?
— Um dia, no máximo. A sentença será proferida amanhã à noite.
Madeleine se despediu com um aceno de mão. Javert insistiu:
— Devo ser exonerado.
— O senhor é um homem de bem. Exagera seu engano. Continue no cargo. O
ofendido fui eu e estou disposto a esquecer o incidente.
Javert insistiu:
— Desconfiei do senhor injustamente. Abusei do meu cargo denunciando o
senhor, que é inocente. Mereço o castigo. Continuo no meu cargo até ser substituído.
Saiu. Madeleine ficou pensativo, escutando o eco daquele passo firme e seguro,
que se afastava pelo corredor.
Sem dúvida, o leitor já adivinhou que Madeleine era, de fato, Jean Valjean.
Desde o encontro com o bispo, era outro homem. Vendeu a prataria. Guardou os
castiçais como lembrança e se dedicou a uma vida honesta. Atravessou a França. Quando
chegou a Montreuil-sur-Mer, teve a idéia que revolucionou a indústria local. Tornou-se rico.
Tinha dois únicos pensamentos: ocultar seu nome e santificar sua vida. Ou seja, escapar
dos homens e dedicar-se a Deus. Fazia da caridade seu maior objetivo. Mas agora estava
diante de um drama de consciência. Podia permitir que um inocente fosse condenado em
seu lugar? Se o fizesse, todas suas boas ações até agora não teriam sentido. Mas se
denunciasse a si mesmo, seria preso. Ao mesmo tempo, pensava em Fantine. Era sua
oportunidade de redimir uma alma entregue ao desespero.
Na tarde seguinte, foi vê-la na enfermaria. Chamou a irmã Simplice, uma freira
que se havia afeiçoado à doente. Pediu que cuidasse bem de Fantine. A irmã Simplice
tinha uma característica: jamais mentia.
— E Cosette? — perguntou Fantine.
— Logo estará aqui.
Depois de ver a doente, que ficou cheia de esperanças, Madeleine foi alugar um
cavalo e um tílburi, veículo leve, ideal para viajar em velocidade.
"Adotarei a única atitude possível a um homem de bem. Vou salvar o homem!",
decidiu.
Examinou seus livros de contabilidade. Escreveu a seu banqueiro. Ainda hesitava.
— E Fantine? Que será dela?
Em certo momento, voltou atrás.
— O homem vai para as galés. Eu fico livre. Mas ele é um ladrão! Eu continuo
aqui, ajudando a todos. Sou mais útil do que ele.
Abriu seu armário. Decidiu livrar-se de todos os laços que ainda o prendiam a
Jean Valjean. Pegou suas antigas roupas, de quando fora libertado, seu saco de viagem,
seu cajado e até uma velha moedinha de prata, sem dúvida a que roubara do menino.
Jogou tudo no fogo. De repente, olhou os dois castiçais de prata, que o clarão do fogo
iluminava na lareira. Pegou os dois, para jogar no fogo também. Nesse instante, teve a
impressão de que uma voz gritava dentro dele:
— Jean Valjean!
Os cabelos se arrepiaram, como se ouvisse uma voz vinda do túmulo.
— Sim, destrua tudo! Esqueça o bispo! Deixe o homem ser condenado. Continue
a ser prefeito, enriqueça a cidade, alimente os pobres, viva feliz. Mas, enquanto estiver
sendo admirado pela sua virtude, haverá alguém sendo chamado pelo seu nome, na
prisão, com a corrente que você deveria carregar nos pés!
A voz parecia tornar-se mais forte. Colocou os castiçais de volta em cima da
lareira. Andou de um lado para o outro, incansável. Às três da manhã, caiu sentado.
Adormeceu, exausto. Quando acordou, ainda era noite. Nenhuma estrela no céu.
Ouviu um ruído. Era o cavalo com o tílburi.
— Quem está aí? — perguntou.
Responderam que era o cocheiro, com o cavalo e o veículo que encomendara.
Hesitou. Decidiu-se.
— Já vou.
Capítulo 10
Julgamento
Quando Madeleine chegou a Arras, o julgamento já havia começado. Devido à
sua posição como prefeito, não foi difícil entrar na sala do tribunal.
Observou Champmathieu. Era um camponês rude. Assustado. Negava ser Jean
Valjean. Garantia não ser ladrão. Encontrara o galho da árvore já arrancado e aproveitara
para ficar com as maçãs. Não havia invadido o pomar de ninguém. O advogado de defesa
mal tinha o que dizer. O promotor falou de sua vida passada. Do roubo da moeda de prata
de um menino. O acusado quis se defender. Garantiu ter sido carpinteiro em Paris. Teve
uma filha lavadeira, que morreu. O juiz lembrou que seu suposto empregador havia falido e
não fora encontrado. Além disso, já fora reconhecido, inclusive pelo inspetor de polícia
Javert. Dois antigos forçados foram trazidos ao tribunal. Ambos reconheceram o acusado
como Jean Valjean.
O juiz ia terminar o julgamento, quando se ouviu uma voz.
— Olhem para mim!
Era Madeleine. Seus cabelos grisalhos em uma única noite tinham ficado
brancos. Falou com as testemunhas:
— Não me reconhecem?
Os antigos forçados fizeram que não. Madeleine falou com os jurados.
— Ponham o acusado em liberdade. O homem que procuram não é ele. Eu sou
Jean Valjean!
O tribunal silenciou. Julgando que Madeleine estivesse fora de si, o promotor
pediu que chamassem um médico. Madeleine continuou:
— Não estou louco. O juiz está para cometer um erro e condenar um inocente.
Prendam-me.
Virou-se para os antigos forçados que testemunhavam contra o acusado. Chamou
a cada um pelo nome. Comentou:
— Lembra-se, Brevet? Na prisão, você usava um suspensório xadrez. Você,
Chenildieu, tem uma marca de queimadura no ombro direito. Finalmente, você,
Cochepaile, tem uma data tatuada no braço esquerdo. É a data do desembarque de
Napoleão em Cannes, primeiro de março de 1815. Mostre!
Os forçados, surpresos, confirmaram. Madeleine, com um sorriso de triunfo e de
desespero, falou com o tribunal:
— Esta é a prova. Jean Valjean sou eu!
O juiz, o advogado, o promotor, os jurados e o público ficaram em silêncio.
— Já que não me prendem, vou embora. O senhor promotor sabe onde me
encontrar e pode me mandar buscar quando quiser.
Atravessou a multidão devagar. Ninguém o impediu. Na porta, avisou:
— Senhor promotor, estou às ordens.
Saiu. A beleza de seu gesto, ao se entregar para salvar um condenado, provocara
o respeito de todos. Pouco depois, o júri inocentou Champmathieu.
Enquanto isso, o estado de saúde de Fantine piorava. Várias vezes, perguntou à
irmã Simplice sobre o senhor prefeito. Depois, concluiu que ele fora buscar Cosette.
— É por isso que não veio me ver hoje. Foi buscar minha filhinha!
A irmã Simplice rezava para que fosse verdade. Ao anoitecer, Madeleine voltou.
A irmã sugeriu:
— Talvez fosse melhor não ver a doente, enquanto a filha dela não chega. Assim,
ela pensará que o senhor foi buscá-la!
— Preciso falar com ela, porque há urgência.
A irmã permitiu que ele entrasse. Fantine dormia. Seu peito chiava. Estava
branca. Frágil. Mais parecia que estava para voar do que para morrer. Abriu os olhos.
Ao ver Madeleine, sorriu, em paz:
— E Cosette?
Madeleine deu uma resposta evasiva. O médico aproximou-se.
— Está com febre, e a presença de sua filha vai agitá-la. É melhor sarar primeiro.
A pobre mãe insistiu:
— Mas já estou curada!
Em seguida, virou-se para Madeleine:
— Foi muito gentil em ter ido buscar minha filha! Ela é linda, não é?
Madeleine apertou a mão dela nas suas.
— Cosette é linda. Mas sossegue, logo vai vê-la!
Fantine exclamou:
— Eu a estou ouvindo! Meu Deus! Ouço sua voz!
Era apenas o som de uma menininha cantando ao longe. Fantine estendeu os
braços. Subitamente, sua expressão mudou. O rosto empalideceu. Os olhos,
esbugalhados pelo terror. Fez um sinal para Madeleine. Este se virou para trás.
Era Javert.
Pouco depois da saída de Madeleine do tribunal, já haviam se esquecido da
beleza de sua atitude. Foi expedida uma ordem para sua prisão. Orgulhoso por ter sido o
primeiro a identificar Jean Valjean, Javert viera buscá-lo. O prefeito ainda pediu:
— Por favor, me dê três dias para buscar a filha dessa mulher. Se quiser, pode me
acompanhar.
— Está caçoando de mim! — gritou Javert. — Três dias para buscar a filha de
uma prostituta!
Fantine começou a tremer:
— Minha filha! Então, Cosette não está aqui? Onde está, senhor prefeito?
Javert exclamou, agarrando a gola de Madeleine:
— Aqui não há nenhum senhor prefeito. É um ladrão, um forçado chamado Jean
Valjean, a quem eu prendi!
Fantine apoiou-se nos braços magros. Abriu a boca como se fosse falar. Mas
soltou um rugido. Rangeu os dentes. Estendeu as mãos como alguém que está se
afogando e busca onde se agarrar. Depois caiu sem forças no travesseiro. A cabeça bateu
na cabeceira da cama. Curvou-se sobre o peito. Seus olhos perderam o brilho.
Estava morta.
Madeleine se livrou de Javert. Foi até a cama. Ajoelhou-se e cochichou no ouvido
da morta. O que disse, ninguém sabe. Mas irmã Simplice garantiu ter visto um sorriso
brotar dos lábios da morta. Jean Valjean fechou seus olhos. Foi até Javert.
— Pode me levar. Estou às suas ordens.
Capítulo 11
Prisão
A prisão do prefeito foi um escândalo. Em menos de duas horas, esqueceu-se o
bem que praticara.
Muitos diziam sempre ter suspeitado dele. Apenas três ou quatro pessoas
permaneciam fiéis ao prefeito. Entre elas, a velha porteira do edifício onde morava. De
noite, para sua surpresa, Madeleine reapareceu.
— Quebrei a barra de ferro de uma grade e fugi. Vou pegar minhas coisas no
quarto. Enquanto isso, chame a irmã Simplice.
A velha saiu. Ele subiu ao quarto. Pegou os dois castiçais que ganhara do bispo. A
irmã Simplice chegou. Ele lhe entregou um papel.
"“Peço ao senhor padre para tomar conta de tudo que deixo. Faça o favor de
pagar as despesas do meu processo e o enterro da mulher que morreu hoje. O resto, dê
aos pobres.”"
Nesse instante, ouviu-se um ruído na escadaria. Era o inspetor Javert. Jean
Valjean correu a se encostar na parede. A freira caiu de joelhos. Ao ser aberta, a porta
ocultou o homem. Javert ficou perturbado ao ver a freira rezando. Mas seu senso de dever
fez com que perguntasse:
— Irmã, está só neste quarto?
Pela primeira vez na sua vida, irmã Simplice mentiu:
— Estou.
— Desculpe minha insistência, mas a senhora não viu hoje um prisioneiro fugido?
Jean Valjean?
— Não — respondeu a freira, mentindo pela segunda vez.
O inspetor retirou-se. Jean Valjean fugiu.
Mas, alguns dias depois, foi apanhado novamente.
Esses acontecimentos foram narrados por alguns jornais da época. Vejamos
alguns trechos. O primeiro, do Drapeau Blanc, de 25 de julho de 1823, narra os fatos da
seguinte maneira:
"“A polícia descobriu que o prefeito de Montreuil-sur-Mer, um homem chamado
Madeleine, era nem mais nem menos do que um antigo forçado, chamado Jean Valjean, e
condenado novamente por crime e roubo. Parece que pouco antes de sua prisão, Jean
Valjean conseguiu receber das mãos de seu banqueiro uma quantia superior a meio
milhão de francos. Ao que parece, tal fortuna foi ganha de maneira honesta, em sua
fábrica. Mas não se sabe onde Jean Valjean escondeu esse dinheiro, pois não estava com
ele ao ser preso novamente."
O Journal de Paris dizia:
"Acaba de ser condenado novamente um antigo forçado chamado Jean Valjean.
Desmascarado e preso, esse homem, que tem uma força hercúlea, conseguiu
fugir. Mas foi preso quando tomava uma carruagem para Montfermeil. Dizem que
aproveitou os três ou quatro dias de liberdade para retirar uma quantia considerável, que
havia depositado com um banqueiro. Aparentemente, conseguiu esconder esse dinheiro.
Foi condenado à pena de morte. Não apelou da sentença.
Mas o rei, em sua clemência, mudou a pena para trabalhos forçados por toda a
vida. Jean Valjean foi enviado para as galés.”"
Após a prisão de Jean Valjean, a indústria em Montreuil-sur-Mer decaiu. Sua
fábrica fechou. Outras não tiveram mais sucesso. Operários perderam o emprego.
Diminuiu o consumo. Acabou a assistência aos pobres.
Jean Valjean continuava preso, nos trabalhos forçados das galés. Certo dia,
quando o navio estava no porto, um marinheiro perdeu o equilíbrio. Ficou dependurado em
uma corda. Cair seria a morte certa. Subitamente, um homem subiu pelo cordame do navio
em seu socorro. Era um forçado que pedira licença ao oficial para tentar o salvamento.
Autorizado, quebrou o grilhão dos pés. (Só mais tarde refletiram na facilidade com que
arrebentou a cadeia.) Corajosamente, conseguiu chegar perto do marinheiro em perigo.
Amarrou-o com uma corda que trazia na mão. E o içou. Depois, o pegou com os braços e o
levou até seus companheiros. Ao voltar para junto dos outros forçados, cambaleou. De
repente, caiu no mar. Quatro homens pegaram um barco para socorrê-lo. Mas o homem
não voltou à tona. No dia seguinte, um jornal noticiou:
"“Ontem um forçado das galés, depois de socorrer um marinheiro, caiu no mar e
afogou-se. Não foi encontrado o cadáver. Chamava-se Jean Valjean”".
Quarta Parte
A Vida com Cosette
Capítulo 12
A Boneca de Louça
Aos oito anos, Cosette já havia sofrido tanto que às vezes parecia uma velha.
Tinha uma mancha negra no olho, de um murro dado pela senhora Thénardier. Entre
outros trabalhos cansativos, era responsável por buscar água na fonte. A aldeia de
Montfermeil, encravada em um bosque, tinha escassez de água. Era preciso buscá-la em
lugares distantes.
Cosette tomava cuidado para encher os jarros, as garrafas e o barril da estalagem
durante o dia. Morria de medo de ir no bosque na escuridão.
Certa noite, a água do barril acabou. Chegaram mais quatro viajantes. Um insistiu,
zangado:
— Não deram água ao meu cavalo!
Cosette, que estava escondida embaixo da mesa, pôs-se para fora. Garantiu:
— O cavalo bebeu sim. Quem serviu fui eu.
— Tão pequena e capaz de inventar uma mentira tão grande! — reclamou o
homem.
— Vamos, preguiçosa, vá dar água ao cavalo! — exigiu a Thénardier.
— A água acabou.
— Pois vá buscar na fonte!
Cosette pegou um balde quase do tamanho dela. A Thénardier lhe deu uma
moeda.
— Na volta, traga pão!
Lá fora, havia uma feira de Natal com barracas até a igreja. Em uma delas, havia
uma boneca de louça. Para Cosette, a mais linda do mundo. Tinha um vestido de seda
cor-de-rosa, cabelos de verdade e olhos esmaltados. Sozinha, parou em frente à barraca
encantada com a boneca. A Thénardier saiu, ameaçando:
— Ainda está aí? Vá logo, monstrinho!
Cosette saiu correndo, quase tropeçando no enorme balde. Entrou no bosque.
Tinha muito medo. Vontade de chorar. Na fonte, ao encher o balde, não percebeu
que a moeda caiu de seu bolso. Exausta, deitou um pouco fechou os olhos. Despertou
com o frio. De tanto medo, só pensava em atravessar o bosque depressa.
Voltar para a aldeia. Ergueu o balde. Após alguns passos, parou, sem ar. Andou
mais um pouco. Descansou novamente. De novo, ergueu o balde, andando com
dificuldade.
De repente, não sentiu mais o peso. A mão de um homem, enorme, segurava a
alça. Era alto e forte. Tinha cabelos brancos. Andar firme. Cosette não se assustou.
— Minha filha, este balde é pesado demais para você. Eu levo — disse o homem.
Cosette largou o balde, aliviada.
— Que idade você tem?
— Oito anos.
— Você tem mãe?
— Não sei. As outras meninas têm, mas eu não. Acho que nunca tive.
O homem pôs as mãos nos ombros da menina. Tentou ver seu rosto na escuridão.
— Qual o seu nome?
— Cosette.
O homem teve como que um choque elétrico. Pegou no balde e continuou a
caminhar. Perguntou:
— Quem fez você buscar água no bosque a essa hora da noite?
— A senhora Thénardier, dona da estalagem.
— Da estalagem? Então me ensine o caminho. É lá que vou pernoitar.
Cosette acompanhou o homem. Sentia esperança, sem saber por quê.
— A senhora Thénardier não tem criada?
— Não. Sou só eu.
Continuaram andando. Quando estavam perto da estalagem, Cosette pediu.
— Senhor, devolva o balde. Se a senhora Thénardier descobrir que não fui eu
quem trouxe, me dará uma surra.
O homem devolveu o balde.
Cosette aproveitou para olhar a boneca mais uma vez. A Thénardier abriu a porta
furiosa, reclamando da demora. Mas, ao ver o hóspede, mudou de atitude. Tornou-se
amável. O homem entrou. O senhor Thénardier o observou. Vestia-se pobremente. Fez um
sinal à mulher. Ela compreendeu e explicou que não tinha quarto.
— Fico na varanda ou na estrebaria. Pago assim mesmo.
O casal aceitou. Era uma quantia bem maior do que a cobrada normalmente. O
homem pôs um embrulho que carregava e seu cajado em um banco. Sentou-se.
Contemplava Cosette com atenção. Era uma menina feia. Magra. As mãos cheias de
frieiras. Como sempre estava com frio, tinha o hábito de apertar os joelhos um contra o
outro. Vestia-se com farrapos. O corpo estava cheio de manchas, resultado das pancadas
que levava. Mais que tudo, transpirava medo. No fundo de seus olhos, antes belos, só
havia terror. Subitamente, a Thénardier lembrou:
— E o pão?
— A padaria estava fechada — mentiu Cosette, que estava embaixo da mesa
tricotando.
A dona da estalagem estendeu a mão, querendo o dinheiro de volta. Cosette
revirou o bolso. Tinha perdido. Estava apavorada. A Thénardier pegou a palmatória.
— Perdão, senhora, eu não faço mais!
O homem retirou uma moeda do bolso. Fingiu procurar no chão.
— Acabo de ver alguma coisa rolar do bolso da menina. É essa moeda?
Nas mãos tinha uma moeda valiosa. A Thénardier fingiu. Aceitou a moeda,
guardou no bolso e desistiu de castigar Cosette.
A porta se abriu. Entraram Éponine e Azelma, filhas do casal Thénardier. Eram
lindas. Bem vestidas, tinham porte de rainhas. A mãe as abraçou. Foram sentar-se perto
do fogo, coradas, sadias. Nem olhavam para Cosette, a quem consideravam como um
cachorro. Brincavam com uma boneca velha e quebrada. Mas que, para Cosette, parecia
linda. Ela olhava para a boneca, fascinada. O homem percebeu. Foi até a porta. Abriu-a e
saiu. Dali a pouco voltou trazendo a linda boneca que já
descrevemos.
— Tome, é sua.
Cosette se escondeu embaixo da mesa. Seu rosto estava inundado de lágrimas.
Aos poucos, tomou coragem. Pegou a boneca. Éponine e Azelma olhavam com inveja. A
Thénardier foi falar com o marido:
— Velho idiota. Que deseja? Dar uma boneca tão cara a esse monstrinho?
O marido replicou:
— Se o velho é um tonto, que importa? Parece que tem dinheiro, e isso é o que
conta!
O homem continuou em silêncio, pensativo. Cosette foi se deitar, levando a
boneca nos braços. As filhas dos Thénardier também. Os hóspedes se retiraram.
— O senhor não vai descansar? — perguntou o dono da estalagem.
O homem concordou. Thénardier fez questão de lhe oferecer um quarto, embora
ele garantisse que bastava a estrebaria.
Não dissemos ainda, mas era noite de Natal. De madrugada, o viajante
levantou-se. Foi até a lareira. Lá estavam os sapatos de Éponine e Azelma, deixados à
espera de um presente. A mãe já tinha colocado uma moeda reluzente em cada um. No
canto mais escuro, havia um pequeno tamanco de madeira. Cosette também não perdera
a esperança e deixara seu tamanquinho na lareira.
O viajante colocou uma moeda de ouro e voltou para seu quarto. Pela primeira
vez na vida, Cosette teria Natal.
Capítulo 13
Perseguição e Fuga
O senhor Thénardier percebera dois fatos. Em primeiro lugar que, apesar de se
vestir de maneira simples, o homem tinha dinheiro. Em segundo, seu interesse por
Cosette. Logo na manhã seguinte, começou a se lamentar. Falou de suas dificuldades
financeiras. E dos gastos com Cosette. Segundo disse, uma pobre órfã que recolhera por
piedade. O desconhecido se propôs a levar Cosette.
Thénardier fingiu um grande amor pela menina.
Disse que não podia entregá-la a qualquer um. Queria saber seu nome e
endereço. O homem se recusou a dar. Mas aceitou compensar Thénardier dos gastos que
apregoava. Este não deixou por menos. Exigiu uma exorbitância. O homem não hesitou.
Retirou o dinheiro de seu saco de viagem e entregou ao dono da estalagem. Em seguida,
abriu o embrulho que trazia: era um vestido preto, meias e sapatos, justamente do
tamanho de Cosette. Obviamente, desde que chegara, planejava levar a menina.
Partiu com ela. Cosette ia feliz, sentindo-se segura ao lado daquele homem.
Levava a boneca. Mal saíram, a senhora Thénardier criticou o marido:
— Se pagou tão depressa, devia ter exigido mais.
O estalajadeiro concordou. A menina era uma mina de ouro. Correu pelas ruas. Já
estava perdendo as esperanças, quando avistou Cosette e o velho na floresta. Foi até eles.
Estendeu a mão, com as notas que recebera.
— Vim devolver seu dinheiro.
— Por quê?
— Quero a menina de volta.
Thénardier queria, é claro, mais dinheiro. Estava tentando negociar. Continuou:
— Sou honesto. A menina me foi deixada pela mãe. Só poderia entregar Cosette
a ela. Se a mãe morreu, só posso dá-la a quem traga uma ordem deixada pela mãe.
O homem não se alterou.
Thénardier imaginou que fosse pegar o dinheiro. Mas ele entregou um papel. Era
o bilhete de Fantine.
"Senhor Thénardier, Entregue Cosette ao portador. Todas as despesas serão
pagas. Eu o saúdo com consideração. Fantine"
Surpreso, Thénardier ainda quis extorquir algum dinheiro. Lembrou que o bilhete
falava que as despesas seriam pagas. O homem afirmou já ter deixado uma quantia bem
alta nas mãos do estalajadeiro, mais que suficiente. O outro ainda insistiu:
— Se quer levar a menina, tem que me dar mais.
O desconhecido nem respondeu. Empunhou seu cajado, segurou Cosette e
partiu. Thénardier ainda o seguiu durante algum tempo. Mas não teve coragem de atacar,
devido à altura e ao porte do homem, que parecia ser muito forte. O desconhecido foi
embora com Cosette.
Já sabemos que o desconhecido não era outro senão Jean Valjean. Dado como
morto após salvar o marinheiro, na verdade conseguira nadar para terra firme.
Conseguiu documentos falsos. E voltou para buscar Cosette. Levou-a para Paris,
onde alugara um quarto em uma casa de cômodos miserável. Naquele lugar, sentia-se em
segurança. Na casa, os outros cômodos não estavam alugados. Havia apenas uma velha
que atendia à porta e cuidava da limpeza.
Até esse momento, Jean Valjean não conhecera o amor. Nunca vivera uma
paixão. Não se casara, nem tivera filhos. Era um solitário. A menina despertou seu
coração. Dedicava-se inteiramente a ela. Ensinou-a a ler. Falava da mãe e exigia que
rezasse todas as noites. Ela passou a chamá-lo de pai.
Mas logo começaram a falar de Jean Valjean. Ocorre que ao sair para passear
sempre dava esmolas a um velho mendigo. A caridade despertou suspeitas.
Principalmente porque, dizia-se, o mendigo era espião da polícia. Um dia, ao dar
a esmola, Jean Valjean teve a impressão de que o mendigo estava diferente. Notou um
olhar penetrante. Achou que o conhecia. Surpreso, observou-o, quase sem respirar.
Mas o mendigo estava de cabeça abaixada, com o mesmo gorro de sempre,
vestido com farrapos. Voltou para o quarto. Cosette dormia. Ficou ruminando seus
pensamentos. Lamentou não ter falado com o homem, forçando-o a erguer a cabeça
novamente. No dia seguinte, fez o mesmo passeio. Deu a esmola. Quando o velho ergueu
a cabeça, Jean Valjean viu que era o mesmo mendigo de sempre. Sentiu um grande alívio.
Alguns dias depois, de noite, estava com Cosette, quando ouviu alguém entrar na
casa de cômodos. Estranhou. A velha deitava logo após o anoitecer. Apagou a vela.
Fez sinal para Cosette ficar quieta. Ouviu passos firmes, de homem. Ficou imóvel.
A luz de uma vela se infiltrava por baixo da porta. Havia alguém à escuta, em sua porta!
Jean Valjean deitou, mas não dormiu. Quando amanheceu, ouviu passos
novamente.
Aproximou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Viu a silhueta de um homem,
mas não seu rosto, devido à escuridão do corredor. Percebeu que era alto. Usava
sobrecasaca e tinha um cassetete na mão. Parecia Javert!
Logo depois que o homem se afastou da porta, chegou a velha para limpar o
quarto. Comentou que a casa recebera um novo inquilino. Jean Valjean percebeu, pelo
tom de voz da velha, que havia alguma coisa errada. Quando ela saiu, pegou seu maço de
dinheiro e pôs no bolso. Saiu. Foi até a porta da rua. Olhou para os lados. Não havia
ninguém. Voltou. Pegou Cosette. E partiu.
Mas o que ele temia, logo aconteceu. Foi seguido por quatro homens! Cada vez
que Jean Valjean olhava para trás, eles se escondiam, aproveitando o vão das portas e a
sombra das casas. Havia muita neblina. Mas reconheceu o inspetor Javert quando ele
passou embaixo de um poste, iluminado por um lampião. Tentou despistar os
perseguidores entrando em vielas. Estes pareciam aumentar de número. Em certo
momento, enveredou por um caminho que o levaria ao campo. Ouviu os passos que o
perseguiam. Já no meio da rua, percebeu outro grupo logo adiante. Só não foi visto devido
à densa neblina. Estava cercado!
Na esquina, havia um muro bem alto, coberto de hera. Seria fácil escalar, se
estivesse sozinho, pois sempre tivera facilidade para subir em muros e paredes. Com
Cosette nos braços, parecia impossível. Concentrou-se. Tinha pouco tempo. Logo seria
pego.
Conseguiu tirar um cabo flexível, usado para subir e abaixar o lampião de um
poste.
Prendeu Cosette, que ficou esperando, encostada no muro. Subiu. Conseguiu içar
a menina. Logo abaixo, havia o telhado de uma cabana. Desceu até ele com a menina.
Apavorada, pensando que era o casal Thénardier à sua procura para levá-la de
volta, Cosette não fazia um ruído. Do outro lado, ouviam-se os passos dos perseguidores.
Procuravam por todo lado. Mas o muro parecia intransponível, e ninguém supôs
que Jean Valjean pudesse escalá-lo, ainda mais com a menina. Aos poucos, os passos se
afastaram. O homem pulou para o jardim.
Fazia frio. Percebeu que as mãos de Cosette estavam geladas. Podia morrer.
Andou devagar, procurando ajuda. Viu uma luz no prédio principal. Olhou pela
janela.
Uma freira deitava-se, de braços abertos, diante de uma cruz.
Ele afastou-se. Ouviu, então, o som de guizos. Era um homem que coxeava.
Aproximou-se dele, com medo de que Cosette deixasse de respirar a qualquer momento.
— Eu pago bem, se me hospedar por esta noite! — ofereceu, desesperado.
O homem que coxeava observou Jean Valjean à luz do luar. Exclamou surpreso.
— Senhor Madeleine?
Jean Valjean recuou, ainda mais surpreso. Jamais esperara ouvir o nome de
Madeleine novamente. Ainda mais de noite, em um jardim desconhecido, vindo da boca de
um velho corcunda e manco, com guizos amarrados na perna. O velho perguntou, ansioso:
— Mas como veio parar aqui? Parece que caiu do céu!
— Quem é você? Onde estou?
— Mas foi o senhor quem me arrumou este emprego. Não me reconhece mais?
Sou Fauchelevent! O senhor me salvou a vida!
Era o velho a quem Jean Valjean tirara de debaixo da carroça, quando ainda era
chamado de Madeleine. Ele mesmo ajudara o velho a encontrar trabalho depois do
acidente.
— Evitei que fosse esmagado por uma carroça! Que faz aqui?
— Cuido do jardim e do pomar.
— Por que os guizos presos na perna?
— É para avisar as mulheres, as velhas e as moças de que vem vindo um
homem.
Depois que passo, elas saem.
Jean Valjean não entendia. Fauchelevent explicou:
— Estamos no convento de Petit-Picpus. É por isso que não entendo como
entrou.
Homens não são admitidos aqui dentro! Sou o único.
— Uma vez salvei sua vida. Chegou o momento de me retribuir.
— Como?
— Tem um quarto disponível?
— Moro em um barracão escondido das freiras com três quartos.
— Eu peço que me abrigue. E que não fale a ninguém o que sabe sobre mim,
nem procure saber mais do que já sabe.
Fauchelevent concordou.
— O senhor usou sua influência para me arrumar esse trabalho. Nada mais justo
que me peça hospedagem.
— Vamos buscar a menina.
— Que menina?
Jean Valjean foi até onde tinha deixado Cosette. Depois seguiu Fauchelevent até
sua casa, onde um fogo crepitava na lareira. Aos poucos, Cosette foi se recobrando.
Nem Jean Valjean nem Fauchelevent conseguiram dormir naquela noite. O
primeiro sabia que estava numa situação difícil. Fora descoberto por Javert. Não haveria
lugar em Paris onde pudesse se ocultar. A não ser justamente ali, em um convento.
Principalmente porque nesse convento rigoroso, como logo soube, nenhum
homem, incluindo os parentes, podia visitar as freiras. Era um lugar de oração. Nunca seria
procurado ali. Com uma vantagem: as irmãs mantinham uma escola para meninas.
Cosette poderia ser educada! Fauchelevent não conseguia entender o que estava
acontecendo. Desde que fora trabalhar no convento, nunca mais ouvira falar de
Madeleine. Percebia que o homem estava com um grande problema. Mas como entrara no
jardim? E, principalmente, como mantê-lo lá?
Aos poucos, criaram um plano. Fauchelevent concordou em apresentá-lo como
seu irmão à superiora. Explicou estar doente, precisando de quem o ajudasse. Não foi
fácil, porque tiveram que fazer Jean Valjean sair escondido e voltar, desta vez para ser
apresentado à madre. Esta gostou de Cosette. A menina foi admitida como aluna bolsista.
Jean Valjean prendeu guizos nas pernas e passou a trabalhar no jardim e no pomar. Via
Cosette todos os dias. Javert os procurou como uma agulha no palheiro, sem entender
como tinham desaparecido tão completamente.
Durante anos, viveram em paz. Totalmente ocultos, apesar de estarem em plena
Paris. Cosette crescia e se tornava moça.
Quinta Parte
Paris
Capítulo 14
Marius
Barão Marius de Pontmercy
Oito ou nove anos depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, um rapaz
muito pobre vivia na antiga casa de cômodos onde moraram Jean Valjean e Cosette.
Chamava-se Marius. Quem era, afinal?
Seu avô era o senhor Gillenormand, homem vigoroso já na casa dos noventa
anos. Falava alto, enxergava bem, comia por três, roncava alto. Gostava de uma briga.
Vivia com uma filha solteirona, com mais de cinqüenta anos, a quem ele tratava
como se fosse uma criança. Descompunha os criados. Gastara boa parte de sua fortuna e
aplicara o restante em renda fixa. Ou seja: contava com uma boa renda, mas não deixaria
fortuna. Rica, na família, era justamente sua filha, que herdara a herança por parte de mãe.
Politicamente, Gillenormand tinha opiniões ardorosas. Adorava a Casa Real de Bourbon
(5), reconduzida ao trono depois da queda de Napoleão. Tinha horror da República e da
Revolução Francesa, ocorrida em 1789. Justamente por isso, considerava uma vergonha o
casamento de uma outra filha, já falecida. Seu marido fora herói dos exércitos
napoleônicos. Por isso fora nomeado coronel, recebendo também o título de barão.
Embora, com a restauração da casa real de Bourbon, o título não fosse mais reconhecido,
a não ser pelos admiradores de Napoleão.
Dessa filha nascera um menino, Marius, neto de Gillenormand. O avô idolatrava a
criança. Mas obrigara o pai, coronel de Napoleão, a jamais ver o filho. Era essa a sua
condição para educar o menino. O antigo coronel vivia modestamente em uma pequena
aldeia. Cultivava flores. A cada dois meses, ia a Paris e se escondia na igreja para ver o
filho de longe. O sacristão da igreja em Paris e o padre da aldeia eram seus únicos amigos.
Sabiam de sua história e lamentavam o sacrifício do coronel. O menino cresceu, tornou-se
rapaz, sem nunca ter notícias do pai. Quando este morreu, em 1872, Marius recebeu suas
últimas palavras em uma carta testamento. Deixava-lhe o título de barão. E pedia que
sempre fizesse o bem ao sargento Thénardier, que salvara sua vida na batalha de
Waterloo. (Embora, na verdade, Thénardier tivesse tentado assaltá-lo quando estava
inconsciente. Mas isso nem o coronel nem ninguém nunca souberam.)
Marius estudava Direito. Como sempre vivera afastado do pai, não sofreu muito
com sua morte. Julgava-se abandonado. Certo domingo, porém, quando rezava na igreja,
um sacristão aproximou-se e pediu-lhe para mudar de lugar. Mais tarde, quando terminou
a missa, o velho explicou:
— Desculpe-me pelo incômodo. Durante dez anos, observei, neste lugar, um
pobre pai olhando o filho que passava sem poder dirigir-lhe a palavra. O sogro, um homem
rico, ameaçava deserdar seu filho se o pai o procurasse. Sacrificou-se para que o filho
tivesse o futuro garantido. Em admiração a esse pai, gosto de rezar neste lugar. O pior é
que o sogro não gostava dele por motivos políticos, pois tinha sido coronel de Napoleão.
Chamava-se Pontmercy.
— Pontmercy — assustou-se Marius, reconhecendo o nome do pai.
— Exatamente. Conheceram-se?
— Era meu pai.
O sacristão comoveu-se.
— O senhor era aquele menino! Pois saiba: teve um pai que o amava.
Marius ficou comovido. Passou a estudar a história da República e do Império
Napoleônico. A Revolução Francesa e a ascensão de Napoleão Bonaparte o fascinaram.
Deixou de admirar os reis da Casa Real de Bourbon, no poder, para adotar os
ideais revolucionários e democráticos. Em homenagem ao pai, fez cem cartões de visita
com o título "Barão Marius de Pontmercy". Quando pôde, foi procurar o sargento
Thénardier na estalagem, segundo o endereço deixado pelo pai. Mas esta fora à falência,
e não conseguiu descobrir o que fora feito dele e de sua família.
O avô e a tia acreditavam que Marius tinha uma namorada e por isso viajava.
Revistaram suas roupas. Descobriram a carta testamento deixada pelo pai e os
cartões com o título de barão. O avô exaltou-se:
— Que significa essa comédia?
— Que me orgulho do meu pai!
— Seu pai sou eu!
Marius retrucou:
— Meu pai era um homem corajoso, que serviu à República e à França. Morreu
esquecido. Cometeu apenas dois erros na vida: amar demais a pátria e a mim.
O avô não se conteve:
— Ingrato! Seu pai era um miserável! Você é tão barão como meu chinelo! Os
bandidos que fizeram a revolução foram os que formaram a corte de Napoleão! Seu pai só
merece desprezo.
Marius encarou o avô. Bradou:
— Abaixo os Bourbon! Abaixo o imbecil do rei!
O avô reagiu:
— Não podemos viver sob o mesmo teto. Convido-o a deixar esta casa.
Marius abandonou a casa do senhor Gillenormand. Não aceitou a mesada que ele
tentou enviar-lhe. Passou a viver pobremente, vendendo o pouco que possuía.
Sem fogo na lareira, com o casaco roto, sem nada de seu, a não ser as roupas e
um relógio. Gastava pouco, economizando até nas refeições. Às vezes ia ao açougue e
comprava uma costeleta. No primeiro dia, comia a carne. No segundo, a gordura. No
terceiro, os ossos. Conseguiu registrar-se como advogado. Não ganhava muito.
Escreveu ao avô participando a notícia. O velho rasgou a carta furioso.
Todos os dias, Marius passeava no Jardim de Luxemburgo. Ao caminhar,
começou a observar um velho com uma jovem, sempre sentados no mesmo banco na
extremidade de uma das alamedas mais solitárias. O homem, de uns sessenta anos,
cabelos brancos, sério, parecia pouco comunicativo. Desajeitada, sempre vestida de preto,
a jovem parecia uma aluna de internato. Ficou seis meses sem ir ao parque. Ao voltar a
freqüentá-lo, teve uma surpresa. O velho era o mesmo. Mas a jovem transformara-se
numa linda mulher. Vestia-se com elegância. E tinha lindos olhos.
Certa vez, quando Marius passeava na alameda, ela ergueu o rosto com timidez.
Viu neles uma emoção inexplicável.
No dia seguinte, vestiu seu melhor traje. Sentou-se com um livro na mão, mas não
conseguiu ler. Observou o homem e a moça caminharem — pareciam pai e filha. Ao
passar por Marius, ela o olhou com doçura. Marius retribuiu o olhar com o coração batendo
forte. Passou a ir ao Luxemburgo exclusivamente para ver a moça de longe.
Sempre trocavam longos olhares. O pai percebeu. Muitas vezes, ia passear sem a
filha.
Na primeira oportunidade, Marius seguiu a ambos até um prédio modesto. No dia
seguinte, fez o mesmo. O pai, ao entrar, encarou o rapaz. Desde então, nem ele nem a
filha voltaram ao Jardim de Luxemburgo.
Marius foi até onde moravam. Descobriu pelo porteiro que se haviam mudado
sem deixar novo endereço. Ficou desesperado.
(5) Luís XVIII pertencia aos Bourbon, família real francesa que, com a derrota de
Napoleão, retornou ao poder em 1815.
Capítulo 15
Uma Família de Vigaristas
Ninguém se livra dos vizinhos. Na casa de cômodos, vivia, ao lado de Marius,
uma família de quatro pessoas: pai, mãe e duas filhas crescidas, a quem ele nunca vira.
Havia também um garoto de onze a doze anos, que não morava com os pais. Mas nas
ruas de Paris. Era um menino alegre, que gostava de sentir-se livre:
Gavroche. A mãe e o pai não pareciam se importar com o menino. Quando este ia
visitar a família, só encontrava a miséria e nenhum sorriso. Aconteceu que, sabendo que a
família ia ser despejada, Marius pagou os aluguéis atrasados, pedindo ao locador para não
comentar de onde viera a ajuda.
Em um dia de inverno, quando Marius subia a rua, passaram correndo por ele
duas mocinhas, vestidas com farrapos. Falavam em voz baixa.
— A polícia quase me pega! — dizia a mais alta.
Pouco depois, achou um envelope grande caído no chão.
— Coitadas! Perderam o envelope — pensou Marius.
Mais tarde, no quarto, resolveu abri-lo na esperança de encontrar alguma
indicação do endereço das mocinhas para devolvê-lo. Dentro, havia quatro envelopes
menores com os nomes dos destinatários. Todos abertos. Eram cartas pedindo ajuda
financeira com os mais variados pretextos. A letra era sempre a mesma. A assinatura,
diferente. Com certeza, a mesma pessoa escrevera as cartas usando nomes variados.
Marius desistiu de encontrar o dono. Deixou o envelope no canto.
Na manhã seguinte, estava estudando quando bateram à porta. Era uma jovem
magra, de aparência maltratada. Voz rouca.
— Que deseja?
— Vim trazer-lhe uma carta.
Marius abriu e leu uma carta redigida com vários erros de ortografia:
"Honrado vizinho, Soube de sua bondade, pagando o trimestre que eu devia ao
senhorio. O Senhor o abençoe! Minha filha lhe dirá que estamos sem pão há dois dias.
São quatro pessoas, e minha esposa está doente. Julgo que, com seu generoso coração,
não me negará um pequeno donativo.
Com consideração, Jondrette"
A letra era igual à das cartas que encontrara na rua. Enquanto Marius refletia, a
moça passeou pelo quarto sem cerimônia. Folheou os livros. Viu um sobre Waterloo.
— Meu pai também esteve nessa batalha — disse ela. Eu sei ler e escrever.
Duvida?
Para provar, escreveu em uma folha de papel:
"Aí vem a polícia!"
Marius pegou o envelope que encontrara no dia anterior. Devolveu-o à moça. Ela
riu.
— Que coincidência. Procuramos por toda a parte. Logo o senhor foi achá-lo!
Examinou as cartas.
— Esta é para um velho que está sempre na missa e gosta de ajudar os pobres.
Já está na hora. Vou correndo levá-la. Quem sabe consigo algum dinheiro com ele!
Lembrando-se do pedido feito, Marius vasculhou os bolsos. Deu a maior parte do
que tinha à moça. Esta riu.
— Hoje é meu dia de sorte!
Partiu em busca do velho de quem falara. Marius refletiu: que espécie de gente
eram seus vizinhos? A parede que o separava do quarto de Jondrette não era grossa.
Logo encontrou, junto ao teto, três ripas cruzadas sobre um buraco, de onde
podia observar o cômodo ao lado.
Viu um antro sujo, miserável. Poucos móveis. Uma cadeira de palha, uma mesa
bamba e duas camas. Uma lareira com um fogareiro, onde ardiam dois pedaços de lenha.
Sobre a mesa, papel e tinta. Um homem com cerca de sessenta anos, barba grisalha,
pequeno, magro, com aparência cruel e jeito de vigarista, fumava cachimbo.
Uma mulher gorda estava agachada junto à lareira. Uma menina pálida
sentava-se numa cama – era seguramente a filha mais nova.
Marius ia abandonar seu posto de observação quando ouviu um ruído. A porta do
cômodo abriu-se e entrou a filha mais velha. A mesma que fora a seu quarto.
— Ele vem — anunciou ela.
— Ele quem?
— O velho caridoso que está sempre na missa. Vem nos visitar, para conhecer
nossa situação!
O homem animou-se. Começou a preparar o cômodo para despertar ainda mais a
piedade da pessoa que esperava. Apagou a lareira. Furou a palhinha da cadeira.
Mandou a filha mais moça quebrar um vidro da janela. Ordenou à mulher:
— Deite na cama para ele pensar que está doente!
A menina chorava com a mão ensangüentada. Cortara-se no vidro. Ele rasgou um
pedaço da camisa para fazer um curativo.
— Soluça, chora alto! — mandou.
Esperaram ansiosos a chegada do futuro benfeitor. O homem impacientou-se:
— E se ele não vier? Será que apaguei o fogo, quebrei o vidro e estraguei a
cadeira à toa? Ah, como odeio os ricos! Olham para nós com repulsa. Nos dão roupas e
pão, nunca dinheiro. Acham que com dinheiro vamos nos embriagar! O homem deve ter
perdido o endereço!
Bateram de leve. Jondrette assumiu uma postura humilde. Abriu a porta com um
sorriso falso.
— Entre, senhor benfeitor... com essa linda moça!
Um velho e uma jovem entraram. Para surpresa de Marius, eram eles: o pai e a
filha do Jardim de Luxemburgo. Ela, que procurava havia tanto tempo!
A moça pôs um embrulho na mesa. O velho explicou que eram roupas, meias e
cobertores. Jondrette tentava lembrar-se do nome com que assinara a carta pedindo
ajuda.
— Foi Fabantou — disse a filha mais velha, baixinho.
Ele lamentou-se:
— Veja minha situação, senhor! Sem pão, sem fogo na lareira! Minha única
cadeira, furada. Um vidro quebrado na janela, e neste frio! A mulher doente!
Subitamente, sem que o velho ouvisse, Jondrette segredou à mulher:
— Preste atenção nesse homem!
E continuou a lamentar-se:
— Amanhã vence o prazo do aluguel! Seremos despejados!
O velho pôs uma moeda na mesa. Em seguida, tirou o casaco e colocou-o no
encosto da cadeira.
— Só tenho essa moeda, senhor Fabantou. Vou levar minha filha e volto mais
tarde com o dinheiro do aluguel.
O meu casaco agora é seu.
Jondrette derramou-se em agradecimentos.
Assim que o homem saiu, Marius saltou de seu posto de observação do cômodo
ao lado. Correu para a rua.
Queria seguir o pai e a filha para descobrir o novo endereço. Foi inútil. Estavam
em uma carruagem de aluguel. Voltava desanimado quando encontrou a filha de
Jondrette.
— Por que está triste? — perguntou ela.
Marius teve uma inspiração. Pediu que encontrasse o endereço do velho e da
moça. A jovem garantiu ser capaz de descobrir qualquer endereço em Paris. Mas disse
isso com tristeza, percebendo o interesse do rapaz pela outra.
Ao voltar para o quarto, Marius ouviu a voz de Jondrette.
Subiu na cômoda para espiar pelo buraco.
— Só pode ser ele. Eu o reconheci, mesmo depois de oito anos — comentava
Jondrette com a mulher.
— Tem certeza?
— Logo vi de quem se tratava. Vou acertar contas com esse senhor. E a moça...
só pode ser ela!
A mulher revoltou-se:
— Minhas filhas quase nuas. E ela tão elegante! Não posso acreditar que aquela
desgraçada tenha se transformado na moça que esteve aqui, tratando minhas filhas como
se fosse uma dama!
— O importante é que ele não nos reconheceu, pois em outro caso não voltaria!
Vamos ganhar uma fortuna!
Capítulo 16
A Cilada
Jondrette colocou o casaco e o chapéu.
— Vou chamar uns amigos para me ajudar.
Saiu. Seus passos ecoavam pela escada.
Marius decidiu frustrar seus planos, claramente criminosos. Foi até o posto de
polícia mais próximo.
Expôs tudo o que presenciara ao inspetor do dia. Por uma extraordinária
coincidência, não era outro senão Javert. Este entregou duas pistolas ao rapaz. Pediu que
observasse o cômodo do vizinho de maneira que não fosse visto. Deveriam pensar que
não estava em casa. Quando a quadrilha estivesse em ação, Marius avisaria com um tiro,
para todos serem pegos em flagrante.
Marius fingiu sair e voltou para cima da cômoda. O quarto de Jondrette estava
diferente. Com o dinheiro recebido, comprara carvão. Dentro da lareira, colocara um
grande fogareiro cheio de brasas. Sobre ele, aquecia um formão. Perto da porta, viu
algumas ferramentas e cordas. Jondrette olhou em torno.
— Precisamos de mais duas cadeiras. Vá pegar no cômodo do vizinho.
Todos sabiam que Marius nunca trancava a porta. O rapaz teve um calafrio. Mas o
quarto estava escuro. A mulher entrou, pegou as cadeiras e saiu sem vê-lo. Continuou
olhando. Jondrette pegou uma faca e experimentou o corte.
Marius engatilhou a pistola.
O sino tocou seis horas. Minutos depois, o velho senhor voltou. Tinha uma
aparência serena.
— Fique à vontade, meu benfeitor — disse Jondrette.
O velho colocou um maço de dinheiro sobre a mesa.
— É para o aluguel e outras despesas urgentes.
Enquanto ele falava, a mulher saiu e disse para a carruagem de aluguel ir embora.
Marius apertava a coronha da pistola, já engatilhada. A polícia estava por perto,
pronta para a emboscada. Não havia o que temer.
— E sua filha, que estava machucada? — perguntou o velho.
— Foi para o hospital fazer um curativo, com a irmã — mentiu Jondrette.
— Sua mulher não estava doente?
— Piorou muito. Mas tem uma resistência de ferro! É corajosa!
A mulher agradeceu o cumprimento.
— Sempre amável comigo, Jondrette.
— Jondrette? Não se chama Fabantou? — estranhou o velho.
— É meu pseudônimo, pois sou artista! — inventou Jondrette.
Em seguida, ofereceu aquilo que considerava seu único tesouro. Um quadro
representando um homem carregando outro nas costas. Por sinal, muito mal pintado.
Mais parecia uma tabuleta de estalagem.
Enquanto falava, outro personagem entrou no cômodo. Tinha braços tatuados. O
rosto sujo de fuligem, como quem quer se disfarçar. O velho senhor virou-se, surpreso:
— Quem é?
— Um vizinho.
A porta se abriu novamente. Entrou outro homem, de rosto também sujo.
Jondrette mostrou o quadro, falando bastante para distrair o velho. Logo quatro
desconhecidos estavam dentro do quarto.
Todos imóveis, de cara suja e braços nus. O velho encostou-se na parede.
Observou o cômodo, percebendo estar cercado. Caíra numa cilada. Jondrette mudou de
tática. Deixou de tentar vender a pintura. Aproximou-se com atitude ameaçadora e gritou:
— Vamos tirar a máscara! Não me reconhece?
Nesse instante, mais três homens entraram no quarto, mascarados. O primeiro
trazia um bastão. O segundo, de grande estatura, um machado. O terceiro, uma enorme
chave, roubada de alguma porta de cadeia. Para concretizar seus planos, Jondrette só
aguardava a chegada desses homens. O velho, pálido, estava atrás da mesa, como para
se proteger. Mas, surpreendentemente, tinha uma atitude de desafio. Os homens que
haviam chegado primeiro tiraram, do monte de ferramentas junto à porta, uma enorme
tesoura, um formão e um martelo e ficaram na frente da porta.
— Não me reconhece? — insistiu Jondrette.
— Nunca o conheci.
Jondrette debruçou-se sobre a mesa, feroz:
— Não me chamo Fabantou, nem Jondrette! Sou o estalajadeiro Thénardier, de
Montfermeil. O senhor me conhece muito bem. Lembrou-se?
O homem ruborizou-se levemente, mas continuou sem alterar a voz.
— Continuo sem saber quem é!
Marius, porém, nem sequer ouvira a resposta. Estava abalado. Thénardier era o
homem que salvara seu pai! Prestes a disparar o tiro para avisar os policiais, hesitou.
Quase largou a pistola. Que fazer? Deixar de cumprir a última vontade do pai?
Mas, nesse caso, permitir um crime?
— Não me reconhece? — gritava Thénardier. — Doador de bonecas! Há oito anos
levou de minha estalagem a filha de Fantine! A menina era o meu ganha-pão! E me
ameaçou com seu cajado no bosque! Ladrão de crianças! Mas agora o mais forte sou eu!
Quando Jondrette se calou, o velho respondeu:
— Sou um homem pobre, não um milionário. Está me confundindo com outra
pessoa.
— Ainda insiste em negar? Que gracinha! Não sabe quem sou?
— Vejo que é um bandido!
Thénardier berrou, furioso:
— Bandido! É o nome que os ricos nos dão! Fali, vivo escondido, não tenho o que
comer. Sou um bandido! Ouça bem, senhor milionário, já tive algo de meu. Fui um soldado
de Waterloo! Essa pintura que quis vender me representa! Salvei um general!
E você, o que é? Mas, agora que tive a bondade de lhe contar todas essas coisas,
fique sabendo: quero dinheiro, muito dinheiro! Ou dou cabo de você aqui mesmo!
Angustiado, Marius escutava atento. A menção a Waterloo lhe dera a certeza. Era
o mesmo Thénardier da carta testamento de seu pai!
Thénardier encarou o homem:
— Que tem a dizer, agora?
Um dos homens tirou a máscara. Ergueu o machado:
— Se é preciso rachar lenha, aqui estou!
— Por que tirou a máscara? — perguntou Thénardier.
— Para rir — disse o bandido.
Havia instantes o velho observava todos os movimentos de Thénardier. Quando
este se virou para o homem do machado, aproveitou a oportunidade. Empurrou a cadeira
com o pé e a mesa com a mão. Pulou com espantosa agilidade para a janela.
Abriu-a. Já estava prestes a saltar para fora, quando seis mãos robustas o
agarraram.
Eram os homens sujos de fuligem. A senhora Thénardier o puxava pelos cabelos.
Os outros bandidos correram. Um deles ergueu uma barra de ferro sobre a cabeça do
velho. Marius pôs o dedo no gatilho, prestes a disparar a pistola.
— Perdoe-me, meu pai! — pediu.
Thénardier gritou:
— Não o machuquem!
Marius não disparou. Acabara a urgência, pois não havia risco de vida imediato.
O homem lutava com os bandidos. Derrubara dois deles. Mas os outros o
dominaram.
Revistaram-no. Trazia apenas uma bolsa com algumas moedas e um lenço.
Thérnadier exigiu:
— Amarrem o homem no pé da cama.
Foi preso, com nós bem fortes, perto da lareira. Thérnadier sentou-se à sua
frente:
— Senhor, não devia ter tentado pular pela janela. Podia ter quebrado uma perna.
Vamos conversar. Estou impressionado. Até agora, não soltou sequer um grito.
Surpreso, em seu esconderijo, Marius percebeu que era verdade. Thénardier
continuou:
— Podia ter gritado: "Socorro, ladrões". Mas não. Concluo que não quer atrair a
polícia. Nós também não.
Thénardier levantou-se. Foi até o fogareiro, mexeu nas brasas. O prisioneiro
notou que o formão estava branco com o fogo, semeado, aqui e ali, de estrelinhas
vermelhas.
— Vamos nos entender — disse Thénardier. — É rico, mas não pretendo
arruiná-lo.
Quero uma boa quantia. Escreva o que eu vou ditar.
Empurrou a mesa para perto do prisioneiro. Ofereceu o tinteiro, a caneta e uma
folha de papel.
— Escreva.
— Estou amarrado, não posso.
Um braço foi desamarrado.
Thénardier ditou:
— "Minha filha... assim que receber este bilhete, venha imediatamente, com a
pessoa que o entregar, e que sabe onde estou. É absolutamente necessário".
O prisioneiro perguntou:
— Para quem é a carta?
— Está farto de saber. Assine!
O homem assinou e pôs o endereço no envelope. Thénardier entregou a carta
para a mulher. Esta saiu, acompanhada pelo homem com o machado.
Em seu quarto, Marius esperava, ansioso. Estava disposto a morrer para salvar a
jovem, quando esta chegasse. Passou algum tempo. Thénardier dirigiu-se ao prisioneiro:
— Escute. Minha mulher não vai trazer a moça até aqui. Vai levá-la a um
determinado local, fora da cidade. Será deixada com um amigo. Quando minha mulher
voltar, dizendo que deu tudo certo, o senhor será solto. Quando me der o dinheiro,
devolverei sua filha. Se me denunciar... adeus!
Horrorizado, Marius não sabia o que fazer. Devia disparar a pistola? Mas, nesse
caso, a moça raptada poderia ser morta! Não era mais o pedido do seu pai, mas também
seus próprios sentimentos que o impediam de avisar a polícia.
Ouviram-se passos.
— A patroa voltou — disse Thénardier.
Era ela, de fato. Chegou vermelha, com os olhos faiscando. Berrou:
— O endereço era falso! O nome também! Corte esse homem em pedaços!
Queime-o vivo, até dizer onde está sua filha e onde esconde o dinheiro!
Marius respirou, aliviado. A moça estava salva! Enquanto isso, Thénardier
sentou-se sobre a mesa. Em voz lenta e feroz, falou com o prisioneiro:
— Você me logrou. O que pretende?
— Ganhar tempo! — respondeu o outro, com uma voz forte como o trovão.
No mesmo instante, desvencilhou-se da corda, da qual se soltara sem que
ninguém percebesse. Só continuava preso por uma perna. Ergueu a voz e exclamou:
— Olhem!
Estendeu o braço. Pegou o formão em brasa e cravou na própria carne. Sentiu-se
o cheiro de carne queimada. Marius cambaleou, horrorizado. Os bandidos estremeceram.
O rosto do velho apenas se contraiu.
— Não tenho medo de nada, eis a prova. Nem de vocês — disse.
— Agarrem-no! — gritou Thénardier, ao ver que ele atirava o formão pela janela.
Três bandidos pularam em cima do homem. Thénardier pegou a faca. Marius
ergueu a pistola, pronto para desferir o tiro salvador. Mas percebeu a seus pés, sobre a
mesa, uma folha de papel, iluminada pelo luar. A folha onde a filha de Thénardier
escrevera, para mostrar que era instruída:
"Aí vem a polícia".
Era a solução! Poderia salvar a vítima e poupar o assassino. Pegou a folha,
colocou um pedaço do reboco para dar peso e atirou pelo buraco no cômodo vizinho.
Bem a tempo. Thénardier avançava para o prisioneiro com a faca.
— Um papel! — gritou a senhora Thénardier.
— O que é? — perguntou o marido.
A mulher pegou a mensagem. O marido leu. Exclamou:
— A letra é de Éponine. Vamos fugir.
— Sem cortar o pescoço do homem? — reclamou a mulher.
— Não dá tempo!
— Fugir por onde?
— Pela janela. Éponine deve ter jogado o bilhete pela janela. Este lado está livre!
Foi uma correria. Puseram uma escada de cordas pendurada para fora da janela.
— Depressa, mulher! — mandou Thénardier.
— Nós primeiro — gritaram os bandidos.
— Vamos tirar a sorte! — propôs um.
Thénardier gritou:
— Para que perder tempo? Escrever os nomes, colocar os papeizinhos em um
boné...
— Querem meu chapéu? — disse uma voz, vinda da porta.
Todos viraram-se. Era Javert. Estava com o chapéu na mão, sorrindo.
Os bandidos tentaram pegar as armas. Javert pôs o chapéu de volta à cabeça.
Entrou no quarto, de braços cruzados e espada na bainha.
— Ninguém sai pela janela. Só pela porta. Vocês estão em sete, nós em quinze.
Nada de reagirem.
Thénardier ergueu a pistola. Apontou para Javert. Este o encarou, corajosamente:
— Não atire, que vai falhar.
Thénardier puxou o gatilho. O tiro falhou.
— Não disse? É melhor se entregarem. Resistir é inútil!
Fez um gesto para o corredor. Os policiais entraram. Os bandidos foram
algemados.
Javert sentou-se à mesa, onde estavam ainda o papel, o tinteiro e a caneta.
Começou a escrever.
— Aproxime-se a vítima — ordenou.
Não viu ninguém. O homem desaparecera. Durante a confusão, a porta ficara
guardada mas a janela não. Desamarrado pelos policiais, o prisioneiro se aproveitara de
um momento de distração e fugira. Um policial olhou para fora. Não havia mais ninguém.
— Diabos! — resmungou Javert. — Era a melhor presa!
Capítulo 17
O Primeiro Beijo
Jean Valjean adotara nova identidade. Passava por um comerciante aposentado,
vivendo de rendimentos, com o nome de Último Fauchelevent. Morava em uma casa
simples, na rua Plumet. Cercada por grades, com jardim, a casa possuía duas saídas, uma
pela rua da frente, outra pela de trás. Ideal para fugir, no caso de ser descoberto.
Vivia com Cosette e uma criada do interior, gaga, chamada Toussaint.
Por que deixara o convento tão seguro? Fora feliz como jardineiro. Vira Cosette
crescer. Mas sua consciência o atormentava. Seria justo fazer com que Cosette se
tornasse religiosa, sem conhecer nada do mundo? O convento tornara-se o seu universo.
Não seria uma escolha da menina. Mas uma falsa vocação, imposta pelas circunstâncias.
Cinco anos após os fatos narrados, o velho senhor Fauchelevent morreu. Jean Valjean
procurou a superiora. Revelou que herdara uma pequena herança e pretendia deixar o
convento para ir viver com sua filha. Fez questão de pagar uma boa quantia pelos anos de
estudo da menina, e partiu. De seu, só levava uma mala pequena, velha, onde guardava
as roupas de Cosette quando menina. O mesmo traje preto com que a vestira ao salvá-la
das mãos dos Thénardier.
Durante algum tempo, manteve três endereços (motivo pelo qual, ao segui-lo,
Marius não descobrira a casa da rua Plumet). Entretanto, acreditava que, passado tanto
tempo, sua fuga fora abafada. Pouco saía. Só para passeios com Cosette no Jardim de
Luxemburgo, como já vimos. Aos domingos, não perdia a missa. Na casa da rua Plumet,
não recebia visitas nem vizinhos. Seu contato com o mundo exterior era uma caixa do
correio, colocada na porta. Por ela, recebia os avisos de impostos. Também recebia os
avisos da Guarda Nacional (6). Esse é um detalhe importante, pois nos últimos anos se
incorporara à Guarda Nacional, com o nome de último Fauchelevent. Era um costume de
muitos burgueses da época.
Possuía um uniforme militar que vestia três ou quatro vezes por ano para
participar das atividades da corporação. Tratava-se de um trabalho voluntário, que lhe
dava prazer. Ao mesmo tempo, ajudava a fazer com que ele se parecesse com um homem
comum. Quando saía com a filha, vestia a farda, parecendo um oficial reformado. De noite,
punha roupas de operário, com um boné a lhe ocultar parte do rosto. Cosette se habituara
à vida misteriosa do pai. Criada entre as freiras, pouco conhecia do mundo.
Um dia, ao olhar-se no espelho, percebeu que era bonita. Ao passar na rua, ouvira
um comentário que era sim bonita, mas se vestia mal. A própria criada comentou com o
pai, certa vez:
— Senhor Fauchelevent, Cosette está ficando bonita.
Começou a se preocupar com as roupas. Com um instinto natural, abandonou os
vestidos mal cortados para se trajar com elegância. Foi quando Marius a reviu no Jardim
de Luxemburgo e notou sua transformação. Iniciou-se a troca de olhares. Jean Valjean
notou. E passou a detestar o jovem apaixonado. Como já contamos, anteriormente, Jean
Valjean não conhecera o amor de uma mulher, perdera a mãe ainda pequeno e não tivera
filhos seus. Todo o amor que possuía estava concentrado em Cosette. Não suportava a
idéia de algum dia perdê-la, mesmo para um marido.
Decidiu não voltar ao Jardim de Luxemburgo. Restringiu seus passeios aos limites
da casa da rua Plumet. Cosette entristeceu-se. Mas nunca se queixou.
A vida de ambos tornou-se ainda mais solitária. Sua única distração era praticar a
caridade. Por esse motivo, Jean Valjean havia caído na cilada de Jondrette, na verdade,
Thénardier.
Ao livrar-se da tocaia, Jean Valjean voltara para casa. A ferida provocada pela
queimadura doía. Inventou uma desculpa. Não quis médico. Passou um mês com febre.
Cosette cuidava do pai com dedicação. Apesar da doença, Jean Valjean estava alegre.
Sentia renovar-se a antiga alegria da vida a dois, semelhante à da época do convento.
Nem mesmo o encontro com Thénardier o preocupava. Salvara-se. E fugira mais uma vez
de Javert.
Marius ficou desesperado. Durante dois meses não teve notícia de Cosette.
Finalmente, Éponine cumpriu sua promessa de descobrir onde morava o homem
e a filha. Mostrou a casa da rua Plumet. O rapaz começou a rondar o endereço. Descobriu
uma barra da grade que estava solta. Várias vezes Cosette assustou-se vendo uma
sombra no jardim. Finalmente, Marius tomou coragem e deixou uma carta para a jovem.
Esta a encontrou no banco do jardim. Não havia como identificar quem a deixara. Mas, no
fundo do coração, ela sabia.
Ao anoitecer, no dia seguinte, quando Jean Valjean saiu, a moça foi para o jardim.
De repente, teve a sensação de estar sendo acompanhada. Virou-se. Era Marius.
Magro, pálido, sem chapéu e muito emocionado. Ela quase desmaiou. Encostou-se em
uma árvore, com o coração palpitando. Ele aproximou-se. Murmurou:
— Não tenha medo. Venho aqui todas as noites na esperança de vê-la. Leu minha
carta? Espero que não esteja zangada. Perdoe minha ousadia. Mas se não lhe falasse,
morreria.
Percebeu que Cosette estava prestes a desmaiar. Correu até ela. E a amparou
com os braços.
— Então, também me ama? — perguntou ele.
— Cale-se! Sabe que sim! — respondeu a moça com voz fraca.
Marius sentou no banco, e ela ao seu lado. Não sabiam o que dizer. Como se
encontraram seus lábios? Como a ave canta, a rosa floresce?
Um beijo, eis tudo.
Após o beijo, ambos estremeceram e se olharam, fulgurantes.
Ela deitou a cabeça em seu ombro.
— Como se chama? — perguntou.
— Marius. E você?
— Cosette.
A partir daí, todas as noites Marius entrava no jardim pela grade solta. Namorava
Cosette. Para Jean Valjean, a alegria da moça era uma prova de felicidade. Não
suspeitava dos encontros. O amor entre os dois cresceu. Um já não podia viver sem o
outro.
Em junho de 1832, graves acontecimentos políticos passaram a agitar Paris. O
movimento republicano crescia. Certa noite, Marius observou que Cosette havia chorado.
— Que aconteceu?
— Meu pai decidiu que vamos para a Inglaterra, daqui a uma semana.
— Quando, exatamente?
— Não sei.
— Vão voltar?
— Também não sei.
— E você também vai? — insistiu Marius.
— Como não vou, se meu pai vai?
Cosette segurou a mão do rapaz. Marius ergueu os olhos para o céu.
— Só me resta uma solução...
— Qual?
— Não posso dizer.
De repente, Cosette sorriu.
— Mas você pode nos acompanhar. Para onde eu for, você irá também.
O jovem retrucou.
— Com que dinheiro?
A verdade é que nos últimos tempos, Marius fora viver na casa de um amigo,
Courfeyrac. Sem trabalho, vivia de empréstimos.
— Você só me vê à noite, não repara como me visto.
De dia, me daria uma esmola. Não tenho sequer como pagar o passaporte!
Cosette soluçava.
— Não chore! — disse ele.
— Como não vou chorar, se vou embora, e você não pode ir?
— Você me ama? — perguntou o rapaz.
— Eu adoro você, Marius!
Ele pensou. Fez um pedido:
— Amanhã não espere por mim.
— Por quê?
— Não posso dizer. Vamos sacrificar um dia, para não perder o resto da vida.
Cosette olhou para ele. Viu que tinha esperanças. Marius lembrou-se:
— Você não tem meu endereço. Deixe-me dizer onde moro, para o caso de
acontecer alguma coisa.
Pegou um canivete do bolso e escreveu o endereço da casa de Courfeyrac, onde
se hospedava, na cal da parede: "Rua de La Verrerie, 16".
Em seguida, despediu-se.
Qual era a idéia de Marius? Simplesmente, casar. Como não tinha idade,
precisava da permissão do avô. No dia seguinte, foi procurar o senhor Gillenormand.
Há quatro anos não se viam.
Gillenormand teve vontade de correr para o neto de braços abertos. O coração
transbordava de meiguice. Mas o orgulho o impediu de demonstrar.
— O que vem fazer aqui? — perguntou.
Marius se humilhou. Ajoelhou-se.
— Tenha piedade de mim!
O avô ordenou:
— Se veio pedir alguma coisa, diga logo do que se trata.
— Quero me casar.
— Casar, aos vinte e um anos? Com quem, se a pergunta não é indiscreta?
Antes que Marius respondesse, o avô continuou, irritado:
— Quanto ganha como advogado?
— Nada!
— A noiva é rica?
— Tanto quanto eu.
— Não tem dote! E o pai, como se chama?
— Fauchelevent.
O avô gritou, furioso:
— Sim senhor, que engraçado! Vinte e um anos, uma moça sem dote e sem
renda!
E ainda diz que é barão! Será muito engraçado ver a futura baronesa
pechinchando na quitanda!
— Mas...
— Não consinto! Nunca!
Pegou uma bolsa de moedas e atirou para Marius.
— Tome isso, para comprar um chapéu. Está muito mal vestido.
Marius estava petrificado. O avô riu e piscou os olhos.
— Não seja bobo. Faça dela sua amante.
O rapaz empalideceu. Ergueu-se.
— Já ultrajou meu pai. Agora ofende a mulher que eu amo. Adeus!
Saiu, apressado. Surpreso, o avô quis fazer um gesto. Não deu tempo. Marius já
batera a porta. Como que fulminado, o avô percebeu a extensão do que dissera.
Gritou:
— Corram atrás dele! Que mal eu fiz! Desta vez não volta mais!
A filha acudiu. Ele foi para a janela.
— Marius, Marius, Marius.
O rapaz já estava longe. O senhor Gillenormand caiu sentado numa cadeira, sem
conseguir conter as lágrimas.
(6) A Guarda Nacional era um agrupamento militar, formado pela população em
1789. Cansados dos privilégios exclusivos à nobreza, influenciados e apoiados pela
burguesia, seus integrantes haviam tomado e destruído a Bastilha, prisão que
representava a tirania dos governantes, e se apossado das armas lá existentes. Na
Bastilha é que, até então, ficavam confinados os presos políticos, considerados inimigos
do rei.
Capítulo 18
A Barricada
Marius andou sem rumo. Só voltou para casa de madrugada. Foi acordado por
Courfeyrac e outros estudantes, seus amigos.
— Você vai no enterro do general Lamarque? — perguntou Courfeyrac.
O general Lamarque fora um herói do exército de Napoleão Bonaparte. Seu
funeral tornou-se, na verdade, o estopim para a revolta de 1832 contra a restauração da
Monarquia. Toda essa questão política tivera origem na Revolução Francesa, com a
deposição da realeza e a instauração da República. Mais tarde, Napoleão Bonaparte
conquistara o poder. Mas, após o Império Napoleônico, a casa real de Bourbon, dos
antigos reis franceses, reconquistou o trono. Os partidários de Napoleão e também os
republicanos, adeptos das idéias da Revolução, não se conformavam.
Marius pretextou uma indisposição. Os amigos partiram. O rapaz colocou no bolso
a pistola que Javert lhe havia entregue na noite em que os Thénardier prepararam a cilada
para Jean Valjean. Como deixara a casa de cômodos logo em seguida, nunca devolvera a
arma. Vagou por Paris, sem perceber que começava uma rebelião sangrenta.
Entrou no jardim da rua Plumet, como prometera a Cosette. Não a encontrou. As
janelas estavam fechadas. Não havia luz ou ruído vindos do interior. Sentou-se nos
degraus da entrada. Pôs as mãos na cabeça:
— Se perdi Cosette, prefiro morrer.
Uma voz o chamou:
— Senhor Marius!
Ergueu a cabeça. Uma voz rouca avisou:
— Seus amigos o esperam na barricada da rua Chanvrerie.
Pensou ter reconhecido a voz de Éponine. Ao olhar, só viu um rapazinho virando a
esquina.
Que acontecera com Cosette? Naquele dia, mais cedo, Jean Valjean fora passear,
vestido de operário. Não suspeitava dos encontros de Cosette com Marius.
Mas andava preocupado. Já notara Thénardier nas proximidades da casa da rua
Plumet. De fato, Thénardier havia fugido da prisão, com seus comparsas, e pretendia
assaltar a casa, pois ficava em uma rua isolada. Como Jean Valjean supunha, Thénardier
não conhecia a identidade do morador. Mas, naquele dia, ao passear no jardim, vira um
endereço escrito na cal da parede: "Rua de La Verrerie, 16". Do que se tratava? De um
sinal? De um aviso? Para quem? De uma coisa tinha certeza: um desconhecido
conseguira entrar no jardim.
Jean Valjean estava refletindo quando alguém jogou um bilhete da rua. Abriu.
Era uma mensagem com letras grandes:
"MUDE-SE!"
Não podia imaginar a verdade. Fora Éponine. Notando a movimentação do pai e
de seu bando, decidiu avisar a família. Principalmente, por causa de Marius. Quando Jean
Valjean tentou descobrir quem jogara o bilhete, viu apenas um vulto já distante.
Fora com Cosette e a criada para seu terceiro endereço, enquanto preparava a
partida para Londres. Marius não podia supor. Desesperado, decidiu ir encontrar seus
amigos.
O que acontecera?
A batalha entre republicanos e monarquistas começara nas ruas de Paris. Os
republicanos eram, porém, em número muito pequeno. O grupo de estudantes, liderado
por Courfeyrac, formara um cortejo seguido por artistas, operários e portuários, armados
de bastões e baionetas. No grupo estava até mesmo um velho, antigo colecionador de
livros raros, e autor de uma rara obra sobre botânica. Com a idade e a escassez de
recursos, já não tinha o que comer. Acompanhava o grupo sem consciência do que fazia,
por desespero. Cantando, gritando e correndo à frente dos demais, ia Gavroche. A certa
altura, este entrou em uma loja. Viu uma pistola. Gritou, entusiasmado:
— Senhor, vou pegar emprestada a sua pistola!
E pegou a pistola sob as barbas do comerciante. Menino criado nas ruas,
Gavroche era filho do casal Thénardier. A mãe se interessava pelas filhas, mas pouca
importância dava ao menino. Este fora para as ruas. Vivia de expedientes, incluindo
pequenos roubos. Tinha um grande coração. Esperto, sabia encontrar onde se abrigar.
Era capaz de grandes gestos, como roubar a carteira de um ladrão para deixar
com um pobre velho sem recursos. Entusiasmado, tinha um espírito ardente e alegria de
viver.
Gavroche exclamava para quem assistia à passagem do grupo armado:
— Avante, para a batalha!
O bando de rebeldes aumentava à medida que percorria as ruas. Na rua
Chanvrerie, levantaram duas barricadas, uma em cada extremidade. Tomaram posse de
uma taverna, transformada em quartel-general. Hastearam uma bandeira vermelha.
Cada rebelde recebeu munição.
Até anoitecer, tudo ficou calmo. O governo estava concentrando forças. Em breve,
sessenta mil homens iriam enfrentar os cinqüenta que estavam nas trincheiras.
Entre os cinqüenta, havia um homem alto, grisalho, com expressão decidida.
Gavroche o observava.
Foi até Enjolras, um dos líderes, e avisou:
— Aquele homem é policial. Talvez até espião.
— Como sabe?
Gavroche o conhecia das ruas. Enjolras foi até ele.
— Sabemos que é da polícia.
— Sou um agente da autoridade.
— Como se chama?
— Javert.
Imediatamente, foi preso e amarrado. Examinaram seus bolsos. Tinha um cartão
de identidade como policial. Encontraram também uma ordem para espionar os rebeldes.
Depois disso, devia verificar a existência de um bando de malfeitores nas margens do
Sena. Javert foi amarrado a uma coluna, com os braços atrás das costas.
— Será fuzilado — decretou Enjolras.
— Podem me matar.
— Agora não. Temos que economizar munição.
— Podem me matar a facadas.
— Não somos assassinos.
Pouco depois, Marius chegava. Foi um dos últimos a entrar na barricada. O
ataque do governo logo aconteceu. Mostrou-se heróico. Com tiros de pistola, salvou
Courfeyrac e Gavroche, que estavam na mira dos soldados. Por pouco, também não
morreu. Quase foi atingido por um disparo de fuzil. Mas um desconhecido entrou na frente.
Pôs a mão na arma e desviou o cano. Imediatamente, Marius agarrou uma tocha e
aproximou-a dos barris de pólvora. Ameaçou explodir tudo. As tropas do governo
recuaram.
Durante a breve trégua, foi examinar o outro extremo das barricadas. Ouviu uma
voz:
— Senhor Marius!
Era a mesma voz que o chamara, avisando que seus amigos estavam nas
barricadas. Olhou. Não viu ninguém.
— Aqui no chão! — disse a voz.
Curvou-se. Era um rapazinho sujo de sangue. Rosto magro e pálido.
— Não está me reconhecendo? Sou eu, Éponine!
Abaixando-se, Marius se convenceu: era a mesma mocinha que fora até seu
quarto, vestida em trajes masculinos.
— Estou morrendo — disse ela.
— Está ferida? Vou levá-la para a taverna, para ser medicada!
Quis erguer a moça, mas ela gritou de dor.
Éponine ergueu a mão, em cuja palma havia um buraco negro.
— Que tem na mão?
— Um furo.
— De bala?
— Viu o fuzil que apontaram para o senhor?
— Vi o fuzil e a mão que o desviou.
— Era a minha.
— Que loucura! Mas o ferimento não é grave. Ninguém morre por ter sido ferido
na mão.
— A bala atravessou minha mão, mas penetrou no meu peito. É inútil tentar me
salvar. Se quer ser bondoso, sente-se ao meu lado. Ouça.
Marius obedeceu. A jovem pôs a cabeça em seus joelhos.
— Não estou sofrendo mais! — disse ela.
Virou o rosto com esforço.
— Sabe, senhor Marius, quando via você naquele jardim, eu me sentia triste. Era
tolice, pois fui eu mesma que lhe dei o endereço.
Perguntou, com um sorriso de dor:
— Acha que sou feia?
Ouviu-se Gavroche cantar. Ela contou que o garoto era seu irmão. Depois, disse:
— Fique aqui. Logo vou partir para sempre. Tenho no bolso uma carta para o
senhor, desde ontem. Devia tê-la posto no correio. Mas não queria que chegasse às suas
mãos. Perdoe-me.
Marius recebeu a carta. Ela pediu:
— Agora, me faça uma promessa.
— Qual?
— Quero um beijo na testa, quando estiver morta. Afinal, quer saber um segredo?
Acho que estava apaixonada pelo senhor.
Tentou sorrir e expirou.
Marius curvou-se e beijou a testa de Éponine.
Em seguida, procurou um lugar iluminado. Abriu a carta. Era de Cosette.
Contava que viajaria para a Inglaterra dentro de oito dias. Dava o endereço onde
estaria até lá, com seu pai. Quando Jean Valjean decidira mudar às pressas, Cosette
escrevera e endereçara a carta. Viu um rapazinho na rua. Tratava-se de Éponine,
disfarçada.
— Pode fazer o favor de colocar esta carta no correio? Aqui está o dinheiro.
Éponine, com ciúmes, não pusera a carta no correio.
Ao lê-la, Marius teve a certeza de ser amado. Mas do que adiantava? Seu avô
proibira o casamento, e ela ia partir para a Inglaterra. Entretanto, queria se despedir de
Cosette. Lembrou-se também do pedido de seu pai para ajudar Thénardier. Tendo sabido
por Éponine que Gavroche era filho do antigo estalajadeiro, decidiu pedir-lhe que levasse
um bilhete ao novo endereço de Cosette. Assim, salvaria a vida do menino. Este estaria
fora das barricadas na luta final, que não demoraria. Ele, Marius, diria adeus a seu grande
amor.
Escreveu:
"Nosso casamento é impossível. Meu avô não o permite, nem temos meios para
viver. Só me resta morrer. Amo-a, e sempre a amarei. Adeus"
Em outro papel, escreveu:
"Meu nome é Marius Pontmercy. Levem meu corpo para a casa do meu avô,
senhor Gillenormand, na rua..."
Guardou no bolso. A morte seria inevitável no confronto final, já sabia. Era apenas
um grupo de heróis contra um exército. Pediu a Gavroche para levar o bilhete.
O menino hesitou. Não queria deixar a barricada. Mas obedeceu. Correu até a rua
indicada no endereço.
Cosette estava deitada, com muita dor de cabeça. Jean Valjean, sentindo-se
seguro, nem tomara conhecimento da rebelião. Ouviu o barulho da batalha, mas não se
importou. Caminhava satisfeito pela sala, quando viu o mata-borrão sobre o bufê. O
mata-borrão usado para secar a tinta da caneta, conservara impresso em letras invertidas
o texto do bilhete enviado por Cosette a Marius. Agora, refletira a mensagem no espelho.
Jean Valjean pôde lê-la perfeitamente. De início, não quis acreditar. Leu várias vezes.
Entendeu, então, os súbitos rubores de Cosette, a alegria.
— É um rapaz!
Teve um impulso. Saiu. Chegou à frente do prédio justamente quando Gavroche
se aproximava. O menino aproximou-se. Conferiu o endereço.
— Onde fica o número 77?
Uma idéia atravessou a mente de Jean Valjean. Arriscou:
— É você que traz a carta que estou esperando?
— O senhor? A carta é para uma mulher.
— Não é para a senhorita Cosette?
— Cosette? Ela mesma.
Jean Valjean estendeu a mão.
— É isso. Pode me entregar. Levo para ela.
Gavroche acreditou. Deu a carta.
— Vem do governo provisório!
— Para onde mando a resposta?
— A carta vem da barricada da rua Chanvrerie. Boa noite, cidadão!
Gavroche partiu. Jean Valjean entrou. Leu a carta. Por um momento, sentiu-se
feliz. Se Marius morresse, estaria livre do rapaz. Ficaria novamente sozinho com Cosette,
como pai e filha. Ao mesmo tempo, a dúvida se insinuou em seu espírito.
Seria correto permitir a morte do rapaz?
Vestiu o uniforme completo da Guarda Nacional. Saiu.
Caminhou na direção da barricada.
Capítulo 19
À Beira da Morte
Jean Valjean chegou à barricada. Vestido com o uniforme, pôde passar pelo
exército e penetrar por uma das aberturas. Ao chegar, trocou seu uniforme com um pai de
família, que queria partir. Era a única maneira de sair sem ser morto pelos soldados.
Marius o cumprimentou, surpreso. Mas não havia tempo para conversas. De manhã, a
artilharia investiu contra os rebeldes. Estes lutavam com heroísmo. Mas a munição
acabava. Subitamente, todos notaram um vulto de menino pular a barricada.
Era Gavroche, que voltara logo após entregar a carta. Levava um cesto.
Gavroche entrou no campo de batalha, entre os soldados e os rebeldes. Catava
os cartuchos deixados pelos soldados do governo mortos no ataque à barricada.
Courfeyrac gritou:
— Saia, está chovendo bala.
Gavroche cantava, como se nada estivesse acontecendo. As balas zuniam. O
menino ia de um cadáver a outro retirando os cartuchos. Sua atitude desafiava os
atiradores. Ria e cantava. Miravam contra ele, mas não acertavam o alvo. Parecia pular
entre as balas. No entanto, uma bala mais precisa o atingiu. O menino cambaleou. Caiu.
Os rebeldes gritaram. Gavroche ainda conseguiu sentar-se e entoou novamente
uma canção de desafio. Não terminou. Uma segunda bala o matou. Caiu de bruços, o
pequeno herói.
A tristeza tomou conta da barricada. A qualquer momento, sofreriam novo ataque
e já não tinham como resistir. Enjolras foi até Javert, que continuava amarrado.
— Não pense que o esqueci. Será executado.
Jean Valjean aproximou-se:
— Quero ter o privilégio de executar esse homem.
Javert ergueu a cabeça. Viu de quem se tratava.
— É justo.
Ninguém discordou. Nesse instante, ouviu-se um grito de Marius.
— Alerta.
Todos correram para as barricadas. Jean Valjean ficou sozinho com o prisioneiro.
— Vingue-se — disse Javert.
O outro pegou uma faca.
— Uma faca! — disse Javert. — Combina com você.
Jean Valjean cortou as cordas que o amarravam.
— Está livre — disse.
O inspetor de polícia não pôde conter um gesto de admiração. Jean Valjean
continuou:
— Não sei se sairei daqui vivo. Mas vou lhe dar meu endereço.
— Se pensa que vou ficar lhe devendo um favor porque me deu a liberdade, está
muito enganado! Prefiro que me mate! — disse Javert.
— Fuja enquanto é tempo.
Javert afastou-se. Conseguiu sair pela outra extremidade da barricada instantes
antes do ataque final. Logo o tambor anunciou a investida dos soldados. Um a um os
rebeldes foram tombando.
Marius foi atingido por um tiro no ombro e caiu. Perdia sangue. Fechou os olhos.
Sentiu que era pego por alguém. Pensou ter sido feito prisioneiro.
Era Jean Valjean, que não perdera Marius de vista. Ao vê-lo cair, foi até ele.
Carregou-o nos braços. Andou até a outra extremidade da rua, onde tudo estava
mais calmo. Percebeu que seria impossível sair porque também estava cercada. Procurou
com os olhos um meio de fugir enquanto ouvia os rebeldes serem vencidos. Não havia
mais tempo.
Viu uma grade de ferro no chão. Como um ex-condenado, tinha prática em
imaginar fugas. Foi até a grade. Era um respiradouro. Retirou algumas pedras soltas do
calçamento. Puxou. A grade levantou-se. Colocou Marius, que estava desmaiado, nas
costas. Desceu apoiando-se com os cotovelos em uma espécie de poço. Chegou ao solo.
Estava nas galerias subterrâneas do esgoto de Paris.
Andou mais um pouco para deixar o campo de batalha. Perto de um respiradouro,
sentou-se para descansar.
Examinou os bolsos de Marius, desfalecido. Encontrou seu recado, com o nome e
o endereço do avô. Colocou o rapaz nas costas novamente e partiu.
Andava em plena escuridão, tateando pelas paredes, no meio da lama. Usou
todas as forças para prosseguir, disposto a salvar Marius.
Em alguns pontos, parecia pisar em areia movediça. Sem luz nem qualquer
indicação, arriscava-se a perder o rumo nas galerias. Em certo momento, quase
submergiu em um atoleiro. Finalmente, chegou a uma extremidade da galeria. Viu luz.
Andou até lá. Era um arco que terminava em uma grade. Estava na saída do
esgoto!
Entre ele e a salvação só havia aquela grade. Funcionava como uma porta, bem
fechada. Tentou com todas as suas forças. Não conseguiu arrancá-la. Sentou-se no chão,
prestes a desistir. De que adiantava voltar, se todas as saídas deviam ser como aquela?
Marius, sem sentidos, parecia morto.
Subitamente, alguém se aproximou.
— Quero metade! — disse uma voz de homem.
Levantou os olhos. Para sua surpresa, havia um homem ao seu lado. Thénardier!
Thénardier o observou, tentando reconhecê-lo. Mas Jean Valjean estava contra a
luz. Além disso, coberto de lama e sangue!
— Como pretende sair? — perguntou Thénardier.
Jean Valjean não respondeu.
— Eu tenho a chave que abre essa grade. Mas quero metade do que conseguiu
com esse homem. Certamente, você o matou para roubá-lo.
Começou a entender. Thénardier pensava que fosse um assassino. Mostrou a
chave.
— Sei que roubou esse homem. Dê metade, e abro a grade.
Não estranhou a mudez de Jean Valjean. Achou que fosse um assassino frio.
— Sei o que pretende. Machucou demais o rapaz... e ele morreu. Agora quer
jogá-lo no rio, que é aqui perto.
Thénardier explicou que ele e outros bandidos fugidos da cadeia se escondiam no
esgoto. Por isso tinha a chave. Mas queria sua parte.
— Chega de conversa. E o dinheiro?
Jean Valjean pegou a própria carteira. Retirou tudo o que tinha e deu ao outro.
— Não valeu a pena matá-lo — observou Thénardier.
Sem cerimônia, vasculhou os bolsos de Marius e de Jean Valjean. Sem que este
notasse, arrancou um pedaço do casaco de Marius. Isso para descobrir, mais tarde, quem
era o assassinado e o assassino. Esqueceu a proposta inicial de dividir meio a meio. Ficou
com tudo.
— Diabos! Matar por tão pouco. Mas palavra é palavra. Vou abrir a grade.
Abriu a grade. Jean Valjean saiu com Marius. Foi até o rio, jogou água no seu
rosto. Constatou que, apesar de ter perdido muito sangue, o rapaz respirava. Quando ia
mergulhar a mão no rio, novamente sentiu estar sendo observado. Ergueu os olhos.
Era Javert.
Ao deixar a barricada, Javert fora à polícia. Apresentara um relatório ao chefe.
Em seguida, fora cumprir a outra missão do dia: investigar a existência de um
bando de criminosos nas margens do Sena. Lá chegando, vira Thénardier. Ao ver-se
perseguido, o antigo estalajadeiro fugira pelos esgotos, de cuja grade possuía a chave.
Ao encontrar o suposto assassino e sua vítima no esgoto, resolvera libertá-los.
Não por bondade. Mas por calculismo. Queria atirar os dois para o inspetor, como um osso
a um cachorro. Foi o que aconteceu. Ao ver o homem sujo de sangue e lama, Javert não o
reconheceu.
— Quem é você?
— Sou Jean Valjean.
Javert colocou as mãos nos seus ombros. Reconheceu-o.
— Não vou fugir. A prova disso é que lhe dei meu endereço. Só peço um favor —
disse Jean Valjean.
O inspetor parecia fascinado.
— Que faz aqui? Quem é o rapaz?
— É esse o favor que preciso pedir. Ajude-me a levá-lo à casa dele. Depois, faça
de mim o que quiser.
Javert examinou Marius.
— Está morto.
— Não, ainda vive. Precisamos levá-lo à casa de seu avô. Tenho o endereço.
Javert contraiu o rosto. Aceitou. Já era noite quando chegaram à casa do senhor
Gillenormand. O inspetor bateu à porta. O porteiro atendeu.
— Trouxemos o rapaz. Está morto.
Acordaram a tia de Marius. Ela correu a socorrê-lo. Fez os criados levarem-no
para cima. Mandou chamar um médico.
Javert fez um sinal a Jean Valjean. Partiram novamente.
— Tenho mais um favor a pedir.
— Qual? — perguntou o inspetor.
— Permita que eu vá um instante em minha casa. Só um instante.
O próprio Javert deu o endereço ao cocheiro. Quando chegaram, o inspetor
dispensou o carro de aluguel. Assumiu uma expressão estranha:
— Suba. Eu o espero aqui.
Era uma maneira de agir diferente da habitual. Jean Valjean subiu as escadas. Na
sala, olhou para fora. Javert não estava mais lá. Afastara-se a passos lentos, de cabeça
baixa.
Caminhou até o rio. Chegou até uma ponte, foi ao parapeito. Meditava. Estava
abalado. Não se conformava em dever a vida a um malfeitor. Tinha horror de pensar em
retribuí-la. Mas não podia esquecer que Jean Valjean lhe devolvera a vida. Vivia um
dilema: entregar Jean Valjean seria ingratidão. Deixá-lo livre, uma traição para com seu
dever de policial. Seu ideal sempre fora mostrar-se inflexível no cumprimento do dever.
Mas o antigo forçado fora generoso e bom. Não compreendia como era possível.
Só havia uma maneira de resolver o dilema, a seu ver.
Tirou o chapéu e colocou-o sobre a amurada. Subiu ao parapeito. Pulou no rio.
Ouviu-se um baque. As águas sepultaram para sempre o inspetor Javert.
Jean Valjean estava livre.
Mas, enquanto isso, Marius continuava à beira da morte.
Capítulo 20
O Casamento
Durante muito tempo, Marius esteve entre a vida e a morte. O avô não
abandonava a cabeceira da cama. Doente, o rapaz chamava por Cosette. Aos poucos,
melhorou. Mal se lembrava dos acontecimentos na barricada. Não sabia quem o salvara.
O porteiro mal vira os dois homens que o trouxeram. Só desejava uma coisa: encontrar
Cosette.
Certo dia, o avô o aconselhava sobre uma dieta para se fortalecer:
— Nada como um bife para um doente.
Animado, Marius respondeu:
— Quero me casar.
— Já sei — disse o senhor Gillenormand, rindo.
— Como assim?
— Vai se casar com a moça, como quer. Desde que está ferido, ela só chora.
Todos os dias vem aqui um senhor de cabelos brancos para saber notícias em nome dela.
Pois muito bem: se quer casar, case! Não perca tempo, rapaz. Eu ofereço um bife
e me responde que vai casar! Eu só quero que seja feliz, Marius!
Os dois choraram. Avô e neto se reconciliaram, finalmente.
Cosette foi avisada. O reencontro dos dois foi indescritível. O amor era mais forte
do que nunca. O casamento foi marcado. O avô fez uma ressalva:
— Enquanto eu estiver vivo, nada faltará aos dois. Mas minha herança é
pequena, porque o que eu tinha pus em uma aplicação de renda fixa que só vale enquanto
eu estiver vivo.
Jean Valjean revelou: a jovem tinha um dote de mais de quinhentos mil francos.
Uma fortuna para a época. Era o dinheiro que ganhara quando industrial.
Gastara o mínimo e deixara a maior parte enterrada até então. A tia, que era muito
rica, não quis ficar atrás. Fez um testamento em nome do casal. O casamento foi marcado.
No dia da cerimônia, o pai da noiva alegou ter sofrido um acidente na mão direita.
Não assinou os papéis. Nem participou do banquete. Cosette queria que ele fosse viver
com ela, na ampla residência da família de Marius.
No dia seguinte, ele foi procurar Marius. O rapaz o recebeu de braços abertos:
— Temos um quarto pronto para o senhor. Venha viver conosco!
Jean Valjean respondeu:
— Tenho uma confissão a fazer. Sou um fugitivo da justiça.
Desenrolou sua mão enfaixada e mostrou. Não sofrera acidente nenhum.
— Fingi o ferimento para não assinar os papéis do casamento, pois seria obrigado
a usar um nome falso. O casamento seria nulo.
— Que quer dizer? — espantou-se Marius.
— Fui um forçado das galés. Cumpri dezenove anos por roubo. Atualmente, sou
um foragido da lei.
— Diga tudo!
O rapaz estava horrorizado. Casara-se com a filha de um criminoso.
— Pelo amor que dedico a Cosette, eu juro. Não sou pai dela.
O homem inspirava confiança, apesar de tudo. Marius reconheceu:
— Creio no que diz.
— Soube de Cosette quando sua mãe estava morrendo. Eu a tirei das mãos de
uma família de monstros, onde era maltratada há dez anos. Agora está casada. Terá um
destino melhor. Quanto ao dote que eu dei, não se preocupe, não é dinheiro desonesto.
É uma quantia que estou restituindo.
— Por que me confessa tudo isso?
— Pode parecer estranho, sendo eu um antigo forçado. Mas é por honestidade.
Houve um tempo em que fui obrigado a roubar um pão para comer. Hoje, a minha
consciência me obriga a não mentir, nem a continuar ocultando quem sou.
Marius estava em silêncio. Estarrecido.
Jean Valjean fez um pedido:
— Agora que já sabe de tudo, posso continuar a ver Cosette?
— Não acho conveniente.
O velho sofria. Insistiu:
— Deixar de vê-la, deixar de falar-lhe, romper todos os laços afetivos... doeria
muito. Preciso ver Cosette. Além disso, se eu desaparecer, vão comentar. Permita-me
visitá-la.
Marius cedeu:
— Pode vir todas as tardes. Cosette o esperará.
— O senhor é bom.
Os dois homens se despediram.
Cosette estranhou o arranjo. Durante meses, o pai vinha visitá-la, sempre na sala
de baixo. Que era a mais fria e pior mobiliada da casa. Com o tempo, notou que deixavam
de acender a lareira. Depois, retiraram as cadeiras. Jean Valjean percebeu que não era
bem-vindo. De maneira discreta, mas firme, Marius procurava afastá-lo de Cosette.
Aos poucos, espaçou suas visitas. Um dia chegou, e Cosette não estava.
Atrasara-se. Ele percebeu que não tinha mais lugar na vida dela. Fingiu uma viagem.
Afastou-se. Parou de comer. Ficou doente e não saiu mais. A separação e o abandono
minavam sua resistência. Mesmo assim, quando a criada de Cosette ia buscar notícias,
mandava dizer pelo porteiro que estava viajando.
Apaixonada, a moça só dedicava-se inteiramente ao marido. Com o tempo, parou
de perguntar. A felicidade ao lado de Marius era suficiente.
Capítulo 21
A Hora do Adeus
Marius queria afastar Jean Valjean de Cosette.
Fez investigações. Recebeu informações erradas. Concluiu que o homem era
ladrão e assassino.
Uma noite, recebeu uma carta. O criado avisou:
— A pessoa que a escreveu está na sala de espera.
Repleta de erros de ortografia, era assinada por um senhor Thénard. Dizia saber
um segredo sobre a família. Marius sentiu-se feliz. Só podia se tratar de Thénardier, por
quem seu pai havia pedido na carta-testamento. Se pudesse recompensar Thénardier, só
faltaria uma coisa para ficar em paz: descobrir quem salvara sua vida nas barricadas.
— Mande entrar.
Apareceu um homem de nariz grosso, cabelos ruivos, óculos. Vestia-se de preto.
Andava curvado. Não reconheceu Thénardier, que alugara o disfarce para parecer
respeitável. Desapontado, o rapaz perguntou:
— Que quer?
— Não me reconhece? Fomos apresentados na casa da princesa Bragation.
— Não conheço nenhuma princesa com esse nome. Nunca fui à casa dela.
O homem insistiu. Falou de outras pessoas da sociedade, que supunha serem
conhecidas de Marius. Acabou pedindo uma ajuda financeira para uma suposta viagem à
América, onde pretendia viver entre os selvagens.
— Que tenho com isso? — quis saber Marius.
O desconhecido enfureceu-se:
— Não leu minha carta?
— Diga o que quer de uma vez por todas.
— Venho lhe vender um segredo. Tem em sua casa um ladrão e um assassino!
— Em minha casa? Nunca!
— É um homem que usou nome falso para entrar em sua família. É Jean Valjean.
— Já sei.
— É um ex-forçado.
— Também sei disso.
Marius o observou atentamente. Viu quem era, através do disfarce. Martelou as
palavras:
— Sei também o seu nome. É Thénardier. Pare de fingir.
Atirou uma cédula de alto valor para Thénardier. Imediatamente, este arrancou o
disfarce: dois canudos de pena para alargar o nariz, os óculos, os cabelos no rosto, e tudo
o que havia de postiço.
— Sou realmente Thénardier.
— Muito bem. Fique sabendo. Estou informado do segredo que pretendia me
revelar. Jean Valjean é assassino e ladrão. Fiz minhas investigações. Roubou um rico
industrial chamado Madeleine. E matou o inspetor de polícia Javert!
O rapaz estava convicto do que estava dizendo. Depois da confissão de Jean
Valjean, investigara a origem do dote de sua mulher. Mas suas informações estavam
erradas. Supunha que o dinheiro fora roubado de Madeleine pelo ex-forçado.
Horrorizado, pretendia devolvê-lo.
O orgulho de Thénardier falou mais alto.
— Está muito enganado. Pensa que sabe e não sabe. Ele é assassino e ladrão.
Mas foram outros seus crimes. Posso provar.
— O quê?
— Jean Valjean não roubou Madeleine, porque ele era o próprio Madeleine.
— Que está dizendo?
— Segundo, não assassinou Javert. O inspetor se matou.
Thénardier afirmou estar munido de provas.
— São recortes de jornais! Não são provas manuscritas, que podem ser forjadas.
Mas provas impressas!
Tirou um pacote do bolso. Eram dois jornais amarelados pelo tempo.
Marius compreendeu. Jean Valjean ajudara toda uma cidade quando prefeito. E
salvara Javert das barricadas, fingindo matá-lo. Ele, que desde a confissão supunha que o
ex-condenado executara Javert por vingança!
Surpreendeu-se.
— É um herói! É um santo!
— Nada de ilusões. É um ladrão e assassino. Eu encontrei esse homem há cerca
de um ano na galeria do esgoto de Paris. Tinha um rapaz nas costas. Morto.
Marius aproximou a cadeira, interessado.
— Ia certamente jogar o cadáver na água do rio. Eu abri a grade. Mas arranquei
um pedaço do casaco do rapaz para descobrir quem era a vítima. Veja.
Thénardier mostrou o pedaço do casaco de Marius. O rapaz empalideceu.
— Tenho motivos para acreditar que era um rapaz rico, que Jean Valjean matou
para roubar.
— O rapaz era eu! — gritou Marius, reconhecendo o tecido de seu antigo casaco.
Pegou um punhado de notas.
— O senhor é infame. Um caluniador. Veio acusar esse homem. Mas acaba de
inocentá-lo! Saiba que sei de tudo. Eu o vi quando se fazia passar por Jondrette. Sei o
suficiente para mandá-lo para as galés. Mas em respeito a Waterloo... tome esse dinheiro.
— É verdade. Salvei um general em Waterloo.
— Salvou um coronel, mentiroso! Pegue esse dinheiro e saia da minha vista!
Thénardier agarrou o maço de notas. Curvou-se. Agradeceu. Saiu depressa. Dois
dias depois, com o auxílio de Marius, foi para a América, com nome falso. Levava sua filha
Azelma, pois a mulher morrera na cadeia. Recebeu mais uma boa quantia do rapaz. Mas
foi na América o que fora na Europa. A boa ação de Marius não resultou em outra boa
ação. Thénardier tornou-se traficante de escravos.
Assim que Thénardier saiu de sua casa, Marius gritou:
— Cosette, Cosette. Vamos para a casa do seu pai! Ah, meu Deus! Foi ele quem
me salvou a vida!
A moça estava emocionada.
— Que alegria! Eu nem ousava falar nisso.
— Agora entendo tudo, Cosette. A carta que eu mandei por Gavroche caiu nas
mãos do seu pai. Por isso você nunca a recebeu. Ele foi para a barricada para me salvar!
Atravessou as galerias do esgoto comigo às costas! Eu estava desmaiado, por isso não o
reconheci. Vamos buscá-lo, ele vem morar conosco, queira ou não! Nunca mais nos
deixará!
Quando chegaram, Jean Valjean estava deitado. Ouviu as batidas e disse, com
voz fraca:
— Entrem.
Cosette e Marius apareceram.
— Cosette! — exclamou o ancião, erguendo-se, trêmulo.
Ela caiu em seus braços.
— Estou perdoado? — perguntou Jean Valjean.
Contendo as lágrimas, Marius murmurou:
— Meu pai!
— Também me perdoa, Marius? Obrigado, meu filho.
Cosette abraçou o velho. Beijou sua testa.
— Como fui tolo! Pensei que não a veria mais.
— Por que nos abandonou? — perguntou Cosette. — Eu mandava saber notícias,
e a criada voltava sempre dizendo que estava viajando. Que maldade. Está doente!
Marius, pegue a mão dele. Veja como está fria.
Jean Valjean sabia que Marius o afastara de Cosette. Mas não reclamou.
— Então, Marius, me perdoou! Obrigado!
— Está ouvindo, Cosette. Ele salvou-me a vida. E mais: ele me deu você. É a
mim, que sou ingrato, injusto, que ele agradece! Por que não me disse tudo?
— Disse a verdade — respondeu Jean Valjean.
— A verdade é a verdade inteira. Por que não disse que era Madeleine? Salvou
Javert, e também não contou. Por que não me disse que eu lhe devia a vida?
— Era preciso me afastar.
Doente, Jean Valjean parecia ter oitenta anos. Dizia, emocionado:
— Eu não podia passar sem ver Cosette de vez em quando. O coração é como
um cão, precisa de um osso para roer. Quando vocês chegaram, eu estava a ponto de
morrer! Mas foi como se renascesse.
— O senhor vai viver, e viver em nossa companhia! — disse Marius.
Jean Valjean sorria:
— Deus não muda sua resolução. É conveniente que eu me retire. Sejam felizes,
meus filhos!
Ouviu-se um ruído na porta. O médico entrou. Jean Valjean olhou para Cosette,
como se quisesse levá-la consigo para a eternidade.
O médico tomou seu pulso. Olhou para Cosette.
— É sua falta que ele sentia.
Em seguida, disse em voz baixa para Marius:
— Agora é tarde.
A moça soluçava:
— Meu pai! Não nos deixe!
Jean Valjean explicou rapidamente como ganhara o dinheiro do dote de Cosette
na indústria. Suas faces ficaram mais pálidas. O porteiro entrou.
— Quer que eu chame um padre?
— Aqui está um! — respondeu Jean Valjean.
Apontou para alguém invisível. Talvez estivesse vendo o bispo que iluminara seu
coração. Contou como encontrara Cosette, carregando um balde de água maior do que
ela. Falou de Fantine:
— Sua mãe sofreu muito. Ela a amava, Cosette.
Olhou para o casal.
— Vou partir. Lembrem-se de mim de vez em quando. Amem-se sempre, um ao
outro. É o melhor que podemos dar e receber neste mundo: o amor! Não sei o que tenho,
parece que vejo uma luz! Cheguem mais perto. Morro feliz! Aproximem suas queridas
cabeças, para que eu ponha as mãos em cima!
Cosette e Marius ajoelharam-se. Beijaram suas mãos. Apenas acabou de falar,
Jean Valjean inclinou-se para trás. Ao clarão dos dois castiçais de prata, acesos, viam-se
seus olhos fechados.
Estava morto. A noite estava escura. Não havia uma estrela no céu. Sem dúvida,
na escuridão, havia um anjo de asas abertas, esperando a alma daquele justo para levá-la
ao céu.
Seu corpo foi enterrado em cova rasa, longe dos mausoléus de mármore, como
era seu desejo. Nenhuma inscrição, nenhum nome está inscrito.
Há muitos anos, alguém rabiscou quatro versos na pedra. Com o pó, as
intempéries e a passagem do tempo, já terão desaparecido:
"Ele dorme. Embora a sorte lhe tenha sido adversa Ele viveu. Morreu quando
perdeu seu anjo; Partiu com a mesma simplicidade Como a chegada da noite após o dia".
Por que amo esse livro
Walcyr Carrasco
O romance Os Miseráveis sempre me fascinou.
Escrito no século XIX fala da injustiça social.
Mas resiste até hoje! Quantas pessoas como o ex-condenado Jean Valjean, o
menino de rua Gavroche, e Cosette, a órfã, não estão ao nosso lado? Se lermos os jornais,
encontraremos muitas histórias parecidas com as das personagens. Poucos livros
conseguem dar um panorama tão arrebatador. Mostra a época histórica. Emociona. E faz
pensar sobre temas importantes.
Esta é uma adaptação, com a história completa. Espero que um dia todos vocês
possam se debruçar sobre o romance original e conviver com a profunda meditação que o
autor faz sobre a vida e a condição humana. Muitas adaptações para cinema foram feitas a
partir do romance. Nos últimos anos, um dos musicais de maior sucesso nos palcos de
todo o mundo, Os Miseráveis, também baseia-se no livro.
Fico especialmente emocionado com a personagem principal, Jean Valjean. No
início um homem rancoroso, ele é transformado por um gesto de amor ao próximo. A
generosidade ilumina seu coração. Redescobre os valores éticos e cria uma nova
consciência. Sua vida passa, então, a ser reflexo dessa consciência. A capacidade de
alguém mudar através do amor é tocante. Fica a mensagem. Todo mundo pode tornar o
mundo melhor. Basta querer. Amar o próximo, eis a questão.
Quem foi Victor Hugo
Victor Hugo nasceu em 26 de fevereiro de 1802 e faleceu em 1885, na França. É
considerado o principal nome do romantismo francês, e escreveu muitos poemas e
romances lembrados até hoje. Entre eles, O Corcunda de Notre Dame e Os Trabalhadores
do Mar. A obra de Victor Hugo supera seu tempo. Retrata com profundidade a condição
humana e todos os níveis da sociedade, dos nobres aos excluídos. Suas personagens
possuem vida própria, pois são capazes de denunciar a miséria, a falta de justiça e a
necessidade de construir um mundo melhor.
Quem é Walcyr Carrasco
Walcyr Carrasco nasceu no dia primeiro de dezembro de 1951.
Segundo ele mesmo costuma contar, quando era criança vivia com a cabeça nas
nuvens, sempre pensando, pensando...
Eu, que conheci o Walcyr já meio grande, acho que de vez em quando ele ainda
tem a cabeça nas nuvens. Nas nuvens, nas estrelas, nos outros milhões de mundos que
existem.
E é por isso que ele vive inventando histórias.
Inventou uma história linda chamada Quando Meu Irmãozinho Nasceu, seu
primeiro livro publicado, inventou A Menina Que Queria Ser Anjo, Cadê o Super-Herói?,
Abaixo O Bicho-Papão, Quem Quer Sonhar, Meu Encontro Com Papai Noel.
Além disso é autor de peças teatrais, de telenovelas e jornalista e quando ele está
na redação não fica, infelizmente pra nós, com a cabeça nas nuvens...
Ruth Rocha
Quem é Marcos Guilherme
Nasci em São Paulo em 16 de janeiro de 1967.
Comecei a trabalhar profissionalmente aos 18 anos como caricaturista dos jornais
“O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde”. Hoje ilustro livros, embalagens, sites e qualquer
outro lugar onde uma ilustração seja bem-vinda.
Na verdade, desenho desde o momento em que minha memória alcança até hoje.
Eu era aquele tipo de sujeito que não podia ver uma folha em branco. Para ser sincero,
ainda não consigo ver uma folha branquinha e um lápis parado por perto que minha mão
vai logo trabalhando.

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