John Grogan
Marley & Eu
A vida e o amor ao lado do pior cão do mundo
Tradução:
Thereza Christina Rocque da Motta
Elvira Serapicos
Prestígio
editorial
Título original: Marley & Me
Copyright © 2005: John Grogan - Harper Collins Publishers
ISBN original: 978-0-06-081708-4
Direitos cedidos para esta edição à
EDIOURO PUBLICAÇÕES S.A.
Publicado por Prestígio Editorial
Tradução: Thereza C. R. da Motta (1-15); Elvira Serapicos (16-29)
Preparação de textos: Thereza C. R. da Motta
Revisão: Ruy Cintra Paiva e Adriana de Oliveira
Produção gráfica: Osmane Garcia Filho
Editoração eletrônica: S4 Editorial
Capa: Código Fonte
Fotos: Arquivo do autor
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara
Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Grogan, John, 1957-
Marley & eu : a vida e o amor ao lado do pior cão do mundo / John
Grogan [tradução Thereza Christina Rocque da Motta, Elvira
Serapicos. — São Paulo Prestígio, 2006.
Título original: Marley & me : life and love with the world’s worst dog
ISBN 85-99170-84-8
1. Grogan, John, 1957— 2. Retriever do labrador (cães) - Biografia
I. Título.
06-6102 CDD - 636.7527092
índice para catálogo sistemático:
1. Cães : Biografia 636.7527092
Prestígio
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Em memória de meu pai, Richard Frank Grogan,
cujo espírito gentil impregnou cada página deste livro
Sumário
Prefácio: O cão perfeito
1. Um filhote vezes três
2. Seguindo o sangue azul
3. Chegando em casa
4. Sr. Terremoto
5. O teste de gravidez
6. Questões do coração
7. Dono e cachorro
8. Uma batalha de Wills
9. A essência dos machos
10. A sorte dos irlandeses
11. Tudo o que ele comeu
12. Bem-vindos à Ala dos Indigentes
13. Um grito na noite
14. Uma chegada prematura
15. Ultimato pós-parto
16. O teste
17. Na terra de Bocahontas
18. Restaurante ao ar livre
19. Tempestade de raios
20. A praia dos cães
21. Vôo para o norte
22. Na terra dos lápis
23. Frangos em desfile
24. O reservado
25. Vencendo as dificuldades
26. Um tempo a mais
27. A grande planície
28. Sob as cerejeiras
29. O Clube dos Cães Malvados
Agradecimentos
Sobre o autor
Prefácio
O cão perfeito
No verão de 1967, quando eu tinha dez anos de idade, meu pai
cedeu aos meus insistentes pedidos e levou-me para comprar meu próprio
cachorro. Fomos juntos na caminhonete da família até uma boa
distância do centro urbano dentro do Estado de Michigan numa
fazenda dirigida por uma mulher bem roceira e sua mãe muito velha. A
fazenda produzia apenas uma mercadoria — cachorros. Cachorros de
todo tipo, tamanho, idade e temperamento imaginável. Eles possuíam
apenas duas coisas em comum: todos tinham procedência totalmente
indistinta e desconhecida, e poderiam ser levados a qualquer hora para
um novo lar. Estávamos num nicho de cães.
— Pense bem, meu filho — disse papai. — Quem você decidir
levar hoje vai viver com você por muitos e muitos anos.
Rapidamente decidi que os cachorros mais velhos deveriam ficar
com outras pessoas. Imediatamente corri para a gaiola dos filhotes.
— Você vai escolher um que não seja tímido — meu pai caçoou.
— Faça barulho nas grades e veja quais deles não se assustam.
Agarrei as barras da gaiola e bati com força. Cerca de uma dúzia
de filhotes se assustaram e correram para o fundo, caindo uns por
cima dos outros, embolando-se todos. Apenas um não se mexeu. Ele
era dourado com uma mancha branca no peito e avançou sobre a
grade, latindo sem medo. Ele saltou e lambeu os meus dedos
avidamente através das barras de ferro. Foi amor à primeira vista.
Eu o trouxe para casa numa caixa de papelão e chamei-o de
Shaun. Ele era o tipo de cachorro que marca todos os outros cachorros.
Ele aprendeu tudo o que lhe ensinei sem esforço e era naturalmente
bem comportado. Eu poderia jogar um naco de comida no chão que ele
não pegaria até que lhe desse permissão. Ele me atendia quando eu o
chamava e ficava parado quando eu ordenava. Poderíamos deixá-lo
passear à noite, sabendo que retornaria depois de fazer seu passeio.
Nem sempre o deixávamos sozinho, mas poderia ficar em casa por horas
sem companhia, confiantes de que não se machucaria nem mexeria em
nada. Ele corria atrás de carros sem caçá-los, e andava ao meu lado
sem coleira. Ele conseguia mergulhar até o fundo do nosso lago e
emergir com pedras tão grandes na boca que às vezes ficaram presas
em sua mandíbula. Ele amava andar de carro e ficava sentado quietinho
no banco traseiro ao meu lado durante as viagens de família, feliz de
passar horas olhando pela janela para tudo que via do lado de fora.
Talvez o melhor de tudo, eu o treinei para ele me puxar de bicicleta pela
vizinhança, fazendo com que todos os meus amigos me invejassem. Ele
nunca me levou para nenhum lugar perigoso.
Ele estava comigo quando fumei meu primeiro (e o meu último)
cigarro e quando beijei minha primeira namorada. Ele estava bem do
meu lado no banco da frente quando saí escondido com o carro do meu
irmão mais velho para dar minha primeira volta no quarteirão.
Shaun era espirituoso, porém controlado, amoroso e calmo. Ele
era educado a ponto de se esconder atrás de um arbusto para fazer suas
necessidades, deixando apenas sua cabeça para fora. Graças a esse seu
hábito salutar, nosso gramado era imaculado para inadvertidos pés
descalços.
Nossos parentes vinham nos visitar nos fins de semana e voltavam
para casa decididos a comprar um cachorro para eles, de tão
impressionados que ficavam com Shaun — ou São Shaun, como
comecei a chamá-lo. Esta era uma piada caseira, mas quase
acreditávamos nela. Nascido sob a maldição da falta de linhagem, ele
era um entre as dezenas de milhares de cães indesejados da América.
Mas por um golpe de sorte praticamente providencial, tornou-se
querido. Ele entrou na minha vida e eu na dele — e como resultado,
ele me deu a infância que todo garoto merece.
Nosso caso de amor durou quatorze anos e, quando ele morreu, eu
não era mais aquele menino que o havia trazido para casa naquela
tarde de verão. Eu era um homem crescido e formado, e que já
trabalhava no meu primeiro emprego de verdade do outro lado do
Estado. São Shaun ficou para trás quando me mudei. Aquele era o lugar
dele. Meus pais, que, nessa época, já estavam aposentados, ligaram-me
para me dar a notícia. Minha mãe, mais tarde, me diria:
— Em cinqüenta anos de casamento, só vi seu pai chorar duas
vezes. A primeira quando perdemos Mary Ann — minha irmã,
natimorta. — A segunda, quando Shaun morreu.
São Shaun da minha infância. Ele era um cão perfeito. Pelo
menos, é como sempre me lembrarei dele. Foi Shaun que estabeleceu o
padrão pelo qual eu julgaria todos os outros cães que vierem depois
dele.
Capítulo 1
Um filhote vezes três
Nós éramos jovens. Estávamos apaixonados. Estávamos nos
deleitando naqueles sublimes primeiros dias de casamento quando a
vida parece que não pode se tornar mais maravilhosa. Mal
conseguíamos ficar longe um do outro.
Então, numa noite de janeiro de 1991, eu e minha mulher,
casada há quinze meses comigo, jantamos rapidamente e partimos para
responder a um anúncio classificado do Palm Beach Post.
Por que estávamos fazendo isso, eu não tinha certeza. Algumas
semanas antes eu despertara logo depois de amanhecer sozinho na
cama. Levantei-me e encontrei Jenny sentada, em seu roupão de banho,
na mesa de vidro na varanda telada de nosso pequeno bangalô,
curvada sobre o jornal com uma caneta na mão.
Não havia nada de inusitado na cena. O Palm Beach Post não
era somente o nosso jornal local diário, bem como era a fonte de
metade de nossa renda familiar. Ambos escrevíamos para dois jornais.
Jenny trabalhava como comentarista de cinema na seção de filmes do
Post; e eu era um repórter de notícias do jornal concorrente da região,
o Sun-Sentinel no sul da Flórida, a uma hora de viagem sul, em Fort
Lauderdale. Começávamos, toda manhã, a perscrutar os jornais, para ver
como nossas histórias saíam e como se comparavam com as que saíam
nas edições concorrentes. Circulávamos, sublinhávamos e recortávamos
sem parar.
Mas, nesta manhã, Jenny não estava com a cara enfiada na
página de notícias, mas na seção de classificados. Quando eu me
aproximei, notei que ela estava febrilmente circulando anúncios sob o
título “Animais de Estimação — Cães”.
— Ah... — eu disse, num tom gentil de marido recém-casado,
ainda pisando em ovos. — Há algo que eu deveria saber?
Ela não me respondeu.
— Jen... Jen?
—É a planta — ela disse, finalmente, num tom de voz
ligeiramente desesperado.
—A planta? — perguntei.
— Aquela planta estúpida — ela disse. — Aquela que nós
matamos.
Aquela que nós matamos? Eu não queria mencionar o assunto,
mas, apenas esclarecendo, foi a planta que eu comprei e que ela
matou. E a trouxe de surpresa, certa noite, uma imensa comigoninguém-
pode, com folhas em belos tons bege, amarelo e esmeralda.
— Qual é a ocasião? — ela perguntou.
Mas não havia nenhuma. Eu lhe dei a planta sem nenhum
motivo especial além de querer dizer a ela:
— Nossa, não é ótimo estarmos casados?
Ela adorou tanto o meu gesto quanto a planta e agradeceu-me,
jogando seus braços em volta do meu pescoço e beijando-me nos lábios.
Então, foi imediatamente matar o presente que dei a ela com uma eficiência
fria e assassina. Não que ela quisesse matá-la; como se fosse nada, ela
aguou a coitadinha até morrer. Jenny não tinha grandes pendores para
plantas. Imaginando que todos os seres viventes precisam de água, mas
aparentemente se esquecendo que também precisam de ar, ela se pôs a
encharcar a planta diariamente.
— Tome cuidado para não aguá-la demais — eu a prevenia.
— Certo — ela respondia e, em seguida, entornava mais um galão
de água na coitadinha.
Quanto mais fraca a planta ficava, mais água ela colocava, até
praticamente dissolvê-la. Eu olhei desalentado para seu esqueleto
esquálido no vaso junto à janela e pensei: “Puxa, se eu acreditasse em
presságios, estaria apavorado de ver isto”.
E agora aqui estava ela, de algum modo fazendo um salto cósmico
de lógica, de uma flora morta em um vaso, a uma fauna viva em um
anúncio classificado de animais de estimação. Mate uma planta,
compre um cachorrinho. Bem, claro, parecia bem lógico.
Olhei mais atentamente para o jornal a frente dela e vi que um
anúncio em especial parecia ter-lhe chamado mais a atenção. Ele
desenhara três estrelas vermelhas e gordas do lado. Lia-se: “Filhotes de
labrador, amarelo. AKC raça pura. Todos os matizes. Pais no local”.
— Então — eu disse — você vai tentar me enganar nesse negócio
de tomar conta de planta e cachorro novamente?
— Você sabe — ela disse, erguendo a cabeça — eu me esforcei
tanto e veja só o que aconteceu. Não sei sequer tomar conta de uma
planta estúpida. Quero dizer, qual é a grande dificuldade? Tudo que
precisamos fazer é jogar água na maldita planta.
Então, ela abriu o jogo:
— Se eu não consigo sequer manter uma planta viva, como vou
conseguir manter um bebê com vida?
Ela fez como se fosse começar a chorar.
A “Questão Bebê”, como designava, havia se tornado uma
constante na vida de Jenny e estava aumentando a cada dia. Quando
nos conhecemos, num pequeno jornal do lado oeste do Estado de
Michigan, ela tinha saído havia poucos meses da faculdade e uma vida
adulta séria ainda parecia algo muito distante. Para nós, era nosso
primeiro trabalho profissional fora da escola. Comíamos um monte de
pizzas, bebíamos um monte de cervejas, e nem esquentávamos com a
possibilidade de algum dia ser qualquer outra coisa senão jovens,
solteiros e consumidores inveterados de pizza e cerveja.
Mas os anos se passaram. Nós mal tínhamos começado a
namorar, quando várias oportunidades de emprego — e um ano de
programa de pós-graduação para mim — nos levaram em direções
opostas ao longo da costa leste dos Estados Unidos. No início,
estávamos a uma hora de distância de carro. Depois, ficamos a três
horas de estrada. Em seguida, oito e, mais tarde, vinte e quatro horas.
Na época em que aterrissamos ao mesmo tempo no sul da Flórida e nos
amarramos, ela tinha quase trinta. Suas amigas estavam tendo bebês.
Seu corpo estava começando a cobrar isso dela. Aquela antiga e
aparentemente eterna janela de oportunidade procriativa estava
lentamente se fechando.
Eu me aproximei dela por trás, passei meus braços em volta de
seus ombros, e beijei o alto de sua cabeça.
— Está bem — eu disse.
Mas eu tive de admitir, ela havia feito uma boa pergunta.
Nenhum de nós jamais cuidara de qualquer coisa na vida. Com certeza,
tínhamos tido animais de estimação, mas eles não contavam. Sempre
soubemos que nossos pais os manteriam vivos e bem. Sabíamos que um
dia gostaríamos de ter filhos, mas algum de nós estava realmente pronto
para isso? Filhos eram tão... tão... assustadores. Eles eram indefesos e
frágeis, e parecia que iriam se quebrar ao meio se caíssem no chão.
Um sorriso irrompeu no rosto de Jenny.
— Pensei que talvez um cachorro nos desse alguma prática — ela
arrematou.
Estávamos dirigindo no escuro, seguindo em direção noroeste para
fora da cidade, onde os subúrbios de West Palm Beach se transformam
em propriedades agrícolas espalhadas por toda parte. Repensei a nossa
decisão de trazer um cão para casa. Era uma enorme responsabilidade,
especialmente para duas pessoas que trabalhavam em período integral.
Apesar disso, sabíamos o que queríamos com isso. Crescêramos com
cachorros e os amamos imensamente. Eu tivera São Shaun e Jenny
tivera Santa Winnie, sua setter inglesa tão amada por sua família. Nossas
mais felizes lembranças de infância quase sempre incluíam nossos cães.
Fazendo trilha com eles, nadando com eles, brincando com eles,
entrando em fria com eles. Se Jenny apenas queria um cachorro para
despertar seus instintos maternais, eu teria tentado convencê-la do
contrário e talvez tentasse acalmá-la com um peixinho dourado. Mas
como sabíamos que um dia queríamos ter nossos filhos, tínhamos certeza
de que o nosso lar não seria completo sem um cachorro deitado aos
nossos pés. Quando começamos a namorar, muito antes de filhos
surgirem em nossa mente, gastamos horas discutindo os animais de
estimação que tivemos na infância, quanto sentíamos falta deles e
quanto ansiávamos, algum dia — quando tivéssemos uma casa que fosse
nossa e alguma estabilidade em nossas vidas —, ter um cachorro
novamente.
Agora tínhamos as duas coisas. Estávamos juntos num lugar que
não tínhamos planos de deixar em breve. E a casa era muito nossa.
Era uma perfeita casinha em um lote de terreno perfeito de mil
metros quadrados, cercado do tamanho exato para um cachorro. E a
localização também era perfeita, com uma vizinhança urbana
despojada, a um quarteirão e meio de distância da Intracoastal
Waterway, que separava West Palm Beach das mansões elegantes de
Palm Beach. No começo da nossa rua, Churchill Road, uma área verde
linear e trilhas pavimentadas se estendiam por quilômetros à beira
d’água. Era ideal para fazer caminhada, andar de bicicleta e patins. E,
acima de tudo, para levar um cachorro para passear.
A casa havia sido construída na década de cinqüenta, e tinha o
charme da antiga Flórida — uma lareira, paredes rústicas, janelas
grandes, e portas que nos levavam ao nosso canto favorito dentro da
casa: ao jardim de inverno na parte de trás. O quintal era um pequeno
abrigo tropical, cheio de palmeiras, bromélias, abacateiros e plantas
furta-cor. Acima, dominando a propriedade, havia uma mangueira
altíssima; todo verão, ela deixava cair as mangas pesadas com um
barulho surdo que mais pareciam, talvez estranhamente, corpos que
caíam de cima do telhado. Ficávamos deitados na cama, acordados,
ouvindo os baques secos da queda.
Compramos o bangalô de dois quartos e banheiro alguns meses
depois que voltamos de nossa lua-de-mel e imediatamente começamos
a reformá-lo. Os donos anteriores, um funcionário dos correios
aposentado e sua mulher, adoravam verde. O lado externo de estuque
era verde. As paredes internas eram verdes. As cortinas eram verdes.
As venezianas eram verdes. A porta da frente era verde. O carpete, que
eles haviam acabado de comprar para ajudar a vender a casa, era verde.
Mas não era um verde-vivo e alegre ou um verde esmeralda sofisticado,
ou até mesmo um verde-limão ousado, mas um verde vômito-de-sopade-
ervilha com um colorido cáqui. A casa tinha uma aparência de
barraca de campo de exército.
Na primeira noite que passamos em casa, arrancamos cada
centímetro quadrado do novo carpete verde e o arrastamos até o meiofio.
Sob o carpete, descobrimos um assoalho de tábuas de madeira de
carvalho que, pelo que pudemos avaliar, nunca havia sido pisado por um
salto de sapato na vida. Nós o lixamos e envernizamos até ficar
totalmente brilhante. então saímos e torramos a maior parte do
pagamento de duas semanas de trabalho em um belíssimo tapete persa e
o desenrolamos na sala de visitas diante da lareira. Ao longo dos
meses, repintamos todas as superfícies verdes e trocamos todas as
decorações verdes. A casa do funcionário dos correios estava
lentamente se tornando nossa casa.
Quando finalmente conseguimos deixá-la perfeita, era
perfeitamente plausível que trouxéssemos para casa um imenso
companheiro de quatro patas, com unhas das patas afiadas, dentes
enormes e pouco conhecimento da língua inglesa para começar a
destruí-la.
— Devagar, querido, ou você vai perder a entrada — caçoou
Jenny.
— Ela vai aparecer a qualquer segundo.
Estávamos seguindo ao longo de um charco escurecido, que havia
sido drenado após a Segunda Guerra Mundial para irrigar fazendas e
depois foi colonizado por moradores dos subúrbios que buscavam um
estilo de vida no campo.
Como Jenny predisse, os faróis logo iluminaram uma caixa postal
com o endereço que estávamos procurando. Subi a entrada que nos
conduziu a uma grande área arborizada com um lago defronte a uma
casa com um pequeno celeiro na parte de trás. A porta, uma senhora
de meia-idade chamada Lori nos cumprimentou, com um plácido
labrador amarelo ao lado dela.
— Esta é Lily, a orgulhosa mamãe — Lori disse, depois que nos
apresentamos a ela.
Constatamos que cinco semanas depois de dar à luz, a barriga de
Lily ainda estava distendida e suas tetas saltadas. Ajoelhamo-nos e ela
alegremente aceitou nossos carinhos. Ela era exatamente como
imaginávamos que deveria ser um cão labrador — de natureza doce,
afeiçoado, calmo e lindo.
— Onde está o pai? — perguntei.
— Oh — respondeu a mulher, hesitando por uma fração de
segundo.
— Sammy Boy? Ele deve estar por aí em algum lugar.
E acrescentou, rapidamente:
— Imagino que devam estar loucos para ver os filhotes.
Ela nos conduziu através da cozinha até um quarto de serviço que
fora transformado em berçário. O chão estava coberto de folhas de jornal
e, num canto estava uma caixa baixa forrada com antigas toalhas de
praia. Mas mal reparamos nesses detalhes. Como poderíamos, ao ver
nove filhotes amarelos minúsculos, um subindo por cima do outro,
tentando ver quem eram os novos estranhos que apareciam ali? Jenny
suspendeu sua respiração.
— Meu Deus — ela disse. — Acho que nunca vi algo tão lindinho
em toda a minha vida.
Sentamo-nos no chão e deixamos os filhotes subir por cima de nós,
enquanto Lily passeava em volta, vaidosa, balançando a cauda e
cheirando cada um deles para ter certeza de que estavam bem. O acordo
que fiz com Jenny quando concordei em vir aqui foi de que veríamos os
filhotes, faríamos algumas perguntas e verificaríamos se realmente
estávamos prontos para trazer um cão para casa.
— Este é o primeiro anúncio que estamos respondendo — eu
disse. — Não vamos tomar nenhuma decisão precipitada.
Mas depois de passados trinta segundos, pude ver claramente
que eu havia perdido a batalha. Não tive dúvida de que antes do fim da
noite um desses cachorros seria nosso.
Lori era o que se pode chamar de criadora de fundo de quintal.
Éramos novatos para comprar cães de raça, mas havíamos lido o
suficiente para nos mantermos longe das conhecidas fazendas de
filhotes, estas criações comerciais que geram cães de raça como se
fossem modelos novos de carro. Diferentemente de carros produzidos
em larga escala, no entanto, filhotes com pedigree produzidos em massa
podem vir com sérios problemas hereditários, de displasia do quadril a
cegueira precoce, trazidos por mistura de múltiplas gerações.
Lori, por outro lado, fazia isso por hobby, mais motivada pelo amor
pela criação dos cães do que pelo lucro. Ela tinha apenas uma fêmea e
um macho. Eles tinham descendências distintas, e possuía os
documentos para comprová-las. Esta seria a segunda e última ninhada de
Lily antes de se tornar apenas um animal de estimação que vivia no
campo. Com ambos os pais vivendo na casa, o comprador poderia ver, de
primeira mão, a sua linhagem — embora, no nosso caso, o pai estivesse
aparentemente fora de vista.
A ninhada tinha cinco fêmeas e quatro delas já estavam
reservadas e quatro machos. Lori estava pedindo US$ 400 pela última
fêmea e US$ 375 pelos machos. Um dos machos parecia ter-se
apaixonado por nós. Ele era o mais palhaço de todos e avançava sobre
nós, pulando no nosso colo e agarrando-nos com as patas para escalar
pela roupa e lamber nosso rosto. Ele mordiscava nossos dedos com
dentes de leite afiados e andava trôpego em círculos à nossa volta com
patas redondas gigantescas, totalmente fora de proporção quanto ao
restante do seu corpo.
— Este vocês podem levar por US$ 350 — disse a criadora.
Jenny é uma caçadora de barganhas que traz para casa qualquer
coisa que sequer queiramos ou precisemos apenas porque estava sendo
vendida a um preço atraente demais para ser deixada para trás.
— Sei que você não pratica golfe — ela me disse um dia, puxando
um conjunto de tacos usados do carro. — Mas você não acreditaria no
preço que paguei por eles.
Agora eu via seus olhos se iluminarem.
— Ah, amorzinho — ela arrulhou. — Estezinho está a preço de
liquidação!
Eu tive de admitir que ele era adorável. E elétrico, também. Antes
que eu percebesse o que ele iria fazer, o danadinho havia mastigado
metade da correia do meu relógio.
— Temos de fazer o teste do medo — eu disse.
Eu havia contado a Jenny inúmeras vezes a história de como
escolhera São Shaun quando era menino, e que meu pai me ensinara a
fazer um movimento brusco ou um barulho bem alto para distinguir os
tímidos dos mais confiantes. Sentada entre os filhotes, ela revirou os olhos
como sempre fazia toda vez que se deparava com um comportamento
estranho da família Grogan.
— E sério — eu disse —, isso funciona.
Eu me levantei, me afastei dos filhotes, então me virei
rapidamente de novo, avançando de repente na direção deles com um
passo largo. Bati o pé e exclamei:
— Ei!
Nenhum deles parecia ter-se abalado com as minhas contorções.
Apenas um pulou, encarando-me de frente. Era o Cão de Liquidação. Ele
avançou sobre mim, entrando entre meus calcanhares e agarrando os
meus cadarços como se fossem perigosos inimigos que precisassem ser
destruídos.
—Creio que este seja o escolhido pelo destino — disse Jenny.
—Você acha? — eu perguntei, pegando-o e segurando-o numa
das mãos diante do rosto, estudando suas feições.
Ele olhou para mim com olhos marrons chorosos de cortar o
coração e então lambiscou o meu nariz. Eu o coloquei nos braços de
Jenny e ele repetiu o gesto.
— Com certeza ele parece gostar de nós — eu disse.
E assim foi feito. Entregamos um cheque de US$ 350 à Lori e ela
nos disse que poderíamos voltar para levar nosso Cão de Liquidação
para casa em mais três semanas, quando ele teria oito semanas de idade
e estivesse desmamado. Agradecemos a ela, fizemos um último carinho
em Lily e nos despedimos.
Ao nos dirigirmos para o carro, coloquei meu braço em volta do
ombro de Jenny e abracei-a forte.
—Você acredita nisto? — eu perguntei. — Nós agora temos um
cachorro!
—Mal posso esperar para levá-lo para casa.
No momento em que nos aproximamos do carro, ouvimos um
estrondo vindo do meio da floresta. Alguma coisa vinha caminhando
entre os arbustos — e respirava pesadamente. Parecia um barulho de
filme de terror. E estava vindo em nossa direção. Gelamos, encarando a
escuridão. O barulho aumentou e aproximou-se mais ainda. Então, num
segundo, alguma coisa surgiu do nada e avançou para cima de nós, uma
mancha amarela. Uma imensa mancha amarela. Quando passou
galopando por nós, sem parar, sem sequer nos notar, vimos que era um
grande labrador. Mas não se parecia em nada com a doce Lily que
acabáramos de conhecer lá dentro. Este estava encharcado e tinha o pêlo
da barriga coberto de lama e carrapichos. Sua língua dependurava-se,
selvagem, de um lado da boca e ele espumava copiosamente ao passar por
nós. No segundo em que pude vê-lo, detectei um olhar estranho, um
pouco louco, porém divertido em sua expressão. Era como se ele tivesse
acabado de ver um fantasma — e estivesse apavorado.
Então, com o bramido de uma horda de búfalos em disparada, ele
se foi para a parte de trás da casa, e desapareceu de vista. Jenny engoliu
em seco.
— Acho — comentei, com um ligeiro nó na garganta — que
acabamos de conhecer o pai.
Capítulo 2
Seguindo o sangue azul
Nossa primeira reação como donos de um cachorro foi brigar.
Começou na volta para nossa casa, e continuou em discussões e
rusgas por toda a semana seguinte. Não concordávamos em qual nome
iríamos dar ao nosso Cão de Liquidação. Jenny desprezou todas as
minhas sugestões e eu recusei as dela. A batalha culminou numa manhã
antes de eu sair para o trabalho.
—Chelsea? — eu perguntei. — Esse é um nome tão sofisticado.
Nenhum cão macho teria esse nome.
—Como se ele se importasse com o próprio nome — Jenny
replicou.
—Caçador — eu disse. — Caçador é perfeito.
—Caçador? Você está brincando, não é? O que deu em você, um
ataque de machismo esportivo? E um nome masculino demais. Além
disso, você jamais caçou na sua vida.
—Ele é um macho — respondi, espumando. — Ele deve ser
masculino. Não transforme isto em um dos seus discursos feministas.
Isso não estava dando certo. Eu estava perdendo a paciência. No
momento em que Jenny iria partir para o contra-ataque, eu rapidamente
tentei reforçar meu candidato favorito:
— O que tem de errado com Louie?
— Nada, se você for um frentista de posto de gasolina — ela
replicou.
— Ei! Olha a língua! Este é o nome do meu avô. Acho que então
deveríamos batizá-lo com o nome do seu avô? “O bom cão Bill!”
Enquanto discutíamos, Jenny, num gesto automático, caminhou
até o estéreo e apertou o botão do toca-fitas. Era uma de suas
estratégias de combate marital. Em dúvida, afogue o oponente. Os
acordes reggaes ritmados de Bob Marley começaram a pulsar pelos altofalantes,
produzindo um efeito meloso praticamente instantâneo sobre
nós dois.
Havíamos apenas descoberto o cantor jamaicano falecido quando
nos mudamos de Michigan para a Flórida. No Meio-Oeste americano
apenas ouvíamos Bob Seger e John Cougar Mellencamp. Mas aqui no
caldo étnico pulsante do sul da Flórida, a música de Bob Marley, mesmo
uma década depois de sua morte, estava por toda parte. Ouvíamos no
rádio do carro enquanto descíamos a Biscayne Boulevard. Ouvíamos
tomando cafés cubanos na Pequena Havana e comendo carne de
galinha à moda jamaicana nos pequenos pés-sujos dos sombrios bairros
de imigrantes a oeste de Fort Lauderdale. Ouvíamos enquanto
experimentávamos pela primeira vez uma fritada de moluscos no Festival
de Bahamian Goombay em Coconut Grove em Miami, e fazendo compras
de arte haitiana em Key West.
Quanto mais explorávamos, mais nos apaixonávamos, tanto com o
sul da Flórida e um pelo outro. E sempre ao fundo, aparentemente,
estava Bob Marley. Ele estava lá enquanto tostávamos na praia,
enquanto pintávamos as paredes verdes da nossa casa, quando
acordávamos ao amanhecer com os gritos dos papagaios selvagens, e
fazíamos amor com a primeira luz que filtrava através da pimenteira
brasileira que tínhamos em frente à nossa janela. Nós nos apaixonamos
pela música dele pelo que ela era, mas também por aquilo que ela
definia, o momento em nossas vidas quando deixamos de ser dois e nos
tornamos um. Bob Marley era a trilha sonora de nossa nova vida juntos
neste lugar estranho, exótico e mal-ajambrado, tão diferente de
qualquer outro onde tivéssemos vivido.
E agora, dos alto-falantes, surgia nossa canção preferida dentre
todas, por ser tão pungente e bela, e falar direto ao nosso coração. A
voz de Marley tomou a sala, repetindo o refrão várias vezes: “Is this
love that I’m feeling?”. E, nesse mesmo momento, como se tivéssemos
ensaiado por várias semanas, gritamos, em uníssono:
—Marley!
—É isto! — exclamei. — Este é o nome que estávamos
procurando.
Jenny sorriu, o que era um bom sinal.
Eu ensaiei:
—Venha, Marley! — ordenei. — Sente, Marley! Bom garoto,
Marley!
Jenny se juntou a mim:
—Meu Marley queridinho-inho-inho...
—Ei, eu acho que funciona — disse.
Jenny também achava. Nossa briga acabara. Finalmente
tínhamos o nome de nosso filhote.
Na noite seguinte, depois do jantar, entrei no quarto onde Jenny
estava lendo e eu disse:
—Acho que precisamos incrementar um pouco o nome dele.
—Do que você está falando? — ela perguntou. — Nós adoramos o
nome.
Eu havia lido os papéis de registro do American Kennel Club.
Como um labrador puro-sangue com ambos os pais devidamente
registrados, Marley tinha direito a um registro da AKC também. Isto
apenas seria necessário se planejássemos fazê-lo participar de
exposições ou ter uma criação de cães, quando este papel realmente se
tornava importante. Para um cão de estimação, no entanto, seria
supérfluo. Mas eu tinha grandes planos para o nosso Marley. Esta era a
primeira vez que eu tinha a chance de me aproximar da nobreza,
incluindo a minha própria família. Bem como São Shaun, o cão da
minha infância, de uma linhagem sem distinção. A minha representava
mais países do que a União Européia. Este cão era o mais próximo que
eu chegaria do sangue azul, e eu não deixaria passar nenhuma
oportunidade que me fosse oferecida. Admito que deixei isto me subir à
cabeça.
—Vamos imaginar que queiramos inscrevê-lo em competições —
eu arrematei. — Alguma vez você já viu o campeão com apenas um
nome? Eles sempre têm nomes compridos, como Sir Darworth de
Cheltenham.
—E seu dono, Sir Dorkshire de West Palm Beach — replicou
Jenny.
—Estou falando sério — respondi. — Poderíamos ganhar
dinheiro fazendo-o competir. Você sabe quanto as pessoas pagam por
cães de topo de linha? Todos eles têm nomes extravagantes.
— Faça o que você quiser, meu amor — disse Jenny e voltou a ler
seu livro.
Na manhã seguinte, depois de queimar a mufa até tarde da noite,
peguei-a diante da pia do banheiro e disse:
—Bolei o nome perfeito.
Ela me olhou, cética:
—Diga — ela desafiou.
—Ok. Está pronta? Aí vai.
Pronunciei cada um dos nomes lentamente:
—Grogan’s Majestic Marley of Churchill.
Puxa, pensei, isso soa verdadeiramente nobre.
—Puxa — respondeu Jenny —, isso soa realmente imbecil.
Nem liguei. Eu iria lidar com a papelada, e já tinha escrito o
nome. A caneta. Jenny poderia torcer o nariz quanto quisesse. Quando
Grogan’s Majestic Marley of Churchill recebesse as honras máximas na
Exposição de Cães do Westminster Kennel Club dentro de alguns anos, e
eu passeasse gloriosamente com ele em volta do picadeiro diante de
uma audiência de televisão internacional simplesmente encantada,
veríamos quem iria rir por último.
— Vamos lá, meu duque de nada — disse Jenney —, vamos
tomar o café da manhã.
Capítulo 3
Chegando em casa
Enquanto contávamos os dias até poder trazer Marley para casa,
comecei a atualizar minha leitura sobre labradores. Digo “atualizar”,
porque, aparentemente, tudo o que eu lia me advertia, seriamente:
antes de comprar um cão, certifique-se de ter pesquisado a fundo sua
raça para saber mais sobre sua natureza. Opa!
Quem morasse em apartamento, por exemplo, provavelmente
não se adaptaria a um São Bernardo. Uma família com filhos pequenos
deveria evitar o imprevisível chow, chow. Uma pessoa que quisesse um
cão de companhia que passasse as horas de lazer em frente da televisão,
provavelmente ficaria louca com um border collie, que precisa correr e
trabalhar para se sentir feliz.
Eu me senti envergonhado de ter de admitir que Jenny e eu não
pesquisamos nada antes de decidir comprar o labrador. Escolhemos a raça
utilizando apenas um critério: a simpatia de rua. Em geral, admirávamos
estes cães passeando pela trilha de bicicleta da Intracoastal Waterway
com seus donos — grandes, bobões, brincalhões, que pareciam amar a
vida com uma paixão rara de se ver no mundo. Ainda mais vergonhoso
era admitir que nossa decisão não fora influenciada pelo Guia Completo
do Cão, a bíblia das raças caninas, publicada pela American Kennel
Club, ou qualquer outro guia respeitável. Ela fora influenciada por outro
peso-pesado da literatura canina, The Far Side, de Gary Larson. Éramos
fãs dessas tiras de quadradinhos. Larson enchia seus desenhos com
labradores urbanos e espertos, fazendo e falando as coisas mais
engraçadas. Sim, eles falavam! Como era possível não gostar deles?
Labradores eram animais totalmente engraçados — pelo menos nas mãos
de Larson. E quem não gostaria de ganhar um pouco mais de diversão em
sua vida? Nós estávamos perdidos.
Agora, enquanto eu olhava aspectos mais sérios sobre o labrador,
eu me senti aliviado ao saber que nossa escolha, mesmo mal orientada,
não seria tão louca assim. O texto estava cheio de testemunhos
maravilhosos sobre a personalidade amorosa e paciente do labrador, sua
gentileza com crianças, sua não-agressividade, e seu desejo de agradar.
Sua inteligência e maleabilidade fizeram-no um campeão de escolha
para o treinamento de busca e salvamento e como cão-guia para cegos e
deficientes físicos. Tudo isso se incorporava bem para um animal numa
casa que, provavelmente, mais cedo ou mais tarde, teria filhos.
Um guia desses dizia: “O labrador é conhecido por sua
inteligência, afeição calorosa pelas pessoas, pela destreza de campo e
dedicação permanente para executar qualquer tarefa”. Outro elogiava a
imensa lealdade da raça. Todas essas qualidades transformaram o
labrador de um cão especial para atividades esportivas, preferido por
caçadores de pássaros por causa de sua habilidade em capturar faisões
e patos abatidos de águas geladas, no animal de estimação favorito da
família americana. Apenas no ano anterior, em 1990, o labrador havia
superado o cocker spaniel no primeiro lugar de registro do AKC como a
raça mais popular do país. Nenhuma outra raça chegou perto de
ultrapassar o labrador desde então. Em 2004, completou-se seu décimo
quinto ano consecutivo no primeiro lugar na lista do AKC, com
146.692 cães labradores registrados. Em um segundo lugar afastado
estavam os labradores dourados, com 52.550 e, em terceiro lugar, os
pastores alemães, com 46.046 cães.
Quase sem querer, havíamos nos deparado com uma raça que os
americanos não se cansavam de adorar. Todos aqueles felizes donos de
cachorros não poderiam estar errados, não é? Havíamos escolhido um
vencedor. Mesmo assim, os artigos estavam recheados de senões.
Os labradores eram criados como cães trabalhadores e tendiam a
ter uma energia inesgotável. Eles eram bastante sociáveis e não
conseguiam ficar sozinhos por muito tempo. Eles poderiam ser cabeçasduras
e difíceis de ser treinados. Necessitavam de exercícios diários
vigorosos ou acabavam se tornando destrutivos. Alguns eram elétricos
e incontroláveis até para treinadores experientes. Eles tinham um lado
eternamente brincalhão ao longo de pelo menos três anos ou mais.
Esta longa e exuberante adolescência exigia paciência complementar
por parte de seus donos.
Eles tinham músculos muito desenvolvidos e haviam sido criados
por centenas de anos para tolerar a dor, qualidades que lhes serviam
quando precisavam mergulhar nas águas geladas do Atlântico Norte
para ajudar pescadores. Mas numa casa, essas mesmas qualidades
também significavam que eles poderiam se tornar verdadeiros touros
numa loja de cristais. Eles eram grandes, fortes, parrudos, mas nem
sempre percebiam a sua própria força. Uma dona me diria mais tarde
que, certa vez, ela amarrara seu labrador macho na porta de sua
garagem para que ficasse perto enquanto ela lavava o carro na calçada,
em frente à sua casa. Quando o cachorro avistou um esquilo, ele saltou e
arrancou o batente de aço da porta da parede.
Continuei lendo os textos e então encontrei uma frase que me
meteu medo: “Os pais são uma das melhores indicações do futuro
temperamento do seu novo filhote. Grande parte do comportamento é
herdado”. Minha mente voltou ao cão espumando e coberto de lama
que saíra correndo da floresta na noite em que escolhemos nosso
filhote. “Meu Deus”, pensei. O livro aconselhava em insistir, quando
fosse possível, em ver ambos o pai e mãe do filhote. Minha mente
voltou, dessa vez, à ligeira hesitação da criadora quando lhe perguntei
onde o pai estaria. “Oh, ele deve estar por aí em algum lugar.” E como
ela rapidamente mudara de assunto. Estava começando a fazer sentido.
Compradores de cachorros experientes teriam exigido conhecer o pai. E
o que eles descobririam? Um maníaco atravessando a noite às cegas
como se houvesse demônios em seu encalço. Rezei baixinho para que
Marley tivesse herdado o temperamento da mãe...
Colocando as feições genéticas de lado, os puros labradores
apresentam certas características previsíveis. O American Kennel Club
estabelece padrões das qualidades que labradores devem ter.
Fisicamente, eles são altos e musculosos, de pêlo curto, denso e
impermeável. Seu pêlo pode ser preto, cor de chocolate ou uma variação
de tons amarelos, de amarelo-creme a vermelho-escuro. Uma das
características principais do labrador é seu rabo grosso e possante, que
se assemelha ao de uma lontra e pode limpar uma mesinha de centro
num único movimento. A cabeça é grande e quadrada, com mandíbulas
fortes e orelhas flexíveis e altas. A maioria dos labradores tem quase um
metro de altura, e o macho típico pesa de vinte e nove a trinta e seis
quilos, embora alguns possam pesar muito mais.
Mas a aparência, de acordo com a AKC, não é o que faz deste cão
um labrador. O padrão da raça, de acordo com o clube, atesta: “O
temperamento de um verdadeiro labrador é uma marca registrada da
raça como o seu rabo de lontra. Seu comportamento ideal é de
natureza gentil, expansiva e sociável, atento e não-agressiva em relação
às pessoas e outros animais. O labrador tem uma personalidade que as
atrai. Seu modo agradável, sua inteligência e adaptabilidade fazem dele
um cão ideal”.
Um cão ideal! Uma aprovação não poderia nos alegrar mais do
que esta. Quanto mais eu lia, melhor eu me sentia em relação à minha
decisão. Mesmo os fatores negativos não me assustavam tanto. Jenny e
eu naturalmente iríamos nos dedicar ao nosso novo cachorro,
cobrindo-o de atenção e afeto. Iríamos nos dispor o tempo que fosse
necessário para treiná-lo adequadamente até se tornar obediente e
sociável. Adorávamos caminhar, correndo pela trilha junto à reserva
quase todo entardecer depois do trabalho, bem como pela manhã. Seria
natural trazer nosso novo cachorro conosco para nossas caminhadas
forçadas. Deixaríamos nosso cão cansado. O escritório de Jenny ficava
a apenas um quilômetro e meio de distância, e ela vinha almoçar em
casa todos os dias, quando poderia jogar bola para ele no jardim para
fazê-lo gastar ainda mais suas conhecidas energias inesgotáveis.
Uma semana antes de trazer nosso cão para casa, Susan, irmã de
Jenny, ligou de Boston. Ela, o marido e seus dois filhos tinham
planejado vir à Disney World na semana seguinte, e queriam saber se
Jenny gostaria de ir para passar alguns dias com eles. Como tia
prestimosa que aproveitava qualquer chance para estar com seus
sobrinhos, Jenny adoraria ir. Mas ela se sentiu dividida:
— Eu não vou estar aqui para trazer o pequeno Marley para casa
— ela disse.
— Vá — eu disse. — Eu vou buscar o cachorro, vou acomodálo
e deixá-lo esperando por você chegar em casa.
Tentei parecer despreocupado, mas intimamente eu estava
exultante com a perspectiva de estar sozinho com o novo cachorrinho
por alguns dias num reconhecimento masculino mútuo sem
interrupções. Ele era nosso projeto conjunto, tão meu quanto dela. Mas
eu nunca acreditei que um cachorro pudesse obedecer a dois senhores,
e se fosse para escolher entre os dois na hierarquia doméstica, queria
que fosse eu. Esse curto período de três dias iria me dar esta vantagem.
Uma semana depois, Jenny viajou para Orlando — uma viagem
de três horas e meia de carro. Naquela noite, depois do trabalho, sextafeira,
voltei à casa da criadora para buscar a nova aquisição para o
nosso lar. Quando Lori trouxe meu novo cachorro dos fundos da casa,
meu queixo caiu. O filhotinho que tínhamos escolhido três semanas
antes tinha agora mais do dobro do tamanho. Ele avançou na minha
direção e colocou a cabeça entre os meus tornozelos, caindo junto aos
meus pés e virando de barriga para cima, as patas no ar. Eu interpretei
como um sinal de súplica. Lori deve ter percebido o meu choque e disse:
— Ele está crescido, não está? — perguntou ela, alegremente. —
Você deveria vê-lo comer toda a ração do prato.
Eu me abaixei, fiz um carinho em sua barriga e disse:
— Está pronto para ir para casa, Marley?
Era a primeira vez que eu usava o seu novo nome, e me soou
perfeito.
No carro, coloquei algumas toalhas de praia para fazer um ninho
confortável para ele no banco de passageiro e o acomodei sobre ele.
Mas mal me afastei da entrada de carro e ele começou a se
movimentar e a sair das toalhas. Ele se arrastou em minha direção,
choramingando enquanto avançava. No meio do console, Marley se
deparou com o primeiro de inúmeros de obstáculos que ele encontraria
ao longo de sua vida. Ali estava ele, com as patas traseiras penduradas
sobre o lado do console em frente ao banco de passageiro e as patas
dianteiras penduradas sobre o lado do motorista. No meio, sua barriga
estava firme sobre o cabo do freio de mão. Suas patinhas agitavam-se
para todo lado, movimentando-se no ar. Ele se mexia, balançava e
oscilava, mas estava preso como um barco encalhado na areia. Estendi
o braço e passei minha mão sobre suas costas, o que o animou mais
ainda, e fez com que se mexesse mais. Suas patas traseiras buscavam
desesperadamente alcançar a elevação acarpetada entre os dois bancos.
Ele começou lentamente a elevar seu quadril no ar, subindo o traseiro
cada vez mais alto, abanando furiosamente o rabo, até que a lei da
gravidade finalmente entrou em ação. Ele despencou de cabeça do
outro lado do console, dando uma cambalhota no chão entre os meus
pés e virou de costas. Dali ele pulou rapidamente para o meu colo.
Como ele ficou feliz — supremamente feliz! Ele se regozijava ao
enfiar o focinho na minha barriga e mordiscava os botões da minha
camisa, seu rabo balançava como se estivesse em alta voltagem.
Rapidamente descobri que eu poderia afetar o tempo do movimento
do seu rabo apenas por tocá-lo. Enquanto eu segurasse a direção com ambas
as mãos o rabo se mexia três vezes por segundo. Tum-tum-tum. Mas tudo
que eu precisava fazer era pressionar um dedo sobre o alto de sua cabeça e
o ritmo passava de valsa para bossa-nova. Tum-tum-tum-tum-tum-tum!
Dois dedos e saltava para um mambo. Tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum! E
quando eu colocava toda a minha mão e massageava a sua cabeça com
meus dedos, a batida explodia como uma metralhadora ou um samba
elétrico. Tumtumtumtumtumtumtumtum!
— Nossa, o seu ritmo é bom! — eu disse. — Você é realmente
um cachorro reggae!
Ao chegar em casa, levei-o para dentro e soltei a coleira. Ele
começou a farejar tudo e não parou até ter cheirado cada centímetro
quadrado da sala. Depois se sentou sobre as patas traseiras e olhou
para mim virando a cabeça de lado como se dissesse: “Muito bem, mas
onde estão meus irmãozinhos e irmãzinhas?”.
A realidade de sua nova vida não se assentou até chegar a hora de
dormir. Antes de sair para buscá-lo, eu havia arrumado seu quarto na
garagem anexa à casa. Nunca estacionávamos o carro ali, usando-a mais
como depósito e despensa. A máquina de lavar e a secadora também
ficavam ali, junto com a tábua de passar. O quarto era seco e confortável,
e tinha uma porta traseira que ia dar no quintal cercado. E com seu
chão e parede de concreto, era aparentemente indestrutível.
— Marley — eu disse, alegremente, levando-o até lá —, este é o
seu quarto.
Espalhei brinquedos para ele morder, coloquei jornais no meio da
garagem, enchi uma vasilha com água, e transformei uma caixa de
papelão forrada com lençóis velhos em uma cama para ele.
E é aqui que você vai dormir — eu disse, colocando-o dentro da
caixa.
Ele estava habituado a dormir numa cama dessas, mas sempre a
dividiu com seus irmãos. Agora ele dava voltas do lado de dentro e
olhava desconsolado para mim. Para testá-lo, saí da garagem e fechei a
porta. Fiquei parado, ouvindo. Num primeiro momento, não houve
nenhum ruído. Em seguida, ele começou a ganir baixinho, quase
inaudível. E depois cresceu para um choro convulso. Parecia que estava
sendo torturado.
Eu abri a porta e assim que me viu ele parou de chorar. Eu me
aproximei e acariciei-o por alguns minutos e saí novamente. Do outro
lado da porta, comecei a contar. Um, dois, três... Ele esperou sete
segundos para começar a ganir e chorar de novo. Repetimos a mesma
cena diversas vezes, todas com o mesmo resultado. Eu estava cansado e
decidi que era hora de ele chorar até dormir. Eu deixei a luz da garagem
acesa para ele, fechei a porta, fui até o outro lado da casa e me deitei na
minha cama. As paredes de concreto não conseguiam abafar seus
ganidos. Continuei deitado, tentando ignorá-los, imaginando que a
qualquer minuto ele desistiria e iria dormir. O choro continuou. Mesmo
depois de tapar os ouvidos com o travesseiro, ainda conseguia ouvi-lo.
Eu pensei nele lá fora sozinho pela primeira vez na vida, neste lugar
estranho, sem um único cheiro de cachorro por perto. Ele não via sua
mãe nem seus irmãozinhos. Coitadinho dele. Eu gostaria de estar no
lugar dele?
Esperei mais meia hora antes de me levantar e ir até ele. Assim
que me viu, sua expressão se alegrou e seu rabo começou a bater nos
lados da caixa de papelão, como se dissesse: “Venha aqui para dentro,
tem lugar de sobra para nós dois!”.
Em vez disso, levantei-o dentro da caixa e levei-o para o meu
quarto, colocando-o no chão ao lado da minha cama. Deitei-me na
beira da cama, e deixei meu braço pendurado para dentro da caixa.
Ali, com a mão sobre ele, sentindo o seu peito subir e descer enquanto
respirava, desmaiamos de sono.
Capítulo 4
Sr. Terremoto
Nos três dias seguintes, dediquei-me inteiramente ao nosso novo
filhote. Eu me deitava no chão com ele e deixava-o passear por
cima de mim. Eu lutava com ele. Usei uma velha toalha de mão para
brincar de cabo-de-guerra com ele — e me surpreendi ao constatar a
força que ele já tinha. Ele me seguia por toda a parte — e tentava
morder qualquer coisa que sua boca pudesse alcançar. Ele demorou
apenas um dia para descobrir a melhor coisa de sua nova casa: o rolo de
papel. Ele entrou no banheiro e, cinco segundos depois, ele saiu
rapidamente, com o fim do papel higiênico agarrado em seus dentes,
com uma tira voando atrás dele enquanto ele corria pela casa. Parecia
uma decoração de Dia das Bruxas.
A cada meia hora eu o levava para o quintal para fazer suas
necessidades. Quando ele mijava por acidente dentro de casa, eu
ralhava com ele. Quando mijava do lado de fora, eu juntava minha
bochecha à dele e o elogiava com o tom de voz mais doce. Quando fazia
cocô fora de casa, eu reagia como se tivesse me dado o bilhete vencedor
da loteria da Flórida.
Quando Jenny voltou da Disney World, passou a cuidar dele com
o mesmo abandono que eu. Era impressionante de ver. A medida que os
dias passavam vi em minha jovem esposa um lado calmo, gentil e
provedor que eu sequer sabia que existia. Ela o segurava no colo, o
acariciava, brincava com ele, provocava-o. Ela penteava por todo o seu
pêlo em busca de pulgas e carrapatos. Ela se levantava a cada duas
horas durante a noite — noite após noite — para levá-lo para fazer
suas necessidades fora de casa. Isso mais do que qualquer outra coisa
foi o que ajudou para que ele se habituasse a fazê-lo sozinho em apenas
algumas semanas.
Principalmente, ela o alimentava.
Seguindo as instruções da embalagem, dávamos a Marley três
vasilhas grandes de comida para filhotes por dia. Ele devorava tudo em
questão de segundos. E o que entrava, é claro, saía do outro lado, e logo
nosso quintal parecia um campo minado. Não ousávamos pisar naquele
terreno sem estar com a vista bastante aguçada. Se o apetite de Marley
era grande, seus! dejetos eram maiores ainda, montes gigantescos que
se assemelhavam ao que ele havia engolido. Será que ele fazia a
digestão do que comia?
Aparentemente, sim. Marley estava crescendo a uma velocidade
assustadora. Como dessas vinhas selvagens que podem cobrir uma casa
em poucas horas, ele estava expandindo exponencialmente para todos
os lados. A cada dia estava um pouco mais comprido, um pouco mais
largo, um pouco mais alto, um pouco mais pesado. Ele pesava 9,5kg
quando eu o trouxe para casa e dentro de poucas semanas já pesava
quase 23kg. Sua cabecinha de filhote que eu amparei com minha mão
enquanto dirigia para casa naquela primeira noite havia rapidamente se
metamorfoseado em algo semelhante à forma e ao peso de uma bigorna
de ferreiro. Suas patas eram enormes, seus flancos já tinham músculos
torneados, e seu peito era quase tão largo quanto uma escavadora.
Exatamente como os livros diziam, seu rabinho de filhote estava se
tornando tão grosso e poderoso quanto de uma lontra.
E que rabo! Todos os objetos que estavam em casa, da altura do
joelho para baixo, foram derrubados pela arma louca e balançante do
Marley. Ele espanava mesinhas de centro, espalhava revistas, derrubava
as molduras de fotografias das prateleiras, fazia zunir garrafas de
cerveja e copos de vinho. Ele chegou a rachar uma veneziana na porta
da varanda. Gradualmente, todos os itens que não estivessem pregados
migraram para um nível mais alto para ficar a salvo das varridas de rabo
de Marley. Nossos amigos que tinham crianças pequenas e vinham nos
visitar, comentavam:
— A casa de vocês já é à prova de bebês!
Marley não sacudia seu rabo. Ele sacudia o seu corpo todo,
começando pelos ombros indo até o fim do outro lado. Ele era a versão
canina de Slinky. Poderíamos jurar que não havia ossos dentro dele,
apenas um único longo músculo elástico. Jenny começou a chamá-lo de
Sr. Terremoto.
E em nenhum outro momento ele se sacudia mais do que quando
tinha alguma coisa em sua boca. Sua reação em qualquer situação era a
mesma: agarrar o sapato, travesseiro ou lápis mais próximo — realmente
qualquer coisa servia — e sair correndo com ela. Uma voz em sua
cabeça deveria lhe sussurrar: “Vá em frente! Pegue isto! Babe bastante
em cima dele! Agora, saia correndo!”.
Alguns dos objetos que ele agarrava eram pequenos o suficiente
para serem escondidos, e isso o agradava muito — ele acreditava que
ninguém perceberia. Mas Marley nunca iria ser um bom jogador de
pôquer. Quando queria ocultar alguma coisa, não conseguia disfarçar
seu contentamento. Ele era sempre muito ativo, mas havia momentos
em que ele explodia num surto hiperativo, como se um espírito
brincalhão tivesse puxado o seu rabo. Seu corpo se contorcia, sua
cabeça balançava de um lado para outro, seu traseiro se movia numa
dança extática. Nós chamávamos isso de “Marley Mambo”.
— Muito bem, o que foi que você pegou desta vez? — eu dizia e,
ao me aproximar, ele começava a bater em retirada, correndo em
desenfreada carreira pela sala, sacudindo os quadris, a cabeça subindo e
descendo como um brinquedo de parque de diversões, tão exultante com
seu prêmio proibido que ele mal conseguia se conter. Quando
finalmente eu conseguia cercá-lo e o forçava a abrir a boca, eu nunca
deixava de encontrar alguma coisa. Sempre havia algo que ele pegara no
lixo ou do chão ou, à medida que ele crescia e ficava mais alto, de cima
da mesa de jantar. Guardanapos, lenços de papel usados, recibos de
supermercado, rolhas, clipes de papel, peças de xadrez, tampas de
garrafa — parecia uma arca inesgotável. Certo dia, abri suas mandíbulas
e encontrei meu contracheque grudado no céu da boca.
Dentro de algumas semanas, mal conseguíamos nos lembrar como era
a vida antes de nosso novo morador chegar. Rapidamente, entramos numa
rotina. Eu começava todas as manhãs, antes de tomar minha primeira
xícara de café, levando-o para passear na praia e voltava. Depois do café
da manhã, antes de tomar uma ducha, eu revirava o quintal com uma pá,
enterrando suas “minas” terrestres na areia no fundo do terreno. Jenny
saía para o trabalho antes das nove horas, e eu raramente saía de casa
antes das dez, primeiro fechando Marley na garagem com uma vasilha de
água fresca, uma pilha de brinquedos, e minha sorridente recomendação
para ele “ser um bom menino”. Ao meio-dia e meia, Jenny voltava para
casa para almoçar, quando ela lhe servia o almoço e jogava uma bola para
ele no quintal até ele ficar ofegante. Nas primeiras semanas, ela também
voltava para casa rapidamente no meio da tarde para deixá-lo sair para fazer
suas necessidades. Na maior parte das vezes, depois do jantar,
caminhávamos com ele até a costa, onde passeávamos ao longo da
Intracoastal, enquanto os iates de Palm Beach vagavam sob o fulgor do pôrdo-
sol.
Passear é provavelmente o termo errado. Marley passeava como
uma locomotiva desenfreada. Ele se lançava à frente, puxando a coleira
com todas as forças, engasgando enquanto nos arrastava atrás dele. Nós
puxávamos a coleira de volta e ele nos puxava adiante. Nós puxávamos
para trás, ele puxava para a frente, tossindo como um fumante
inveterado devido à coleira apertando seu pescoço. Ele virava para a
esquerda e para a direita, avançando sobre toda caixa de correio ou
arbusto, farejando, arfando e mijando sem parar inteiramente, em geral,
mijando mais em si mesmo do que no lugar que escolhera. Ele andava
em círculos à nossa volta, enrascando a coleira em nossos tornozelos
antes de voltar à carga novamente, quase nos derrubando. Quando
alguém se aproximava com outro cachorro, Marley pulava em cima deles
todo alegre, abaixando as patas traseiras ao chegar à extensão máxima de
sua coleira, morrendo de vontade de fazer novas amizades.
— Ele parece realmente amar a vida — comentou um dos donos
de cachorro que encontramos pelo caminho, e isso disse tudo.
Ele ainda era pequeno o bastante para que vencêssemos esses
cabos-de-guerra com a correia da coleira, mas a cada semana o
equilíbrio de forças começou a mudar. Ele estava ficando cada vez
maior e mais forte. Era claro que em pouco tempo ele seria mais forte do
que nós dois juntos. Sabíamos que teríamos de domá-lo e ensinar a ele
a se comportar adequadamente antes que nos arrastasse para uma
morte vexatória debaixo das rodas de algum carro. Nossos amigos
veteranos, donos de cachorros, aconselharam-nos a não querer
apressar o processo de obediência.
— É cedo demais — disse um deles. — Aproveitem sua infância
de cachorro enquanto podem. Ela passa logo e então vocês poderão
encarar seriamente o treinamento dele.
Foi isso que fizemos, o que não significa que deixamos que ele fizesse
tudo ao seu modo. Determinamos regras e tentamos obrigá-lo de maneira
consistente. A cama e a mobília eram proibidas para ele. Beber água da
privada, cheirar virilhas e morder pernas de cadeira eram erros
indesculpáveis, embora aparentemente valessem levar uma bronca por
isso. Não era nossa palavra favorita. Trabalhamos com ele os comandos
básicos — venha até aqui, fique quieto, sente-se, abaixe-se — com pouco
sucesso. Marley era jovem e ligado a mil, com uma concentração de alga e
volatilidade de nitroglicerina. Ele era tão excitável que qualquer interação
fazia-o quicar pelas paredes com uma exuberância jamais vista. Não
perceberíamos, senão muitos anos depois, que ele apresentava desde cedo
sinais de um estado que mais tarde seria usado para descrever o comportamento
de milhares de alunos difíceis de serem controlados nas escolas.
Nosso filhote sofria de um caso de desordem hiperativa com déficit de
atenção.
Mesmo assim, apesar de todos os seus ataques infantis, Marley
desempenhava um papel importante em nosso lar e em nosso
relacionamento. Com sua truculência, ele mostrava a Jenny que ela
tinha um lado maternal. Ela havia cuidado dele por várias semanas, e
ainda não o havia esganado. Muito pelo contrário, ele estava
florescendo. Nós brincávamos que talvez devêssemos começar a
alimentá-lo menos para estancar seu crescimento e reduzir o seu grau
de energia.
A transformação de Jenny de uma fria assassina de plantas à
devotada mãe de cachorro continuava a me abismar. Acho que ela também
se abismava um pouco com isso. Ela fazia isso naturalmente. Um dia,
Marley começou a ter violentas ânsias de vômito. Antes que eu percebesse
que havia realmente um problema, Jenny estava junto dele. Ela o pegou,
abriu sua boca com uma das mãos e, com a outra, puxou do fundo da
garganta um pedaço de celofane encharcado de saliva. Tudo num dia.
Marley tossiu mais uma vez, bateu o rabo contra a parede, e olhou para ela
como se dissesse: “Vamos fazer isso de novo?”.
A medida que nos familiarizávamos com o novo membro de nossa
família, sentimo-nos mais a vontade para falar sobre aumentá-la de outros
modos. Algumas semanas depois de trazer Marley para casa, decidimos
parar de usar métodos anticoncepcionais. Não quer dizer que decidimos que
Jenny iria engravidar, o que seria corajoso demais para pessoas que haviam
dedicado suas vidas à mais completa indecisão sobre esse tipo de coisa. Ou
melhor, resolvemos reconsiderar o assunto, apenas decidindo parar de não
querer que ela engravidasse. Era uma lógica confusa, nós admitimos, mas,
de alguma forma, fez com que nos sentíssemos melhor. Sem pressão.
Nenhuminha. Não estávamos tentando ter um filho; estávamos apenas
deixando isso acontecer naturalmente. Deixando que a natureza se
encarregasse. Que será, será e todo esse tipo de coisa.
Sinceramente, morríamos de medo disso. Tínhamos diversos
amigos que tentaram por vários meses, até mesmo anos, sem
sucesso e que lentamente tornaram público o seu desespero
pessoal. Nos jantares, conversavam obsessivamente sobre consultas
médicas, contagens de espermatozóides e ciclos menstruais
controlados, gerando um mal-estar para todos à mesa. Ou seja, o que
se diz numa hora dessas? “Acho que a contagem dos seus
espermatozóides está ótima!” A conversa se tornava insuportável.
Sentíamo-nos apavorados em acabar como eles.
Jenny havia sorrido vários ataques de endometriose antes de nos
casarmos e havia se submetido a uma laparoscopia para remover o
excesso de tecido endométrico de suas trompas de falópio, o que pode
provocar infertilidade. E ainda mais perturbador era um pequeno segredo
nosso. Cegos de paixão, no início do nosso namoro, quando o desejo
solapava todo bom senso que tivéssemos, pusemos todas as precauções de
lado amontoadas com nossas roupas e fizemos amor sem nos preocupar,
sem usar qualquer método contraceptivo. Não apenas uma, mas várias
vezes. Foi muito cretino de nossa parte e, pensando bem, hoje,
deveríamos beijar o chão em agradecimento por termos escapado
milagrosamente de uma gravidez indesejada. Em vez disso, poderíamos
pensar: “O que há de errado conosco? Nenhum casal normal poderia ter
transado daquela forma sem proteção alguma e escapado ileso”.
Estávamos convencidos de que conceber uma criança não iria ser fácil.
Ao contrário dos nossos amigos que anunciavam seus planos para
tentar engravidar, permanecemos em silêncio. Jenny iria simplesmente
deixar sua receita de pílulas anticoncepcionais dentro do armário de
remédios e esquecê-la ali. Se engravidasse, ótimo. Se não engravidasse,
bem, não estávamos na realidade tentando fazer nada disso agora, não
é?
O inverno em West Palm Beach é uma época gloriosa do ano,
marcada por noites límpidas e dias ensolarados, secos e quentes.
Depois do verão insuportavelmente longo e torpe, passado em maior
parte com o ar-condicionado ligado, ou saltando de uma sombra de
árvore a outra na tentativa de escapar do sol cáustico, o inverno era
nossa época de celebrar lado brando do clima subtropical. Fazíamos
todas as nossas refeições na varanda de trás, espremíamos o suco de
laranjas recém-colhidas do pé tínhamos no quintal toda manhã,
cuidávamos no diminuto jardim de ervas e alguns pés de tomate que
mantínhamos ao longo da casa, e colhíamos botões de hibiscos e os
deixávamos flutuando dentro de pequenas vasilhas com água sobre a
mesa de jantar. A noite, dormíamos com as janelas abertas, com o
aroma de gardênias recendendo no ar.
Num desses dias esplêndidos no final de março, Jenny convidou
uma amiga do trabalho para trazer Buddy, seu basset hound, para
brincar com Marley. Buddy tinha a expressão mais triste que já vi na
vida. Deixamos os dois cães soltos no jardim para se conhecerem
melhor. O velho Buddy não entendia muito bem este jovem cão
amarelo hiperagitado que corria e saltava em círculos em volta dele.
Mas ele levou no bom humor e continuaram brincando por mais de uma
hora até caírem exaustos sob a sombra da mangueira.
Alguns dias mais tarde, Marley começou a se coçar sem parar. Ele
se coçava tanto que ficamos com medo de ele se ferir. Jenny se ajoelhou
perto dele e começou uma de suas inspeções de rotina, abrindo o pêlo
com os dedos para poder ver sua pele. Em seguida, ela gritou:
— Nossa! Venha ver aqui!
Olhei por cima do ombro dela onde ela abrira o pêlo de Marley a
tempo de ver um pequeno ponto negro se esconder novamente.
Deitamos Marley no chão e começamos a perscrutar todo o seu corpo.
Marley adorou a atenção dos dois ao mesmo tempo e resfolegava feliz da
vida, batendo o rabo no chão. Encontramos pulgas por toda parte!
Centenas delas. Estavam entre seus dedos, debaixo de sua coleira e
enterradas dentro de suas orelhas. Mesmo que se movessem mais
lentamente para podermos pegá-las, o que não era o caso, era uma
quantidade grande demais para tentar fazer isso.
Tínhamos ouvido falar sobre os conhecidos problemas de ataques
de pulgas e carrapatos da Flórida. Sem períodos de neve ou gelo, as
populações de insetos nunca eram aniquiladas, e aumentavam num
meio quente e úmido. Este era um lugar onde até mesmo as mansões
milionárias ao longo da costa oceânica em Palm Beach tinham baratas.
Jenny ficou apavorada: seu cãozinho estava cheio de vermes. Claro que
culpamos Buddy sem a menor prova concreta. Jenny imaginou que não
apenas seu cachorro estava infestado, mas a casa inteira também. Ela
agarrou as chaves do carro e saiu porta afora.
Meia hora depois, ela voltou com uma sacola cheia de produtos
químicos suficientes para desinfetar o bairro inteiro. Ela trouxe banhos,
talcos sprays, espumas e cremes contra pulgas. Havia um pesticida para
plantas que o cara da loja lhe disse que teríamos de usar se realmente
quiséssemos acabar com todos. Havia um pente especial feito
especialmente para re-mover as larvas dos insetos.
Coloquei a mão dentro da sacola e puxei a nota de compra:
— Minha nossa, querida — eu exclamei —, poderíamos ter
alugado um avião carregado com pesticida por este valor!
Minha mulher nem se importou. Ela ligara novamente seu instinto
assassino — desta vez para proteger seus entes queridos — e ela não
estava brincando. Ela se esmerou na tarefa com requintes de vingança.
Esfregou Marley no tanque da lavanderia, usando os sabonetes
especiais. Então ela aplicou o creme que tinha a mesma fórmula
química que o inseticida de plantas, e despejou em cima dele até que
estivesse totalmente coberto. Enquanto ele secava na garagem,
cheirando o mesmo que uma fábrica da Dow Chemical em miniatura,
Jenny passou o aspirador de pó furiosamente — no chão, nas paredes,
nos tapetes, nas cortinas e nos estofados. Depois ela passou o spray. E
enquanto ela calibrava o ambiente com matador de pulgas, eu borrifava
o produto do lado de fora.
— Você acredita que conseguimos acabar com todos os insetos?
— perguntei, quando finalmente tínhamos terminado.
— Acho que sim — ela respondeu.
Nosso ataque múltiplo à população de pulgas na 345 Churchill
Road foi um estrondoso sucesso. Checávamos o pêlo de Marley todos
os dias, olhando entre os dedos das patas, debaixo das orelhas, do rabo,
na barriga, por todo o seu corpo. Não encontramos nem um traço de
pulga sequer. Checamos os tapetes, os sofás, sob as cortinas, na grama
— nada. Havíamos aniquilado o inimigo.
Capítulo 5
O teste de gravidez
Algumas semanas depois, estávamos deitados na cama lendo,
quando Jenny fechou seu livro e disse:
—Vai ver que não é nada.
—O que não é nada? — perguntei, absorto, sem desviar meus
olhos do meu livro.
—Minha menstruação está atrasada.
Com isto, ela conseguiu chamar toda a minha atenção:
— Sua menstruação? Está...?
Eu me virei para encará-la.
—Isso acontece algumas vezes. Mas já faz mais de uma semana.
E estou me sentindo esquisita também.
—Esquisita, como?
—Como se eu estivesse constipada ou algo do gênero. Eu bebi um
gole de vinho no jantar outro dia e eu achei que fosse pôr tudo para
fora.
—Você nunca fez isso.
—Só de pensar em bebida alcoólica fico enjoada.
Eu nem ousei dizer isso a ela, mas ela andava um bocado mal
humorada ultimamente.
— Você acha que...? — comecei a perguntar.
—Eu não sei. O que você acha?
—Como é que eu vou saber?
—Eu não disse nada — respondeu Jenny. — Vai saber... sabe
como é? Para não dar azar.
Neste momento, eu entendi quão importante isso era para ela — e
para mim também. De alguma forma, a paternidade havia tomado conta
de nós: estávamos prontos para ter nosso bebê. Ficamos deitados ali, um
ao lado do outro, por um longo tempo, sem dizer nada, olhando para o
teto.
—Não vamos conseguir dormir assim — eu disse, finalmente.
—Esse suspense está me matando — ela admitiu.
—Venha, vista-se — eu disse. — Vamos a uma farmácia comprar
um teste de gravidez.
Vestimos shorts e camiseta e saímos pela porta da frente, Marley
correndo na nossa frente, felicíssimo com a perspectiva de um passeio
de carro tarde da noite. Ele se erguia nas patas traseiras no banco
traseiro do nosso pequeno Toyota Tercel, saltando para cima e para
baixo, sacudindo, babando, arfando, tomado de ansiedade, esperando o
momento em que eu abrisse a porta traseira do carro.
— Veja só, até parece que ele é o pai — brinquei.
Quando abri a porta, ele saltou no banco de trás com tanta
vontade que voou até bater a cabeça na janela do outro lado,
aparentemente sem se machucar.
A farmácia ficava aberta até a meia-noite, e eu esperei dentro do
carro com Marley, enquanto Jenny foi correndo comprar o teste. Há
certas coisas que homens não devem comprar numa loja e um teste de
gravidez em farmácia é uma delas. Marley andava de um lado para o
outro no banco de trás, choramingando, os olhos grudados na porta de
entrada da farmácia. Como era de sua natureza toda vez que ficava
ansioso, o que acontecia quase o tempo todo, ele arfava e salivava
muito.
— Pelo amor de Deus, sossegue! — eu disse a ele. — O que você
acha que ela vai fazer? Fugir pela porta dos fundos?
Ele respondeu sacudindo-se inteiro, atirando baba de cachorro e
pêlos soltos em cima de mim. Como estávamos habituados com o
comportamento de Marley dentro do carro, tínhamos sempre uma
toalha de banho de emergência no banco da frente, e eu a usei para me
secar e limpar o interior do carro.
— Sossegue! — eu exclamei. — Tenho certeza de que ela vai
voltar.
Cinco minutos depois, Jenny retornava com uma pequena sacola
na mão. Ao sair do estacionamento, Marley encaixou os ombros entre
os assentos dos bancos dianteiros, balançando suas patas dianteiras
sobre o console central, com o nariz tocando o espelho retrovisor. Cada
curva o derrubava, de barriga, sobre o freio de mão. E a cada tombo,
imperturbado e mais feliz do que nunca, ele tornava a se postar no
mesmo lugar.
Alguns minutos mais tarde, estávamos de novo em casa, no
banheiro, com o teste de gravidez, que custou US$ 8.99, aberto ao lado
da pia. Eu li as instruções em voz alta:
— Muito bem — eu disse —, aqui diz que ele tem um acerto em
99% dos casos. A primeira coisa que você vai ter de fazer é pipi no
copinho.
O passo seguinte era mergulhar a fita plástica do teste na urina e
depois em um pequeno tubo com uma solução que vinha junto com o
teste.
— Espere cinco minutos — eu disse. — Depois colocamos na
segunda solução por quinze minutos. Se ficar azul, você está
oficialmente grávida, querida!
Marcamos os primeiros cinco minutos. Depois Jenny colocou a
fita no segundo tubo e disse:
— Eu não agüento ficar aqui esperando.
Fomos para a sala e começamos a conversar sobre qualquer coisa,
fazendo de conta que estávamos esperando a água da chaleira ferver.
— Você viu o jogo dos Dolphins? — eu arrisquei, mas meu
coração se acelerara, e eu sentia um frio no estômago.
Se o resultado do teste fosse positivo, puxa vida, nossas vidas
iriam mudar para sempre. Se fosse negativo, Jenny iria ficar
decepcionada. Eu estava começando a perceber que eu ficaria também.
Depois do que pareceu uma eternidade, o temporizador tocou.
— Aí vamos nós — eu disse. — Não importa qual seja o
resultado, saiba que eu amo você.
Fui até o banheiro e pesquei a fita do teste do tubo. Sem dúvida,
estava azul. Azul como o fundo do mar. Um azul-marinho escuro, denso,
brilhante. Um tom de azul que não poderia ser confundido com nenhuma
outra cor.
— Parabéns, querida! — eu disse.
— Oh, meu Deus! — foi tudo que ela conseguiu dizer, e se jogou
em meus braços.
Abraçados ali, de olhos fechados, junto à pia do banheiro, aos
poucos me dei conta de algo se mexendo em torno dos nossos pés.
Olhei para baixo e lá estava Marley, sacudindo-se, balançando a
cabeça, abanando o rabo, batendo contra a porta do closet com tanta
força que poderia parti-la. Quando me abaixei para acariciá-lo, ele
escapuliu. Oh-oh. Era o Marley Mambo e isso significava apenas uma
coisa.
— O que você tem aí desta vez? — perguntei, e comecei a
persegui-lo.
Ele correu para a sala de visitas, escapulindo por pouco. Quando
finalmente consegui segurá-lo e abri sua bocarra, de cara, não vi nada.
Depois, no fundo de sua língua, quase descendo pela garganta, vi
alguma coisa. Era algo longo, fino e achatado. E era azul como o fundo
do mar. Pincei sua garganta e puxei a fita de teste de gravidez positiva
para fora.
— Desculpe desapontá-lo, camarada — eu disse —, mas isto eu
vou guardar em meu livro de recordações.
Jenny e eu começamos a rir e continuamos rindo por um bom
tempo. Eu e ela nos divertimos pensando no que estava se passando
naquela sua grande cabeça quadrada: “Humm, se eu destruir a prova,
talvez eles se esqueçam deste episódio infeliz, e eu não tenha de dividir
o meu castelo com um invasor, afinal”.
Então Jenny agarrou Marley pelas patas dianteiras, levantou-o
sobre as patas traseiras e dançou pelo quarto com ele.
— Você vai virar titio! — ela cantarolava.
Marley respondia com sua marca registrada — esticando-se e
passando sua língua imensa e molhada sobre a boca dela.
No dia seguinte, Jenny me ligou no trabalho. Sua voz estava
borbulhante. Ela acabara de voltar do médico que havia oficialmente
confirmado o resultado do nosso teste caseiro:
— Ele disse que estou ativa e operante — ela brincou.
Na noite anterior, contamos no calendário, tentando localizar a
data da concepção. Ela estava preocupada que já estivesse grávida
quando tivemos de fazer a erradicação de pulgas poucas semanas atrás.
Expor-se a todos aqueles pesticidas poderia ser prejudicial, não é? Ela
falou de seus temores com o médico e ele lhe disse que isso não seria
preocupante. “Apenas não os use novamente”, aconselhou. Ele lhe
deu uma receita de vitaminas pré-natais e disse que queria vê-la em
seu consultório em três semanas para um ultra-som, um processo de
reprodução de imagem eletrônica que nos daria o primeiro vislumbre do
pequeno feto que estava crescendo em sua barriga.
— Ele me pediu que não deixássemos de levar uma fita de vídeo
— ela disse —, para guardarmos uma cópia para a posteridade.
Fiz uma anotação no calendário sobre a minha mesa para não
me esquecer.
Capítulo 6
Questões do coração
Os moradores locais dirão que o sul da Flórida tem quatro
estações. Sutis, eles admitem, mas, mesmo assim, quatro estações
distintas. Não acredite no que eles dizem. Há apenas duas — a estação
tépida e seca e a estação quente e úmida. Foi em torno da volta do
calor tropical abrasante quando acordamos certa manhã e descobrimos
que o nosso cãozinho deixara de ser um filhote. Tão rapidamente
quanto o inverno se metamorfose ara em verão, parecia que Marley
havia se tornado um adolescente rebelde. Aos cinco meses de idade,
seu corpo havia preenchido todas as dobras sob sua superpelagem
amarela. Suas patas enormes não pareciam mais cômicas e
desproporcionais. Seus dentes de leite afiados deram lugar a caninos e
molares que poderiam destruir um Frisbee — ou um sapato de couro
novinho — em poucas mordidas. O tom do seu latido se transformara
num som grave e intimidador. Quando ele ficava de pé sobre as patas
traseiras, o que ele fazia com freqüência, equilibrando-se como um urso
de circo russo, ele apoiava suas patas dianteiras sobre os meus ombros
e olhava-me nos olhos.
A primeira vez que o levamos ao veterinário, ele soltou um leve
assobio e disse:
— Este vai crescer bastante.
E realmente cresceu. Ele se transformou num espécime elegante,
e eu me senti obrigado a lembrar à Sra. Jenny que o nome formal que
eu havia criado para ele não estava longe de corresponder à verdade.
Grogan’s Majestic Marley of Churchill, além de morar na Churchill Road,
era a própria definição do termo majestático. Quer dizer, quando ele
parava de correr atrás do seu próprio rabo. Às vezes, depois de gastar
toda a sua energia, ele se deitava sobre o tapete persa na sala de visitas,
aquecendo-se sob os raios de sol que filtravam pelas frestas das
venezianas. A cabeça erguida, o nariz brilhante, patas cruzadas à sua
frente, ele parecia uma esfinge egípcia.
Não fomos os únicos a notar essa transformação. Podíamos ver
pela reação de espanto que as pessoas estranhas tinham diante dele e o
modo como se encolhiam, quando ele as encarava, de que não parecia
mais um filhote inofensivo. Para elas, Marley havia se transformado em
um animal cuja aparência causava temor.
Nossa porta da frente tinha uma pequena janela oblonga à altura
dos olhos, com dez centímetros de largura por vinte de altura. Marley
adorava companhia e toda vez que alguém tocava a campainha, ele
atravessava a casa num pinote, e deslizava ao chegar no hall de
entrada, cortando o assoalho de madeira, tirando todas as passadeiras
do lugar, parando apenas ao chocar-se contra a porta com um
trambolhão. Então ele se erguia em suas patas traseiras, latindo que
nem um louco e colocando a cabeça pela pequena janela para olhar
direto no rosto de quem estivesse do outro lado. Para Marley, que se
considerava o perfeito Comitê de Recepção em cachorro, era uma
saudação calorosa. Para vendedores de porta-a-porta, carteiros e
entregadores, ou qualquer outra pessoa que não o conhecesse, era como
se cujo tivesse saltado de uma das páginas do romance de Stephen
King, e a única coisa que os separava era a porta da frente da casa. Mais
de uma vez aconteceu de alguém tocar a campainha e, ao ver Marley latir
através da janela, dar meia-volta até outro acesso de entrada, onde
esperaria um de nós vir abrir a porta.
Nós achávamos que isso não era necessariamente ruim.
Vivíamos, como dizem os planejadores urbanos, num bairro em
constante mutação. Construído nas décadas de 1940 e 1950, e
inicialmente ocupado por turistas do norte e aposentados, começou a
mudar de aspecto quando os primeiros moradores começaram a morrer e
foram trocados por um grupo de proprietários e famílias trabalhadoras.
Quando nos mudamos para cá, a vizinhança estava novamente passando
por uma transformação, desta vez ocupada por homossexuais, artistas e
jovens profissionais atraídos para este refúgio à beira-mar, e por sua
arquitetura déco kitsch.
Nosso quarteirão servia de área intermediária entre a South
Dixie Highway e as mansões ao longo da costa. A Dixie Highway era a
via original US 1 que seguia ao longo da costa leste da Flórida e
servia como a estrada principal até Miami antes da abertura da
interestadual. Tinha cinco pistas de concreto, com uma pista dupla em
cada direção, uma de conversão a esquerda, pontilhada por lojas
baratas, postos de gasolina, estandes de frutas, revendedoras,
restaurantes e motéis em decadência, que foram marcos de outra era.
Nas quatro esquinas da South Dixie Highway e a Churchill Road
havia uma casa de bebidas, um mercado de conveniência 24 horas, uma
loja de importados com barras pesadas nas janelas e uma lavanderia
automática a céu aberto, onde as pessoas ficavam a noite inteira,
muitas das vezes deixando para trás, garrafas vazias de bebida. Nossa
casa ficava no meio do quarteirão, a oito casas do centro da muvuca.
A vizinhança parecia segura para nós, mas havia histórias sobre
seu lado obscuro. Sumiam ferramentas esquecidas no quintal e,
durante os raros períodos de frio, alguém roubara toda a lenha da lareira
que eu tinha estocado ao lado da casa. Num domingo, estávamos
tomando o café da manhã em nosso restaurante favorito, sentados à
mesa que sempre usávamos, bem em frente à janela, quando Jenny
apontou para um buraco de baía no vidro logo acima de nossas cabeças
e comentou, secamente:
— Definitivamente não havia isto da última vez que viemos aqui.
Certa manhã, eu estava saindo de carro para ir trabalhar,
quando vi um homem deitado junto ao meio-fio, com as mãos e o rosto
cobertos de sangue. Parei o carro e corri até ele, pensando que tivesse
sido atingido por um veículo. Mas quando me abaixei perto dele, um
forte odor de álcool e urina invadiu minhas narinas e, quando ele
começou a falar, percebi claramente que ele estava bêbado. Chamei a
ambulância e esperei ao lado dele, mas quando a equipe médica chegou,
ele recusou ser tratado. Levantou-se e seguiu na direção da loja de
bebidas, deixando a mim e os paramédicos embasbacados.
Numa noite quando um homem que parecia desesperado bateu à
minha porta para perguntar-me se eu poderia lhe emprestar cinco
dólares, pois viera visitar uma casa no quarteirão ao lado e ficara sem
gasolina no carro. Ele me pagaria no dia seguinte de manhã. Claro que
sim, companheiro, pensei. Quando eu me ofereci para chamar a
polícia ao invés de lhe emprestar o dinheiro, ele deu uma desculpa
esfarrapada e sumiu.
O mais perturbador de tudo foi o que descobrimos sobre a pequena
casa defronte à nossa. Tinha havido um assassinato poucos meses antes
de nos mudarmos. E não um mero assassinato, mas um terrível,
envolvendo uma viúva inválida e uma serra elétrica. O caso tinha ido
parar nas manchetes de jornal a tal ponto que, mesmo morando
distante, conhecemos bem os detalhes do crime — ou seja, sabíamos de
tudo, menos o local. E agora estávamos aqui vivendo diante da cena do
crime, do outro lado da rua.
A vítima foi uma professora primária aposentada chamada Ruth
Ann Nedermier, que vivia sozinha na casa, uma das moradoras originais
da vizinhança. Após se submeter a uma cirurgia de quadril, ela
contratara uma enfermeira durante o dia para ajudar a cuidar dela, o
que foi uma decisão fatal. A enfermeira, a polícia veio a apurar mais
tarde, vinha roubando cheques do talão da Sra. Nedermier e falsificando
a sua assinatura.
A velha senhora estava fragilizada, mas continuava mentalmente
alerta, e confrontou a enfermeira sobre os cheques desaparecidos e os
saques injustificados em sua conta corrente. A enfermeira, em pânico,
assassinou a mulher com um porrete, e depois chamou seu namorado,
que trouxe uma serra elétrica e a ajudou a desmembrar o corpo da
mulher na banheira. Juntos, colocaram as partes do corpo dentro de um
baú, enxaguaram o sangue da banheira e foram embora.
Por vários dias, o desaparecimento da Sra. Nedermier foi um
mistério, contaram depois nossos vizinhos. O mistério foi solucionado
quando um homem chamou a polícia para dar parte de um odor terrível
que saía de sua garagem. Os policiais descobriram o baú e o que ele
continha. Quando lhe perguntaram como o baú havia ido parar lá, ele
lhes contou a verdade: sua filha havia lhe pedido para guardá-lo.
Embora o terrível assassinato da Sra. Nedermier fosse o assunto
mais comentado da história do nosso quarteirão, ninguém comentou
sobre ele quando estávamos nos preparando para comprar a casa. Nem
o corretor de imóveis, nem os proprietários, nem o subdelegado, nem o
avaliador. Ao longo da nossa primeira semana na casa, os vizinhos
trouxeram biscoitos e um ensopado, e contaram-nos o que havia
acontecido. Ao nos deitarmos à noite, era difícil não pensar que a
apenas trinta metros de distância da janela do nosso quarto uma viúva
indefesa havia sido serrada aos pedaços. Era algo que imaginávamos
que nunca aconteceria conosco. Embora não conseguíssemos andar em
frente à nossa casa, ou mesmo olhar pela janela sem lembrar do que
havia acontecido ali.
De algum modo, ter Marley conosco e ver como as pessoas
desconhecidas olhavam assustadas para ele, dava-nos uma sensação de
paz que talvez não conseguíssemos ter de outra forma. Ele era um
imenso cão amoroso, cuja estratégia de defesa contra intrusos
certamente seria lambê-los até matá-los. Mas os gatunos e predadores
não precisavam saber disso. Para eles, Marley era grande, possante e
imprevisivelmente louco. E era assim que gostávamos que ele se
parecesse.
A gravidez fez muito bem à Jenny. Ela se levantava pela manhã
para se exercitar e caminhar com Marley. Ela preparava refeições
nutritivas e saudáveis, cheias de legumes e frutas frescas. Ela eliminou a
cafeína e refrigerantes dietéticos e, claro, qualquer bebida alcoólica, não
me permitindo nem mesmo colocar uma colher de sopa de xerez para
temperar a comida.
Ela jurou manter segredo sobre a gravidez até que estivéssemos
certeza de que o feto estivesse firme sem risco de aborto espontâneo,
mas nem ela nem eu conseguimos disfarçar. Estávamos tão
entusiasmados que confidenciamos a novidade a todos de nossos
parentes e amigos, pedindo segredo, até que não fosse mais segredo.
Primeiro contamos aos nossos pais, depois aos nossos irmãos, então aos
amigos mais íntimos, em seguida aos nossos colegas de trabalho e
vizinhos. Com dez semanas, a barriga de Jenny começou a arredondarse
de leve. A gravidez parecia mais palpável. Por que não dividir nossa
alegria com o resto do mundo? Quando chegou o dia do exame e de
ultra-som de Jenny, era como se tivéssemos colocado um anúncio num
outdoor: John e Jenny estão esperando um bebê.
No dia do exame médico, não fui trabalhar pela manhã e, como foi
pedido, trouxe uma fita de vídeo virgem para podermos registrar as
primeiras imagens granuladas do nosso filho. A consulta seria uma
sessão de check-up e de instruções. Iríamos conversar com uma
obstetra que responderia a todas as nossas perguntas, medir a barriga
de Jenny, ouvir os batimentos cardíacos do bebê e, claro, mostrar-nos
suas feições dentro do seu útero.
Chegamos às nove da manhã, ansiosos. A obstetra, uma senhora
gentil de meia-idade, com sotaque britânico, conduziu-nos a um
pequeno consultório de exames e perguntou na mesma hora:
— Gostariam de ouvir os batimentos do coração do bebê?
Claro que sim, nós respondemos. Ouvimos atentamente enquanto
ela passava um tipo de microfone adaptado a um pequeno alto-falante
sobre a barriga de Jenny. Ficamos em silêncio, o sorriso congelado em
nosso rosto, auscultando para ouvir batidas abafadas, mas só havia
estática.
A obstetra disse que isso era comum.
— Depende da posição do bebê dentro do útero. Às vezes, não se
consegue ouvir nada. Pode ser que ainda seja cedo.
Ela sugeriu passarmos para o ultra-som.
—Vamos dar uma olhada no seu bebê — ela disse num tom
faceiro.
—Nossa primeira visão do bebê Grogie — disse Jenny, sorrindo
para mim.
A obstetra nos levou até a sala de ultra-som e deitou Jenny
sobre a mesa de exame com uma tela de monitor ao lado dela.
— Eu trouxe a fita — eu disse, agitando-a na frente dela.
— Segure-a por enquanto — respondeu a obstetra, puxando a
blusa de Jenny e começando a passar um instrumento sobre a barriga
dela que tinha a mesma dimensão e formato que um taco de hóquei.
Olhamos para o monitor do computador e vimos uma massa cinza
indefinida.
— Humm, não dá para ver nada — disse ela, sem alterar o tom de
voz.
— Vamos tentar um ultra-som transvaginal. Dá para pegar muito
mais detalhes desse modo.
Ela saiu da sala e voltou alguns momentos depois com outra
enfermeira, uma loura alta com um monograma nas unhas dos dedos das
mãos. Chamava-se Essie, e pediu a Jenny que tirasse a calcinha, e depois
inseriu um sensor coberto de látex em sua vagina. A obstetra estava
certa: a resolução era muito superior à do ultra-som. Ela aproximou a
imagem sobre um aparente invólucro diminuto no meio de um mar
cinzento e, com um clique do mouse, aumentou-o duas vezes e depois
uma terceira vez. Mas apesar de toda resolução, o invólucro parecia
apenas vazio e informe para nós. Onde estavam os bracinhos e
perninhas que os livros de gravidez diziam que estariam formados em
torno de dez semanas? Onde estava a cabecinha? Onde estavam os
batimentos cardíacos? Jenny, com o pescoço esticado olhando para a
tela, ansiosa, perguntou às enfermeiras com um riso um pouco nervoso:
— Há algo aí?
Eu ergui os olhos para ver a expressão de Essie e eu percebi que
não queríamos ouvir a resposta. De repente, entendi por que ela não
respondia enquanto continuava aumentando a imagem. Ela disse a
Jenny num tom de voz controlado:
— Não o que se esperaria ver com dez semanas.
Coloquei minha mão sobre o joelho de Jenny. Continuamos
olhando fixamente para a tela, como se pudéssemos dar-lhe vida.
— Jenny, acho que temos um problema aqui — Essie disse. —
Deixe-me chamar o Dr. Sherman.
Enquanto esperávamos em silêncio, descobri o que as pessoas
querem dizer quando tentam descrever o enxame de gafanhotos que se
abate sobre alguém um pouco antes de desmaiar. Senti o sangue fugir de
minha cabeça e meus ouvidos zuniram. Se eu não me sentar, pensei, vou
cair no chão. Que vergonha seria isso. Minha mulher, tão corajosa,
suportando a notícia estoicamente, enquanto seu marido caía,
inconsciente, as enfermeiras tentando reavivá-lo com sais aromáticos.
Continuei meio sentado na beira da mesa de exames, segurando a mão de
Jenny e passava os dedos em seu pescoço com a outra mão. Seus olhos se
encheram de lágrimas, mas ela segurou o choro.
Dr. Sherman, um homem alto e bem apessoado com expressão
séria, mas afável, confirmou que o feto estava morto.
— Teria sido possível captar os batimentos cardíacos, sem
dúvida — ele disse.
Ele nos disse, com candura, o que já havíamos lido nos livros. Que
uma em cada seis gravidezes resulta em aborto. Que esta era a forma da
natureza dispensar os bebês que fossem mais fracos, mentalmente
comprometidos ou deformados. Aparentemente lembrando-se da
preocupação de Jenny quanto aos exterminadores de pulgas, ele nos
disse que não havia nada que pudéssemos ter feito ou não ter feito. Ele
tocou o rosto de Jenny e aproximou-se dela como se fosse beijá-la:
— Eu sinto muito — ele disse. — Vocês podem tentar
novamente dentro de alguns meses.
Ficamos em silêncio. A fita virgem de vídeo sobre o banco ao
nosso lado de repente pareceu-nos constrangedora, lembrando-nos,
de forma dolorosa do nosso otimismo cego e ingênuo. Eu quis jogá-la
na parede. Quis escondê-la.
Perguntei ao médico:
— O que fazemos agora?
— Temos de remover a placenta — ele disse. — Há alguns anos,
vocês ainda não teriam sabido do aborto até a hemorragia começar.
Ele nos deu a opção de esperar o fim de semana e voltar na
segunda-feira para fazer o procedimento, que seria o mesmo que um
aborto provocado, o feto e a placenta sendo sugados do útero, mas
Jenny queria que isto acabasse logo, e eu também.
— Quanto mais cedo melhor — ela disse.
— Está bem — disse o Dr. Sherman.
Ele lhe deu uma medicação para forçar a dilatação e saiu. No final
do corredor pudemos ouvi-lo entrar em outra sala de exame e saudar
alegremente uma futura mamãe pela confirmação de sua gravidez.
Sozinhos, Jenny e eu abraçamo-nos pesarosamente, e ficamos
assim até ouvirmos bater de leve na porta. Era uma senhora mais idosa
que ainda não havíamos visto. Ela trouxe alguns papéis.
— Sinto muito, querida — ela disse a Jenny. — Sinto muitíssimo.
Ela lhe mostrou onde deveria assinar o termo de responsabilidade,
tomando ciência dos riscos da sucção uterina.
Dr. Sherman retornou e logo começou a operar. Ele injetou
primeiro uma dose de Valium e depois de Demerol e o procedimento foi
rápido, talvez indolor. Ele terminou antes mesmo de a injeção fazer
efeito inteiramente. No fim, Jenny permaneceu praticamente
inconsciente, enquanto os sedativos a mantinham adormecida.
— Apenas se certifique de que ela continua respirando — disse o
médico e saiu da sala.
Quase não acreditei. Não era responsabilidade dele se assegurar de
que ela continuasse respirando? O termo de responsabilidade que ela
assinou não dizia “A paciente poderá parar de respirar a qualquer
momento devido à overdose de barbitúricos”. Fiz como me
recomendaram, falava com ela em voz alta, esfregando seus braços,
tocando-a no rosto e dizendo:
— Ei, Jenny! Qual o meu nome?
Ela parecia morta.
Após alguns minutos, Essie olhou para dentro da sala para
checá-la. Ela notou a coloração cinzenta do rosto de Jenny e saiu
correndo, voltando em seguida com um pano úmido e sais aromáticos,
segurando-os sob o nariz de Jenny por um longo tempo até que ela
começou a se mexer e depois parou. Continuei falando com ela em voz
alta, pedindo-lhe para respirar profundamente de forma que eu sentisse
o ar saindo sobre a palma da minha mão. Sua pele estava acinzentada.
Senti o seu pulso: sessenta batimentos por minuto. Passei
nervosamente o pano úmido sobre a sua fronte, as faces e o pescoço.
Um pouco depois, ela retomou a consciência, embora ainda estivesse
bastante grogue.
— Você me deixou preocupado — eu disse.
Ela apenas olhou para mim sem entender por que eu haveria de
ter ficado preocupado. Em seguida, adormeceu novamente.
Meia hora depois, a enfermeira ajudou-a a se vestir e eu a
conduzi para fora do consultório com estas recomendações: pelas duas
semanas seguintes ela não poderia tomar banho de banheira, nem
nadar, nem usar duchas, nem tampões, nem fazer sexo.
No carro, Jenny continuou em silêncio, encostada à porta,
olhando absorta pela janela. Seus olhos estavam vermelhos, mas ela
não estava chorando. Pensei no que dizer a ela, que pudesse consolá-la,
sem sucesso. Na verdade, o que eu poderia dizer? Havíamos perdido
nosso filho. Sim, eu poderia dizer que tentaríamos novamente. Eu
poderia dizer que muitos casais passam pelo mesmo problema. Porém,
ela não iria querer ouvir isso, e eu não queria dizê-lo. Algum dia
poderíamos falar sobre isso com mais distanciamento. Mas não hoje.
Peguei a estrada para casa, passando ao longo da Flagler Drive,
que contorna a costa de West Palm Beach do lado norte da cidade,
onde era o consultório do médico, para o lado sul, onde morávamos. O
sol reluzia sobre a água, as palmeiras balançavam-se de leve sob um
céu azul sem nuvens. Era um dia perfeito para a alegria, mas não para
nós. Percorremos todo o caminho até chegar em casa sem trocar uma
palavra.
Ao chegar, ajudei Jenny a entrar e a se deitar no sofá, e fui até a
garagem onde Marley, como sempre, estava nos esperando voltar,
arfando, ansioso. No momento em que me viu, mergulhou para pegar
seu osso gigante e desfilou com ele, orgulhoso, pela garagem, sacudindo
o corpo, o rabo batendo na máquina de lavar como uma baqueta sobre
um tambor. Fez como se pedisse para eu tentar pegar o osso de sua
boca.
— Hoje não, camarada — respondi, e deixei-o sair pela porta dos
fundos até o jardim.
Ele esvaziou a bexiga longamente sob a árvore e correu de volta
para dentro, bebeu bastante de sua vasilha, espalhando água para todo
lado, e atravessou o corredor à procura de Jenny. Levei alguns minutos
ainda para fechar a porta dos fundos, secar a água que ele havia
esparramado e segui-lo até a sala.
Ao entrar, eu me detive. Eu teria apostado uma grana preta que
aquilo que eu estava vendo jamais viria a acontecer. Nosso cão elétrico
colocara seus ombros entre os joelhos de Jenny, e apoiou docemente
sua grande cabeça quadrada em seu colo. Seu rabo estava caído entre
as pernas, que eu me lembre era a primeira vez que não o balançava ao
estar perto de qualquer um de nós. Ele a olhava e soluçava baixinho.
Ela passou a mão sobre sua cabeça algumas vezes e, então, sem que
esperássemos, ela escondeu o rosto no pêlo de seu pescoço e irrompeu a
chorar. Um choro doído, sentido, imenso.
Ela continuou abraçada a ele por um longo tempo, Marley
paralisado, Jenny agarrada a ele como um boneco gigante. Fiquei ao
lado deles, um intruso diante de um momento íntimo sem saber o que
fazer. E então, sem erguer o rosto, ela estendeu um braço em minha
direção, e eu me aproximei do sofá, passando meus braços em torno
dela. Ficamos os três ali, atados num mesmo abraço de profunda dor.
Capítulo 7
Dono e cachorro
Na manhã seguinte, um sábado, acordei assim que amanheceu, e
vi Jenny deitada virada de costas para mim, chorando baixinho. Marley
estava acordado também, com o queixo apoiado sobre o colchão, mais
uma vez num gesto solidário para com sua dona. Eu me levantei e coei o
café, fiz suco de laranja fresco, trouxe o jornal, fiz torradas. Quando Jenny
saiu do quarto vestida em seu roupão alguns minutos depois, estava com
os olhos secos e sorriu para mim como que dizendo que agora ela estava
bem.
Depois de tomar o café da manhã, decidimos sair e passear com
Marley até a beira d’água para irmos nadar. Um grande quebra-mar de
concreto e várias pedras redondas estendiam-se ao longo da costa perto
de casa, dificultando o acesso ao mar. Mas depois de andar meia dúzia
de quarteirões em direção sul, o quebra-mar cortava um trecho de terra,
deixando surgir uma pequena praia de areia branca coberta de restos
de galhos trazidos pelas águas — um lugar perfeito para um cão
saltitar. Quando chegamos à prainha, balancei uma vareta na frente de
Marley e soltei-o da coleira. Ele encarou a vareta como um homem
faminto olharia para um pedaço de pão, sem desviar o olhar:
— Vá pegá-lo! — gritei, e atirei a vareta o mais longe possível
sobre a água. Ele saltou o muro de concreto de modo espetacular,
trotou pela praia entrou na água rasa, jogando água para todo lado.
Isto é o que os labradores nasceram para fazer. Está em seus genes e
em sua descrição de atividades.
Ninguém sabe onde os labradores se originaram, mas sabe-se o
seguinte: não foi na costa do Labrador. Estes cães de água, musculosos,
de pêlo curto, surgiram no século XVII a poucas centenas de
quilômetros ao sul do Labrador, na Terra Nova, no Canadá. Os
primeiros cronistas registraram que os pescadores locais levaram os
cães para o mar em suas barcas, fazendo-os trabalhar puxando linhas e
redes de pesca, e agarrando os peixes fisgados nos anzóis. A pelagem
densa e oleosa desses cães protegia-os das águas geladas e sua
capacidade infatigável para nadar e habilidade de segurar o peixe
gentilmente em sua boca sem danificar sua carne transformaram-nos em
cães de trabalho ideais para as condições climáticas adversas do
Atlântico Norte.
Como os cães apareceram na Terra Nova ninguém sabe. Eles não
são originários da ilha e não há evidência de que os esquimós, que
primeiro se estabeleceram na região, tenham trazido os cães com eles. A
teoria mais plausível conta que os antigos ancestrais dos labradores
foram trazidos para a Terra Nova por pescadores do continente europeu
e da Bretanha, e que deixaram os navios, estabelecendo-se na costa,
formando alguns grupos desta raça. A partir de então, o que se
conhece hoje como labrador pode ter evoluído de forma espontânea,
cruzando-se entre eles. Eles apresentam, uma ancestralidade em
comum com uma raça de proporções maiores que existe na Terra Nova.
Sejam quem forem, os incríveis labradores logo foram colocados
para trabalhar pelos caçadores da ilha, para buscar peixes e pássaros
abatidos. Em 1662, um habitante de St. John, na Terra Nova, chamado
W. E. Cormack, atravessou a ilha a pé e observou a abundância dos cães
de água locais, e constatou que eram “muito bem treinados para pegar
pássaros e peixes e... bastante úteis para qualquer serviço”. Os ingleses
acabaram percebendo isso e, no início do século XIX, estavam
importando os cães para a Inglaterra para serem usados em esportes de
caça, apanhar faisões, gansos e perdizes.
De acordo com o Clube do Labrador, um grupo nacional
fundado em 1931, dedicado à preservação da integridade desta raça, o
nome surgiu quase sem querer por volta de 1830, quando o
geograficamente questionável terceiro conde de Malmesbury escreveu
para o sexto duque de Buccleuch, para se gabar de sua invejável linha de
labradores que usava para o esporte de caça. “Sempre chamamos os
meus de cães labradores”, ele escreveu. A partir de então, o nome pegou.
O bom conde observou que ele se esforçou para manter “a raça tão pura
quanto pôde desde o primeiro cão”. Porém, outros criadores eram menos
categóricos em relação à genética, cruzando labradores livremente com
outros labradores, na esperança de que suas excelentes qualidades se
reproduziriam. Os genes do labrador se provaram indômitos e a linha do
labrador permaneceu distinta, ganhando reconhecimento pelo Kennel
Club da Inglaterra como raça em 7 de julho de 1903.
B. W Ziessow, um antigo criador e entusiasta, escreveu ao Clube
do Labrador: “Os esportistas americanos adotaram a raça que veio da
Inglaterra e subseqüentemente desenvolveram e treinaram este cão
para atender às necessidades de caça deste país. Hoje, como no passado,
o labrador entrará galhardamente nas águas geladas do Minnesota
para pegar um pássaro; trabalhará o dia inteiro caçando pombos no
calor do sudoeste — e sua única recompensa será um carinho pelo
trabalho bem-feito”.
Esta era a orgulhosa ancestralidade de Marley e parecia que ele
havia herdado pelo menos metade desse instinto nato. Ele era perfeito
para caçar sua presa. O conceito de devolução é que ele parecia não
ter entendido muito bem. Sua atitude geral parecia querer dizer: “Se
você quiser pegar esta vareta tanto assim, vá VOCÊ buscá-la na água”.
Ele voltou correndo para a praia com seu prêmio entre os dentes.
— Traga aqui! — eu gritei, batendo as mãos. — Vamos, rapaz,
traga até aqui!
Ele se empinou, sacudindo o corpo de satisfação e, em seguida,
chacoalhou a água e a areia em cima de mim. Então, para minha
surpresa, ele deixou cair a vareta aos meus pés. “Nossa”, pensei, “que
me diz disto?” Olhei de volta para Jenny, sentada num banco debaixo
de um pinheiro australiano, e fiz-lhe um sinal positivo. Mas quando me
abaixei para pegá-la, Marley estava preparado. Mergulhou, agarrou-a
com a boca, e correu ziguezagueando pela praia. Corcoveou de volta,
quase se chocando comigo, provocando-me para persegui-lo. Fiz
algumas investidas, mas ficou claro que tanto sua velocidade quanto
sua agilidade eram maiores.
— Você deveria se comportar como um labrador — eu gritei. —
Não como um labrador fugitivo.
Mas o que eu tinha, e meu cão não, era um cérebro evoluído que
excedia pelo menos um pouco a força muscular. Agarrei uma segunda
vareta e comecei a brincar com ela. Segurei-a acima da minha cabeça e
comecei a jogá-la da mão direita para a esquerda. Arremessei-a de um
lado para o outro. Notei que Marley mudou de atitude. De repente, a
vareta em sua boca, que havia apenas alguns minutos era o objeto mais
desejado que ele poderia imaginar sobre a face da Terra, perdeu todo o
interesse. A minha vareta arrebatou toda a sua atenção. Ele se
aproximou devagarzinho, até ficar a poucos centímetros de mim.
— Nasce um bobo todo dia, não é, Marley? — eu ri, passando a
vareta em frente ao focinho dele e observando-o, enquanto ele ficava
vesgo tentando segui-la.
Eu podia ver os miolos funcionando em sua cabeça enquanto ele
pensava como iria pegar a nova vareta sem soltar a primeira. Seu lábio
superior tremia quando ele arriscava agarrar a segunda sem deixar cair a
outra. Logo coloquei minha mão livre firme na ponta da vareta em sua
boca. Eu puxava de um lado e ele puxava de outro, rosnando. Pressionei
a segunda vareta contra seu focinho.
— Você sabe que quer esta outra — sussurrei.
E como! A tentação era forte demais para ele agüentar. Eu podia
sentir sua boca afrouxando em volta da primeira vareta. E então ele se
moveu. Abriu as mandíbulas para tentar pegar a segunda vareta sem
largar a primeira. Num segundo, puxei as duas acima da minha cabeça.
Ele saltou no ar, latindo e girando, obviamente sem entender como uma
estratégia tão ardilosa da parte dele poderia ter ido água abaixo.
— E por isso que eu sou o dono e você é o cachorro — respondi.
E ao dizer isso, ele jogou mais água e areia sobre o meu rosto.
Arremessei uma das varetas na água e ele correu atrás dela,
latindo loucamente enquanto corria. Ele retornou como um oponente
novo, refrescado. Desta vez ele estava sendo mais cauteloso e se recusou
a se aproximar de mim. Ele permaneceu a cerca de dez metros de
distância, com a vareta em sua boca, olhando para seu novo objeto de
desejo, que era apenas o seu velho objeto de desejo, sua primeira
vareta, que estava agora no alto acima da minha cabeça. Eu podia ver
seus miolos funcionando novamente. Ele deveria estar pensando:
“Desta vez, vou só esperar aqui até que ele atire e então ele não terá
nenhuma vareta e eu terei as duas”.
— Você realmente pensa que eu sou burro, não é, cachorro? —
perguntei.
Inclinei-me para trás e com um gemido longo e exagerado,
atirei a vareta com todas as minhas forças. Óbvio que Marley zuniu
para dentro d’água com a sua vareta ainda presa entre os dentes. O
único detalhe era que eu não havia atirado nada. Você imagina que
Marley sacou isso? Ele nadou até longe até perceber que a vareta ainda
estava em minha mão.
— Você é um sádico! — Jenny gritou sentada no banco e eu olhei
para trás e vi que ela estava rindo.
Quando Marley finalmente voltou à praia, ele afundou na areia,
exausto, mas sem soltar a sua vareta. Ele lhe mostrei a minha,
lembrando-lhe o quanto era melhor que a dele, e ordenei:
— Solte!
Eu levantei o meu braço para trás como se fosse jogar, e o bobão
se levantava novamente num instante e se virava para se jogar para a
água novamente.
— Solte! — eu repetia assim que ele voltava.
Foram precisas umas três tentativas, mas finalmente ele fez o que
eu queria. E no instante em que sua vareta caiu na areia, lancei a minha
no ar para que ele pegasse. Repetimos isto diversas vezes e, cada vez, ele
parecia entender um pouco mais claramente o que eu estava fazendo.
Aos poucos, a lição começou a entrar naquela sua cabeça dura. Se ele
me devolvesse a. sua vareta, eu arremessaria uma nova para ele.
— É como uma troca de presentes de amigo oculto — eu disse. —
Você precisar dar para receber um.
Ele saltou e beijou-me com sua boca cheia de areia, que eu
interpretei como um reconhecimento de que havia aprendido a lição.
Quando Jenny e eu caminhávamos de volta para casa, Marley
estava tão cansado que, pela primeira vez, não puxou a correia de sua
coleira. Eu me senti orgulhoso com o que havíamos conseguido. Por
várias semanas, Jenny e eu estávamos tentando lhe ensinar alguns
modos e comportamentos sociais básicos, mas ele vinha aprendendo
muito devagar. Era como se vivêssemos com um garanhão selvagem —
tentando lhe ensinar a tomar chá numa xícara de porcelana fina. Eu
me lembrei de São Shaun e quão rapidamente eu, um mero garoto de
dez anos de idade, pude lhe ensinar tudo que ele precisava saber para
ser um grande cão. Eu me perguntava o que eu estava fazendo de errado
desta vez.
Mas nosso exercício de pega-varetas deu-nos uma ponta de
esperança: — Sabe — eu disse a Jenny —, realmente acho que ele está
começando a entender.
Ela olhou para ele, saltitando ao nosso lado. Ele estava
encharcado e coberto de areia, espumando pela boca, segurando ainda a
vareta conquistada a duras penas entre os dentes.
— Eu não teria tanta certeza disso — ela replicou.
Na manhã seguinte, acordei novamente antes do sol nascer com o
som do choro baixo de Jenny ao meu lado.
— Ei! — eu exclamei, e passei meus braços em torno dela.
Ela colocou seu rosto sobre o meu peito e eu podia sentir suas
lágrimas me molhando através da camiseta.
— Estou ótima — ela respondeu. — Verdade. Estou só... Você
sabe como é...
Eu sabia. Eu estava tentando me comportar galhardamente, mas
eu também me ressentia com a dura sensação de perda e fracasso. Era
muito estranho. Menos de 48 horas antes estávamos ansiosos para ver
nosso bebê. E agora sentíamos como se ela nunca tivesse ficado
grávida. Como se toda a história tivesse sido apenas um sonho e
estivéssemos com uma imensa dificuldade para parar de sonhar.
Mais tarde, nesse mesmo dia, coloquei Marley dentro do carro
para ir até o supermercado comprar comida e algumas coisas que Jenny
precisava da farmácia. Ao voltar, parei numa floricultura e comprei um
gigantesco buquê de flores do campo que vinha num vaso, na esperança
de conseguir alegrá-la. Amarrei o vaso com o cinto de segurança no
banco de trás ao lado de Marley, para que a água não caísse. Quando
passamos por uma pet shop, resolvi, de repente, que Marley também
merecia alguma coisa. Afinal, ele teve mais sucesso do que eu em
minimizar a dor da inconsolável mulher das nossas vidas.
— Seja bonzinho! — eu disse. — Volto já, já.
Corri até a loja para comprar um osso tamanho gigante para ele
morder.
Ao entrar em casa alguns minutos mais tarde, Jenny veio nos
receber do lado de fora, e Marley se jogou do carro para cumprimentála.
— Temos uma pequena surpresa para você — eu disse.
Mas quando eu olhei no banco de trás para pegar as flores, fui eu
quem se surpreendeu. O buquê se transformara numa mistura de
margaridas, amores-perfeitos, lilases de todas as cores e cravos bem
vermelhos. Agora, por exemplo, os cravos não estavam em parte alguma.
Eu olhei mais perto e descobri os caules decapitados que, poucos
minutos antes, tinha os botões das flores. O restante do buquê estava
intocado. Eu encarei Marley e o vi dançando à nossa volta como se
estivesse ensaiando um musical na Broadway.
— Venha cá! — eu gritei.
Quando finalmente eu o peguei e forcei-o a abrir a boca,
encontrei a prova cabal de sua culpa. No fundo de sua bocarra
cavernosa, enfiada num dos lados, como um pedaço de tabaco de
mascar, estava um único cravo vermelho. Os outros provavelmente já
teriam sido deglutidos. Eu estava a ponto de esganá-lo.
Olhei para cima e vi Jenny com o rosto banhado em lágrimas.
Mas desta vez, ela estava chorando de tanto rir. Ela não teria se
divertido mais se eu tivesse feito uma seresta com cantores mexicanos
debaixo de sua janela. Não tive jeito senão rir também.
— Seu cachorro! — resmunguei, entredentes.
— De qualquer jeito, nunca fui apaixonada por cravos — ela
comentou. Marley ficou tão emocionado de ver todo mundo contente
e rindo novamente que se ergueu nas patas traseiras e dançou para
nós.
Na manhã seguinte, acordei com o sol brilhando, e olhei para o
relógio; era quase oito horas. Vi minha mulher dormindo tranqüila,
ressonando profundamente. Beijei seus cabelos, coloquei meu braço em
volta de sua cintura e novamente fechei os olhos.
Capítulo 8
Uma batalha de Wills
Quando Marley não tinha ainda seis meses de idade, nós o
inscrevemos em aulas de adestramento. Deus sabia quanto ele
precisava delas. Apesar de todo o esforço bem-sucedido em devolver a
vareta aquele dia na praia, ele estava se tornando um aluno rebelde,
obtuso, selvagem e constantemente distraído, vítima de sua
incomensurável energia nervosa. Estávamos começando a imaginar que ele
não seria como os outros cachorros, como meu pai observou quando Marley
tentou trepar com seu joelho:
— Este cachorro tem um parafuso solto.
Definitivamente, nós precisávamos de ajuda profissional.
Nosso veterinário recomendou-nos um clube de treinamento de
cães na cidade que oferecia aulas de adestramento básicas às terças-feiras
à noite, no estacionamento por trás da loja de armamentos. Os
professores eram voluntários do clube, dedicados amadores que muito
provavelmente já haviam aprimorado ao máximo o comportamento de
seus próprios cães. O curso era de oito aulas e custava cinqüenta dólares,
que achamos ser de graça, especial-mente considerando que Marley
destruía um sapato de cinqüenta dólares em trinta segundos. E o clube
também garantia que, após a graduação, estaríamos levando uma perfeita
Lassie de volta para casa. Na matrícula, conhecemos; mulher que iria
ministrar as aulas a Marley. Era uma treinadora severa, que não admitia
bobagens, e que defendia a teoria de que não há cães incorrigíveis, apenas
donos sem sorte ou força de vontade suficiente.
A primeira aula pareceu provar o seu ponto de vista. Antes de
sairmos do carro, Marley viu os outros cães reunidos com seus donos do
outro lado da pista de automóveis. Uma festa! Ele saltou para fora do carro
a jato por cima de nós, arrastando a guia atrás dele. Ele foi de cão em cão,
cheirando-os, soltando pipi, babando para todos os lados. Para Marley, era
um festival de cheiros — tantos cachorros para cheirar num espaço tão
curto de tempo — e ele estava curtindo aquele momento, tomando
cuidado para se manter à minha frente enquanto eu corria atrás dele.
Toda vez que eu estava a ponto de pegá-lo, ele se adiantava mais alguns
metros. Finalmente, eu o cerquei e dei um salto à frente, aterrissando
com os dois pés sobre a guia dele. Isso fez com que ele parasse tão de
repente que, por um momento, pensei que tivesse quebrado o seu pescoço.
Ele caiu de costas, virou-se de lado e olhou para cima para mim com uma
expressão serena de quem tinha conseguido fazer o que queria.
Enquanto isso, a instrutora nos encarava com ar de desaprovação
como se eu tivesse resolvido dançar pelado na frente de todo mundo.
— Tome seu lugar, por favor — ela disse, seca.
Quando viu Jenny e eu puxando Marley até a sua posição, ela
acrescentou:
— Vocês vão ter de decidir qual de vocês dois irá treiná-lo.
Comecei a explicar que ambos queriam participar para que
cada um pudesse trabalhar com ele em casa, mas ela me cortou,
dizendo:
— Um cão — ela disse, de forma contundente — só pode
obedecer a um mestre.
Dei início a um protesto, mas ela me calou com o olhar —
suponho que o mesmo que usava para intimidar seus cães —, e passei
para o lado com o rabo entre as pernas, deixando Mestre Jenny no
comando.
Provavelmente, isso foi um erro. Marley já era bem mais forte do
que Jenny e ele sabia disso. A Sra. Dominatrix havia acabado de
iniciar sua introdução sobre a importância de estabelecer o domínio
sobre nossos animais de estimação, quando Marley decidiu que uma
poodle do outro lado da quadra merecia ser olhada mais de perto. Ele
arrancou arrastando Jenny atrás dele.
Todos os outros cachorros estavam sentados placidamente ao
lado de seus donos com a distância de três metros entre eles,
aguardando as instruções. Jenny estava lutando valentemente para
fincar os pés no chão e fazer Marley parar, mas ele seguiu em frente,
arrastando-a para o outro lado do estacionamento atrás do traseiro
daquela poodle. Minha mulher parecia uma esquiadora aquática
puxada por uma lancha de 24 pés. Todo mundo arregalou os olhos.
Alguns se afastaram, dando passagem. Eu cobri os meus.
Marley dispensava apresentações formais. Ele aterrissou na
poodle e imediatamente enfiou o nariz entre suas patas traseiras.
Imaginei que seria a forma masculina canina de perguntar:
— Você vem sempre aqui?
Depois que Marley examinou inteiramente a poodle, Jenny pôde
puxá-lo de volta para o seu lugar.
A Sra. Dominatrix anunciou, calmamente:
— Isto, turma, é um exemplo de cachorro a quem foi permitido
imaginar que ele era o macho mais importante de sua ninhada. Neste
momento, é ele quem comanda.
Como se quisesse provar o ponto da instrutora, Marley começou a
perseguir o seu próprio rabo, girando como um doido, as mandíbulas
estalando no ar, enrolando a guia em volta das pernas de Jenny até
imobilizá-la completamente. Tive pena dela, mas agradeci não estar em
seu lugar.
A instrutora continuou a aula, passando a ensinar os comandos
para sentar e deitar. Jenny ordenava:
— Sente!
E Marley pulava em cima dela e colocava as patas sobre seus
ombros. Ela empurrava seu traseiro para baixo e ele se virava para
receber um carinho na barriga. Ela tentava arrastá-lo de volta para o
lugar dele e ele agarrava a guia entre seus dentes, balançando sua
cabeça de um lado para outro como se estivesse duelando com uma
sucuri. Era horrível ficar olhando. Em determinado momento, abri os
olhos e vi Jenny deitada, de cara no asfalto e Marley por cima dela,
resfolegando alegremente. Mais tarde, ela me contou que estava
tentando mostrar a ele o comando para deitar.
No final da aula, quando Jenny e Marley vieram até onde eu
estava, a Sra. Dominatrix nos interceptou:
— Vocês realmente precisam controlar este animal — ela disse,
suspirando.
Bem, obrigado por este valioso conselho. E em pensar que
tínhamos nos matriculado apenas para contribuir com o lado cômico
da aula. Nenhum de nós disse nenhuma palavra. Apenas retornamos ao
carro nos sentindo humilhados, e dirigimos para casa em silêncio,
apenas com Marley arfando alto enquanto baixava a adrenalina da
experiência de sua primeira aula de adestramento.
Finalmente, eu disse:
— Uma coisa não se pode negar: ele adora escola.
Na semana seguinte, Marley e eu voltamos, desta vez sem Jenny.
Quando sugeri a ela que eu seria o elemento mais próximo de um cão
macho em casa, ela alegremente abriu mão de seu breve título de
mestre e comandante, e jurou que nunca mais iria dar as caras em
público novamente. Antes de sair de casa, virei Marley de costas no
chão e falei baixo no tom de voz mais sério possível:
— Sou eu quem manda! Não é você quem manda! Eu sou o
chefe! Entendeu, Cão-alfa?
Ele bateu o rabo no chão e tentou morder meus pulsos.
A aula daquela noite ensinava a andar junto, uma das minhas
especialidades. Eu estava cansado de lutar com Marley a cada passo.
Ele já havia derrubado Jenny uma vez, quando disparou atrás de um
gato, machucando seus joelhos. Já era hora de ele aprender a caminhar
tranqüila-mente ao nosso lado. Forcei-o até chegar ao nosso lugar na
pista, evitando que saltasse sobre cada um dos cachorros pelos quais ele
passava. A Sra. Dominatrix entregou-nos uma corrente com um aro de
aço fundido em cada ponta. Ela nos disse que eram enforcadores e que
seriam nossa arma secreta para ensinar aos nossos cães a ficar ao nosso
lado sem esforço. O enforcador tinha um formato simples e bem
projetado. Quando o cão se comportava e andava ao lado do dono como
deveria, o enforcador ficava solto à volta do pescoço. Mas se o cão
avançava, a corrente apertava corno um laço, sufocando o cachorro,
fazendo com que não disparasse à frente. Não demorava muito, garantia
nossa instrutora, e os cães aprendiam a se submeter, senão morreriam
sufocados. Isso é deliciosamente sádico, pensei.
Comecei a passar o enforcador pelo focinho de Marley, mas ele
me viu colocá-lo e agarrou-o entre os dentes. Forcei sua mandíbula para
retirá-lo mais de uma vez. Ele o agarrou novamente. Todos os outros
cães estavam com seus enforcadores. Todos esperando. Agarrei seu
focinho com uma das mãos e a outra tentei passar a corrente. Ele
recuou, tentando abrir a boca para atacar a misteriosa cobra de prata
novamente. Enfim, forcei o enforcador sobre sua cabeça e ele caiu no
chão, agitando-se e dando dentadas, movendo as patas no ar, girando a
cabeça de um lado para o outro, até agarrar corrente com os dentes de
novo. Olhei para a instrutora e disse:
— Ele gostou dela.
Como instruído, fiz Marley se levantar e retirei o enforcador de
sua boca. Depois, de acordo com as instruções, pressionei seu traseiro
para que se sentasse e fiquei de pé ao lado dele, com minha perna
esquerda encostada no seu ombro direito. Depois de contar até três, eu
deveria dizer:
— Marley, junto!
E dar um passo com a perna esquerda — nunca a direita. Se ele se
afastasse, evidente, uma série de pequenas correções — alguns leves
puxões na guia — o trariam de volta à linha.
— Turma, quando eu contar três — exclamou a Sra. Dominatrix.
Marley se contorcia de emoção. O objeto estranho e brilhante em
torno do seu pescoço tinha tomado sua atenção.
—Um... Dois... Três!
—Marley, junto! — ordenei.
Assim que dei o primeiro passo, ele disparou como um jato de
carreira. Puxei a guia com força e ele tossiu alto assim que o enforcador
apertou sua garganta. Ele recuou por um momento, mas assim que a
corrente afrouxou, ele se esqueceu do momento de sufocação, anulando
a lição que fora ensinada. Ele avançou novamente. Puxei a guia de novo
e mais uma vez ele sufocou. Continuamos assim por toda a extensão do
estacionamento. Marley arremetendo à frente, eu puxando-o para trás,
cada vez com mais força. Ele tossia e arfava; eu gemia e suava.
— Controle seu cachorro! — a Sra. Dominatrix gritava.
Eu tentava, com todas as minhas forças, mas ele não estava
aprendendo a lição, e eu temi que Marley acabaria sendo estrangulado antes
de perceber o que deveria fazer. Enquanto isso, os outros cães caminhavam
ao lado de seus donos, atendendo a correções menores como a Sra.
Dominatrix disse que eles fariam.
— Pelo amor de Deus, Marley — eu sussurrei. — O orgulho de
nossa família está em jogo aqui!
A instrutora fez a turma formar mais uma fila e tentar outra vez.
Nova-mente, Marley atravessou a pista arremetendo como um maníaco,
olhos esbugalhados, estrangulando-se ao longo do caminho. Na outra
ponta, a Sra. Dominatrix apresentou-nos para a turma como um
exemplo de como não se deveria fazer um cão ficar junto.
— Aqui — ela disse, sem paciência, estendendo a mão. — Deixeme
mostrar a você.
Eu lhe passei a guia e ela, de modo ultra-eficaz, conduziu Marley à
posição correta, puxando o enforcador ao lhe dar a ordem para se sentar.
Ele se sentou nas patas traseiras, olhando para ela, ansioso. Maldito.
Com uma puxada rápida da guia, a Sra. Dominatrix saiu andando
com ele. Mas quase instantaneamente ele disparou à frente, como se
estivesse puxando o trenó de Papai Noel. A instrutora corrigiu-o com
firmeza, tirando seu equilíbrio. Ele tropeçou, engasgou, e lançou-se à
frente de novo. Parecia que iria arrancar o braço dela fora. Eu
deveria estar envergonhado, mas senti uma estranha sensação de
prazer que vem junto com a vingança. Ela não estava fazendo melhor
do que eu. Meus colegas tentavam segurar o riso, e eu me refestelava,
um pouco orgulhoso: Vêem? Meu cachorro é ruim com qualquer
pessoa, não somente comigo!
Agora que eu não era mais o único que tinha sido feito de bobo,
eu precisava admitir, a cena era um bocado hilária. Ao chegar ao fim
do estacionamento, eles viraram e retornaram claudicando em nossa
direção; a Sra. Dominatrix com a cara fechada de raiva, e Marley mais
feliz impossível. Ela puxou a guia com fúria e Marley, babando até não
poder mais, puxava de volta com ainda mais força, visivelmente
adorando esse novo e excelente cabo-de-guerra que a professora
resolveu jogar. Quando me viu, pisou fundo. Com um novo impulso de
adrenalina quase que sobrenatural, avançou em minha direção,
forçando-a a correr para não ser arrastada o resto do caminho. Marley só
parou ao se jogar em cima de mim com sua costumeira alegria
esfuziante. A Sra. Dominatrix me fulminou com o olhar como se eu
tivesse cruzado uma linha invisível sem retorno. Marley debochara de
tudo que ela ensinara sobre cachorros e disciplina: ele a havia
humilhado publicamente. Ela me devolveu a guia e virou-se para a
turma como se o pequeno e infeliz incidente não tivesse acontecido, e
disse:
— Muito bem, turma, quando eu contar três...
Quando a aula terminou, ela me perguntou se eu poderia ficar um
pouco mais. Esperei com Marley, enquanto ela respondia pacientemente
às perguntas dos outros alunos da turma. Depois que o ultimo saiu, ela
se virou para mim e, num tom de voz conciliatório totalmente inédito
para mim, disse:
— Acho que seu cachorro ainda está muito novo para ser
adestrado.
— Ele é um problema, não é? — repliquei, sentindo um pouco de
solidariedade da parte dela, já que havíamos passado pela mesma
experiência vexatória.
— Ele simplesmente ainda não está preparado para ter as aulas —
ela respondeu. — Ainda precisa crescer mais um pouco. Comecei a
perceber o que ela queria dizer com aquilo.
—Você está tentando me dizer...
—Ele distrai os outros cachorros.
— ...que você está...
— Ele é agitado demais.
—...nos expulsando da turma?
—Você poderá trazê-lo de volta daqui a seis ou oito meses.
—Então, você está nos expulsando da turma?
—Eu lhe devolverei o valor integral da matrícula, sem problema.
—Você está nos expulsando.
—Sim — ela concordou, finalmente —, estou expulsando vocês
da turma.
Marley, como se reagisse em coro, levantou sua pata traseira e
soltou um forte jato de urina a poucos centímetros do pé de sua amada
adestradora.
As vezes, um homem precisa se zangar para se tornar sério. A Sra.
Dominatrix me deixou zangado. Eu tinha um lindo labrador puro sangue,
um orgulhoso membro desta raça famosa por sua capacidade de guiar
cegos, salvar vítimas de desastres, ajudar caçadores, e pescar peixes nas
ondas agitadas do mar, com calma e inteligência. Como ela ousava
dispensá-lo apenas com duas aulas? Sabíamos que tinha um lado
espirituoso, mas era muito bem-intencionado. Eu iria provar àquela
sujeita que Grogan’s Majestic Marley of Churchill não iria desistir tão
fácil. Nós nos veríamos em Westminster.
A primeira coisa que fiz na manhã seguinte foi levar Marley
para o quintal nos fundos da casa.
— Ninguém expulsa os garotos Grogan de uma escola de
adestramento — eu disse a ele. — Não-adestrável? Bem, vamos ver
quem é não-adestrável, certo?
Ele pulou assim que eu disse isso.
—Nós vamos conseguir, Marley?
Ele se sacudiu todo.
—Não consigo ouvir você. Nós vamos conseguir?
Ele latiu.
—Assim está melhor. Agora vamos começar a trabalhar.
Começamos com o comando de sentar que eu vinha treinando
com ele desde que era filhote e que ele sabia atender bem. Franzi bem a
testa e, numa voz firme, mas doce, mandei-o sentar. Ele sentou. Eu o
elogiei. Repetimos o exercício diversas vezes. Em seguida, partimos para
o comando de deitar, outro que eu vinha treinando com ele. Ele me
olhou nos olhos, com o pescoço esticado, antecipando meu comando.
Elevei lentamente minha mão no ar e mantive-a lá enquanto ele
esperava o comando. Com um movimento rápido, estalei os dedos,
apontei para o chão e disse:
— Abaixe-se!
Marley atirou-se no chão com um estrondo. Ele se atirou com
tanta vontade como se um morteiro tivesse acabado de explodir atrás dele.
Jenny, que estava sentada na varanda tomando seu café, também viu
isso e gritou:
— Bingo!
Depois de várias repetições de comandos para deitar no chão, decidi
partir para o desafio seguinte: vir sob comando. Este era difícil para Marley.
Vir não era o problema — ficar parado esperando o comando para vir é
que ele não conseguia entender. Nosso cão com deficiência de atenção
sentia tanta ansiedade para estar junto de nós que não conseguia ficar
quieto ao nos afastarmos dele.
Coloquei-o sentado à minha frente e fixei meus olhos nos dele.
Enquanto nos encarávamos, levantei minha mão, segurando-a à frente
como um guarda de trânsito:
— Fique — eu disse e dei um passo para trás.
Ele congelou, olhando-me ansiosamente, esperando o menor sinal
de que poderia vir até a mim. Quando dei o quarto passo atrás, ele não se
agüentou e correu até onde eu estava, me atropelando. Passei-lhe um
carão e tentei novamente. E mais algumas outras tantas vezes. Cada vez
ele me deixava ir um pouquinho mais longe antes de avançar em cima de
mim. No fim, eu estava a quinze metros de distância dele no quintal, com a
palma da mão erguida para ele. Eu esperei. Ele continuou sentado, firme na
mesma posição, seu corpo todo chacoalhando de ansiedade. Eu podia
perceber a energia nervosa crescendo dentro dele, como um vulcão
prestes a explodir. Mas ele se segurou. Contei até dez. Ele não se mexeu.
Seus olhos estavam fixos em mim; seus músculos se arquearam. O.k., já o
torturei o suficiente, pensei. Baixei a mão e gritei:
— Marley, venha!
Ao se catapultar à frente, eu me abaixei e bati as palmas para
encorajá-lo. Pensei que ele fosse correr a esmo pelo quintal, mas veio até
a mim em linha reta. Perfeito!, pensei.
— Vamos, rapaz! — urgi. — Vamos!
E ele veio. Disparado até a mim.
— Devagar, rapaz! — eu disse, mas ele continuou avançando. —
Devagar!
Seu olhar estava extasiado e, um instante antes do impacto, me
dei conta de que o piloto sumira. Era um cão correndo fora de controle.
Tive tempo de dar um último comando.
— Pare! — gritei.
Blam! Ele mergulhou em cima de mim sem frear e eu caí para trás,
me estabacando no chão. Quando abri os olhos, segundos depois, ele
estava com as quatro patas em cima do meu peito, lambendo
desesperado o meu rosto. E aí, chefe, como foi que eu me saí?
Tecnicamente falando, ele seguiu exatamente o comando. Afinal, eu
não tinha mencionado nada a respeito de parar quando chegasse em
mim.
— Missão cumprida! — eu disse, suspirando.
Jenny olhou pela janela da cozinha onde estávamos e gritou:
— Vou sair para trabalhar! Quando terminarem o que estão
fazendo, não se esqueçam de fechar as janelas. Deve chover à tarde.
Eu dei a Marley algo para comer, depois tomei uma ducha e parti
para o trabalho.
Quando eu cheguei à noite, Jenny estava à minha espera na
porta de casa, e pude ver por sua feição que estava aborrecida. — Vá
olhar na garagem — ela disse.
Abri a porta da garagem e a primeira coisa que vi foi Marley,
deitado em seu tapete, com expressão abatida. Naquela fração de
segundo, constatei que seu focinho e patas dianteiras não estavam
bem. Estavam escurecidas, num tom marrom escuro, e não o
costumeiro amarelo-claro, por causa do sangue coagulado. Então, olhei
em volta e meu queixo caiu A garagem — nosso indestrutível
esconderijo — estava destroçada. As passadeiras estavam rasgadas, as
paredes de concreto todas arranhadas, e a tábua de passar roupa virada
no chão, com a cobertura esgarçada. Pior de tudo: a porta por onde
passei parecia que tinha sido atacada por uma talhadeira. Lascas de
madeira estavam espalhadas em um semicírculo em volta da porta de
entrada até três metros de distância. Um metro de altura da parte de
baixo do batente dos dois lados da porta havia sido esmigalhado. As
paredes estavam cobertas de sangue escorrido onde Marley havia
machucado as patas e o focinho.
— Nossa! — eu disse mais espantado do que com raiva.
Lembrei-me da pobre Sra. Nedermier e seu assassinato com serra
elétrica do outro lado da rua. Senti-me no meio de uma cena de crime.
Jenny falou por trás de mim;
— Quando voltei para almoçar em casa, estava tudo bem — ela
disse. — Mas vi que estava ameaçando chover.
Depois que ela voltou para o trabalho, começou uma tempestade
com raios e trovões tão fortes que faziam o corpo vibrar.
Quando retornou duas horas mais tarde, Marley estava babando
de pavor, em meio aos destroços de sua desesperada tentativa de fuga.
Parecia tão desolado que ela nem conseguiu gritar com ele. Além do
mais, tudo já havia acontecido; ele nem entenderia por que ela estaria
zangada com ele. Mesmo assim, ficou tão aborrecida com a destruição
em nossa nova casa, sendo que trabalhamos tanto para tê-la, que não
quis lidar com ele ou com o estrago.
— Espere seu pai chegar em casa! — ela ameaçou, e fechou a
porta atrás de si.
Durante o jantar, tentamos pensar no que passamos a chamar de
“a loucura”. Tudo que conseguimos imaginar foi que, sozinho e
apavorado durante a tempestade em casa, Marley decidiu que sua
única chance de sobrevivência seria tentar atravessar a porta. Ele
estava provavelmente cedendo a um instinto primitivo de seu ancestral,
o lobo. E ele tentou alcançar esse objetivo com extrema eficiência que
eu nunca imaginaria ser possível sem a ajuda de artilharia pesada.
Quando terminamos de comer, Jenny e eu fomos até a garagem
onde Marley, de volta ao seu estado normal, agarrou um brinquedo de
morder e ficou andando à nossa volta, querendo brincar de cabo-deguerra.
Eu o segurei firme, enquanto Jenny limpava o sangue de seu
pêlo. Então, ele observou, balançando o rabo, enquanto limpávamos a
sujeira que havia feito. Jogamos fora os tapetes e a coberta da tábua de
passar, recolhemos as lascas de madeira da nossa porta, limpamos o
sangue das paredes, e fizemos uma lista de material que iríamos
precisar da loja de ferramentas rara consertar os danos provocados por
ele — o primeiro dos inúmeros consertos que tive de fazer. Marley
parecia entusiasmado de nos ver ali, colaborando com seus esforços em
reformar a garagem.
— Você não precisa demonstrar sua enorme felicidade — eu
bronqueei, puxando-o para dentro de casa para passar a noite conosco.
Capítulo 9
A essência dos machos
Todo cachorro necessita de um bom veterinário, um profissional
competente que o mantenha saudável, forte e imunizado contra doenças.
Todo novo dono de cachorro também precisa de um, principalmente pela
orientação, apoio e conselhos gratuitos que os veterinários dispensam em
boa parte de seu tempo. Batemos inúmeras vezes em porta errada. Um
deles era tão ausente que só víamos sua estagiária; outro era tão velho que
me convenci de que ele não conseguiria mais distinguir um chihuahua de
um gato. Outro estava visivelmente mais interessado em atender às
dondocas de Palm Beach e seus cães de colo minúsculos. Então, afinal,
encontramos o veterinário dos nossos sonhos. Ele se chamava Jay Butan —
Dr. Jay para os íntimos — jovem, bem apessoado, moderno e absurdamente
gentil. Dr. Jay entendia de cachorros. como os melhores mecânicos
entendem de carros, instintivamente. Era claro que ele adorava animais,
embora tivesse uma sensibilidade aguçada sobre o seu papel no mundo dos
homens. Nos primeiros meses, mantínhamos uma linha direta com ele e o
consultávamos sobre tudo e qualquer coisa, por mais doida que fosse a
pergunta. Quando Marley começou a ter manchas ásperas nos cotovelos,
temi que estivesse desenvolvendo um tipo raro e contagioso de doença de
pele. Relaxe, Dr. Jay me disse, são apenas calos por se deitar no chão. Um dia,
Marley bocejou e notei uma estranha descoloração roxa no fundo de sua
língua. Oh, meu Deus, pensei. Ele está com câncer. Há um sarcoma de
Kaposi em sua boca. Relaxe, Dr. Jay disse, é apenas uma mancha de
nascença.
Esta tarde, Jenny e eu esperávamos na sala de exames com Marley,
conversando sobre o agravamento de sua neurose durante as tempestades.
Acreditávamos que o incidente na garagem seria um fato isolado, mas foi
apenas o começo do que se tornou um padrão de fobia e comportamento
irracional permanente que duraria o resto de sua vida. Apesar de os
labradores terem fama de ser excelentes cães de caça, tínhamos um que se
sentia mortalmente apavorado com qualquer barulho mais alto que um
estouro de rolha de champanhe. Fogos de artifício, máquinas
propulsoras e tiros deixavam-no aterrorizado. Trovões eram um horror
por si só. Mesmo ameaças de tempestade deixariam Marley eletrizado. Se
estivéssemos em casa, ele se atracaria conosco, tremendo e babando sem
parar, olhos esbugalhados, orelhas para trás, o rabo entre as pernas.
Quando estava sozinho, tornava-se destrutivo, avançando contra qualquer
coisa que se interpusesse entre ele e um abrigo seguro. Um dia, Jenny
chegou em casa um pouco antes de uma tormenta e encontrou Marley,
alucinado, em cima da máquina de lavar, dançando desesperado,
arranhando a pintura com as patas. Como conseguiu saltar em cima da
máquina e como pressentiu a tempestade se aproximando para começo de
conversa, nunca descobrimos. As pessoas poderiam ser completamente
malucas e, como poderíamos ver, os cachorros também.
Dr. Jay colocou um vidro com pequenos tabletes amarelos em
minha mão e disse:
— Não deixe de usar isto.
Eram sedativos que iriam, como ele explicou, “terminar com a
ansiedade de Marley”.
A esperança, ele disse, era que, com os efeitos calmantes do remédio,
Marley passasse a reagir de forma mais racional durante as tempestades e
concluísse, afinal, que não eram senão um monte de barulho inofensivo. Era
comum a ansiedade causada por raios em cachorros, ele nos disse,
especialmente na Flórida, onde imensas nuvens carregadas de trovões
atravessavam a península quase toda tarde nos meses de verão tórrido.
Marley farejou o frasco em minhas mãos, como se estivesse ansioso para
começar uma vida de dependente químico.
Dr. Jay apalpou o pescoço de Marley e moveu os lábios como se
quisesse dizer algo importante, mas hesitou, como se não soubesse como
deveria dizê-lo:
— E — continuou, fazendo uma pausa —, provavelmente vocês
devessem começar a pensar seriamente em castrá-lo.
— Castrá-lo? — repeti. — Você quer dizer...?
Olhei para seus imensos testículos — duas grandes pelotas
desproporcionais — que balançavam entre as patas traseiras de Marley.
Dr. Jay também olhou para elas e assentiu. Eu devo ter-me
retraído, quem sabe, até me tocado, porque ele rapidamente
acrescentou:
— E indolor, na verdade, e ele se sentirá bem melhor.
Dr. Jay conhecia bem os sintomas que Marley vinha
apresentando. Ele era nosso consultor sobre todas as questões relativas
a Marley, e conhecia em detalhes sua dificuldade em receber
treinamento, suas esquisitices, seu instinto de destruição e sua
hiperatividade. E ultimamente, Marley, que tinha sete meses, começara a
se atracar com qualquer coisa que se movesse, incluindo amigos que
viessem para o jantar.
— Apenas vou remover toda essa energia sexual nervosa e torná-lo
um cão mais tranqüilo e feliz — ele disse.
Ele prometeu que isso não diminuiria a exuberância radiante de
Marley.
— Deus do céu, eu não sei... — respondi. — Isso me parece
tão... definitivo.
Jenny, por outro lado, não sentiu compaixão.
—Vamos cortar o mal pela raiz! — ela acrescentou.
—E a descendência dele? E os cães que continuariam sua
linhagem? — perguntei, pensando nos lucros que poderíamos auferir
com ele.
De novo, Dr. Jay parecia escolher as palavras para responder:
— Acho que você precisa cair na real em relação a isso — ele
disse.
— Marley é um animal de estimação tamanho família, mas não
creio que ele tenha a capacidade que precisaria para ser um procriador.
Ele estava sendo o mais diplomático possível, mas a expressão em
seu rosto o entregou. Era quase gritante: “Pelo amor de Deus, homem!
Pelo bem das futuras gerações, temos de interromper este erro genético
de continuar se procriando a todo custo!”.
Disse-lhe que iríamos pensar a respeito e, com nosso novo
suprimento de remédios controladores de comportamento à mão, fomos
para casa.
Foi neste mesmo momento, enquanto discutíamos cortar a
masculinidade de Marley, que Jenny passou a exigir uma atuação máscula
mais incisiva de minha parte. Dr. Sherman liberou-a para tentar engravidar
novamente. Ela aceitou o desafio com a compulsão de uma atleta olímpica.
A atitude de deixar as pílulas anticoncepcionais de lado e aceitar o que
acontecesse se foi. Na luta pela inseminação, Jenny estava no ataque. Para
isso, ela precisava de mim, um aliado-chave que controlava a entrega de
munição. Como a maioria dos machos, eu tinha passado todos os
momentos, a partir dos quinze anos de idade, tentando convencer o sexo
oposto que eu era um excelente parceiro de procriação. Finalmente,
encontrara alguém que concordava comigo. Eu deveria estar me sentindo
exultante. Pela primeira vez em minha vida, uma mulher me desejava mais
do que eu a ela. Era o paraíso. Não precisava mais mendigar, suplicar por
sexo. Como os melhores garanhões, finalmente eu estava sendo solicitado.
Eu deveria me sentir em êxtase. Mas, de repente, pareceu algo mecânico,
um trabalho estressante. Jenny não sentia tesão por mim: ela queria um
bebê. E isso queria dizer que eu tinha de me esforçar. Era algo sério. Da
noite para o dia, os mais deliciosos prazeres transformaram-se em testes
clínicos com medição de temperatura intra-uterina, calendários de
menstruação e tabelas de ovulação. Eu me senti um zangão servindo à
abelha-rainha.
Era tão excitante quanto uma auditoria fiscal. Jenny estava
acostumada que eu me sentisse excitado ao menor toque, e acreditou que
as antigas regras continuassem valendo. Eu poderia estar, por exemplo,
jogando o lixo fora, e ela entraria segurando o seu calendário e diria:
— Minha última menstruação veio no dia dezessete, o que quer
dizer que... — ela faria uma pausa para contar os dias a partir daquela
data — ...precisamos fazer sexo AGORA!
Os homens da família Grogan nunca suportaram fazer nada sob
pressão, e eu não era uma exceção à regra. Era apenas uma questão de
tempo antes que eu acabasse sofrendo a maior humilhação masculina:
brochar. E uma vez que isso acontecesse, estaria tudo terminado. Minha
confiança iria para o espaço, meus nervos ficariam abaladíssimos. Se isso
acontecesse uma única vez, eu sabia que acabaria se repetindo. Brochar
redundava em uma profecia de auto-destruição. Quanto mais eu me
preocupasse em cumprir o meu débito conjugal, menos seria capaz de
relaxar e fazer o que sempre fizera de modo natural. Eu suprimia todos os
sinais de afeição física para não pôr idéias na cabeça de Jenny. Comecei a
temer que minha mulher me pedisse, Deus me perdoe, para rasgar suas
roupas e estuprá-la. Passei a pensar que talvez uma vida celibatária em um
remoto mosteiro não seria um futuro tão terrível assim.
Jenny não iria desistir tão fácil assim. Ela era a caçadora, eu era a
caça. Certa manhã, quando eu estava trabalhando na redação do meu
jornal em West Palm Beach, a dez minutos de casa, Jenny me ligou do
seu trabalho e me perguntou se eu gostaria de almoçar com ela em casa.
Você quer dizer sozinho? Sem acompanhante?
— Ou poderíamos nos encontrar num restaurante — tentei
contornar.
Um restaurante bem cheio. De preferência, com vários colegas de
trabalho. E nossas duas sogras.
—Ah, qual é? — ela respondeu. — Vai ser divertido.
Então, ela baixou a voz num sussurro e acrescentou:
—Hoje é um bom dia. Eu... acho... que... estou... ovulando.
Senti-me apavorado. Oh, Deus, não. Isso não. A pressão
continuava. Era hora de comparecer ou morrer. Era, literalmente, “dá
ou desce”. Por favor, não me obrigue, eu quis suplicar ao telefone. Em vez
disso, perguntei no tom mais casual:
— Claro. Meio-dia e meia está bom para você?
Quando abri a porta da frente de casa, Marley, estava, como sempre,
esperando para me receber, mas Jenny não estava em parte alguma. Eu a
chamei.
— Aqui, no banheiro — ela respondeu. — Já vou em um minuto.
Dei uma olhada na correspondência, para disfarçar, antecipando uma
fatalidade, como se estivesse esperando o resultado de uma biópsia.
— Olá, marinheiro! — disse uma voz atrás de mim.
Quando me virei, Jenny estava ali num duas-peças de seda
sumário. Sua barriga lisa se entrevia sob a parte de cima que se
pendurava precária mente de seus ombros com duas alças
impossivelmente finas. Suas pernas nunca pareceram tão longas.
— Como estou? — ela perguntou, colocando as mãos na cintura.
Ela parecia incrível — era exatamente como ela se parecia. Jenny
sempre usou camisetas largas para dormir e eu percebi que ela estava se
sentindo ridícula neste modelito sensual. Mas surtiu o efeito desejado.
Ela correu para o quarto e eu a segui. Logo estávamos abraçados
em cima dos lençóis. Fechei os olhos e senti meu velho amigo se mover
novamente. A mágica havia voltado. Você consegue, John. Tentei me
concentrar nos pensamentos mais libidinosos que conseguisse
produzir. Vai dar tudo certo! Meus dedos começaram a puxar as alças
finíssimas de sua blusa. Vá em frente, John. Sem pressa. Eu podia
sentir seu hálito agora, quente e úmido sobre meu rosto. E pesado. Um
hálito quente, úmido e pesado. Mmmm, sexy.
Mas espere. Que cheiro era esse? Havia algo em seu hálito. Algo
estranho e familiar ao mesmo tempo, não exatamente desagradável,
mas não muito sensual. Eu conhecia aquele cheiro, mas não conseguia
distingui-lo. Hesitei. O que você está fazendo, seu idiota? Esqueça o
cheiro. Concentre-se, homem! Concentre-se! Mas aquele cheiro — eu
não conseguia sublimá-lo. Você está se desconcentrando, John. Não se
desconcentre. O que era? Mantenha o curso! Minha curiosidade estava
aumentando. Deixe pra lá, rapaz! Deixe pra lá! Comecei a farejar o ar.
Comida, sim, era comida. Mas que comida? Não era biscoito, não era
batata frita, não era atum. Quase me lembrava. Era... biscoito de
cachorro?
Biscoito de cachorro! Era isso! Ela estava com um hálito
cheirando a biscoito de cachorro. Mas por quê? Eu pensei — de fato,
ouvi uma voz sussurrar a pergunta em minha cabeça — Por que Jenny
comeu biscoitos de cachorro? Além do mais, eu podia sentir seus lábios
em meu pescoço... Como ela poderia beijar o meu pescoço e respirar
sobre o meu rosto ao mesmo tempo? Não fazia o menor...
Ah... meu... Deus!
Abri os olhos. Ali, a poucos centímetros, de cara para mim,
estava a imensa cabeça de Marley. Seu queixo estava sobre o colchão e
ele estava babando horrores, encharcando o lençol. Seus olhos estavam
semicerrados — e ele parecia também estar apaixonado. — Cachorro
mau! — eu gritei.
Ergui-me da cama.
— Não! Não! Vá se deitar! — ordenei, desorientado. — Vá se
deitar! Vá para sua cama!
Mas era tarde demais. A mágica se fora. O mosteiro retornara.
Descansar, soldado.
Na manhã seguinte, marquei uma consulta para levar Marley ao
veterinário para ter seus testículos removidos. Imaginei que se eu não iria
mais ter relações sexuais o resto da minha vida, ele também não iria. Dr.
Jay disse que poderíamos deixar Marley na clínica antes de ir trabalhar e
pegá-lo no caminho de volta para casa. Uma semana depois, foi
exatamente o que fizemos.
Ao nos aprontar para sair, Marley começou a correr para cima e
para baixo, antecipando uma saída iminente. Para Marley, qualquer
passeio era o máximo; não importava onde iríamos ou quanto tempo
ficaríamos fora. Levar o lixo lá fora? Sem problema! Ir até a esquina para
comprar um galão de leite? Me inclua nessa! Comecei a me sentir
culpado. O pobrezinho não tinha idéia do que iria acontecer a ele. Ele
confiava em nós para tudo e, nesse momento, estávamos secretamente
planejando castrá-lo. Poderia haver uma traição maior do que esta?
— Venha cá — eu disse, e derrubei-o no chão para esfregar
carinhosamente sua barriga. — Vai dar tudo certo, você vai ver. Sexo é
muito superestimado.
Nem eu, ainda descorçoado com a minha má sorte nas últimas
duas semanas, acreditava nisso. A quem eu queria enganar? Sexo era
ótimo. Sexo era incrível. O pobre cão iria perder o único maior prazer
da vida. Coitadinho. Eu me senti péssimo.
E me senti pior ainda quando assobiei para ele vir e passou pela
porta, entrando no carro com a fé cega de que eu não iria fazer nenhum
mal a ele. Ele estava sempre pronto e disposto a embarcar em qualquer
aventura que eu lhe propusesse. Jenny dirigia o carro e eu me sentei no
banco do passageiro. Como costumava fazer, Marley equilibrava-se em
suas patas dianteiras sobre o console central, o nariz sobre o espelho
retrovisor. Toda vez que Jenny pisava o freio, ele era arremessado contra
o pára-brisa, mas não se importava. Ele estava andando de carro com
seus dois melhores amigos. Poderia haver algo melhor do que isso?
Abri um pouco a janela, e Marley apoiou-se sobre mim, tentando
farejar os odores que vinham de fora. Logo passou o corpo todo para a
frente, pisando em cima de mim e pressionou o nariz tão firme na
abertura estreita da janela que fungava toda vez que tentava inspirar.
Ah, por que não? pensei. Este seria seu último passeio como um ser
íntegro do gênero masculino; o mínimo que eu poderia fazer era lhe dar
um pouco de ar fresco.
Abri a janela o suficiente para ele colocar seu focinho de fora.
Ele estava gostando tanto que resolvi abrir um pouco mais e logo sua
cabeça toda estava fora da janela. Suas orelhas voavam ao vento e sua
língua estava pendurada como se sentisse embriagado com o cheiro da
cidade. Nossa, como ele estava feliz.
Ao entrar na Dixie Highway, disse a Jenny quanto eu me sentia
mal com o que estávamos a ponto de fazer com ele. Ela iria começar a
responder alguma coisa sem dúvida desprezando as minhas queixas,
quando reparei, mais como curiosidade do que preocupação, que
Marley havia pendurado as duas patas dianteiras na beirada do vidro
da janela semi-aberta. E agora seu pescoço e a parte de cima dos seus
ombros estavam pendurados para fora do carro também. Ele só
precisaria de uns óculos de aviador e um cachecol de seda para parecer
um piloto da Primeira Guerra Mundial.
— John, ele está me deixando nervosa — disse Jenny.
— Ele está bem — respondi. — Ele só quer sentir um pouco de
ar...
Nesse momento, ele escorregou suas patas dianteiras para fora da
janela e apoiou o tronco na beirada do vidro.
— John, agarre-o! Agarre-o!
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, Marley saltou do meu
colo e empurrou-se para fora do carro em movimento. Seu traseiro
estava no ar e ele movia as patas traseiras procurando apoio. Ele estava
tentando fugir. Quando escorregou seu corpo para fora, tentei agarrá-lo e
puxei a ponta do seu rabo com a mão esquerda. Jenny estava tentando
diminuir a velocidade em meio a um trânsito pesado. Marley ficou
pendurado do lado de fora do carro, preso pelo rabo, de cabeça para
baixo, que eu segurava a todo custo. Meu corpo estava torcido de tal
forma que não conseguia passar minha outra mão para agarrá-lo. Marley
tocava o asfalto com as patas da frente.
Jenny conseguiu estacionar na pista da direita parando todos os
carros atrás de nós, que buzinavam feito loucos.
— O que, agora? — gritei.
Eu estava preso. Não conseguia puxá-lo de volta para dentro do
carro. Não conseguia abrir a porta. Não conseguia passar meu outro
braço para fora. E não ousava soltá-lo senão ele iria passar por um dos
motoristas enfurecidos atrás de nós. Eu me segurei, pressionando meu
rosto contra o vidro, a poucos centímetros de seus escrotos balançantes.
Jenny ligou o pisca-pisca e deu a volta, agarrando-o e
segurando-o pela coleira até eu conseguir sair e ajudá-la a colocá-lo
de volta dentro do carro. Nosso pequeno incidente havia se
desenrolado em frente a um posto de gasolina e quando Jenny partiu
com o carro, olhei para trás e vi que os frentistas haviam se juntado
para assistir ao espetáculo. Achei que eles iriam se mijar de tanto rir.
— Obrigado, rapazes! — gritei. — Estamos muito felizes de têlos
entretido!
Quando chegamos à clínica, conduzi Marley com rédea curta,
para prevenir qualquer outra escapada. Eu não me sentia mais culpado,
minha decisão resolveu-se.
— Você não vai se livrar desta, Sr. Eunuco — resmunguei para
ele.
Ele estava arfando e bufando, puxando a guia para farejar todos os
animais que encontrava pelo caminho. Na sala de espera, conseguiu
apavorar um casal de gatos e derrubar uma mesinha cheia de panfletos.
Entreguei-o à assistente do Dr. Jay e disse:
— Dê-lhe o que ele precisa.
A noite, quando fui buscá-lo, Marley era outro cão. Estava dolorido
por causa da cirurgia e se movia lentamente. Seus olhos estavam
avermelhados e abatidos por causa da anestesia, e ele ainda se sentia
meio grogue. E onde aquelas magníficas jóias da coroa balançavam-se tão
orgulhosas não havia mais... nada. Apenas um pequeno pedaço
enrugado de tecido. A linhagem irrepreensível de Marley havia sido
permanentemente exterminada.
Capítulo 10
A sorte dos irlandeses
Nossas vidas eram definidas cada vez mais pelo trabalho. O
trabalho nos jornais. O trabalho em casa. O trabalho no jardim. O
trabalho para engravidar. E, praticamente uma dedicação em período
integral, o trabalho cuidando de Marley. De muitos modos, ele era
como uma criança, requerendo o tempo e a atenção que uma criança
exige, e sentíamos um pouco da responsabilidade que nos esperava se
acabássemos por aumentar a família. Mas só até certo ponto. Mesmo
sendo marinheiros de primeira viagem como futuros pais, sabíamos
que não poderíamos prender nossos filhos na garagem com uma vasilha
de água ao sair para trabalhar.
Ainda não tínhamos completado dois anos de casamento e já
sentíamos o peso da vida responsável e amadurecida de casados.
Precisávamos relaxar. Precisávamos de férias, apenas nós dois, longe
das obrigações do dia-a-dia. Surpreendi Jenny uma noite trazendo
duas passagens aéreas para a Irlanda. Iríamos viajar por três
semanas. Não faríamos nenhum intinerário, nem passeios com agentes
de turismo, nem teríamos obrigação de visitar os lugares. Apenas
alugaríamos um carro, teríamos um mapa da estrada e um guia
turístico de albergues para dormir pelo caminho. Apenas segurar as
passagens nas mãos já elevou o nosso espírito.
Primeiro teríamos algumas obrigações a cumprir, e o primeiro da
lista era Marley. Rapidamente localizamos um hotel para cães. Ele era
muito novo, muito elétrico e muito bagunceiro para ser colocado numa
jaula vinte e quatro horas por dia. Como o Dr. Jay previu, a castração
não diminuiu a exuberância de Marley nem um pouco. Também não
afetou sua carga de energia ou seu comportamento alucinado. Exceto
pelo fato de não mostrar mais interesse em montar em objetos
inanimados, ele continuava a mesma fera lunática. Ele era muito
selvagem — e imprevisivelmente destrutivo quando entrava em pânico
— para ficar hospedado na casa de algum amigo. Ou mesmo na casa de
um inimigo, se fosse o caso. Precisávamos de uma babá de cachorro que
dormisse cm casa. Obviamente, não serviria qualquer pessoa,
especialmente considerando os desafios que Marley representava.
Precisávamos de alguém que fosse responsável confiável, paciente, e
forte o suficiente para acompanhar 32 kg de um labrador em
desabalada carreira.
Fizemos uma lista de todos os amigos, vizinhos e colegas de
trabalho que conseguimos nos lembrar e fomos riscando os nomes que
não serviam. Rapaz muito festeiro. Riscado. Distraído demais. Riscado.
Detesta baba de cachorro. Riscado. Muito baixo para segurar um
dachshund, imagine um labrador. Riscado. Alérgico. Riscado. Não gosta
de pegar cocô de cachorro. Riscado. No fim, ficamos com apenas um
nome. Kathy trabalhava em meu escritório, era solteira e sem
compromissos. Ela cresceu no campo, no meio-oeste americano, amava
animais e ansiava um dia trocar seu pequeno apartamento por uma
casa com jardim. Era do tipo atlético e gostava de andar. E verdade que
era tímida e bastante introspectiva, o que lhe poderia dificultar impor
sua vontade em relação ao Marley, mas, se não fosse por isso, seria
perfeita. O melhor de tudo foi que ela concordou.
A lista de recomendações que preparei para ela não poderia ser
mais detalhada, como se estivéssemos deixando uma criança doente
sob seus cuidados. O relatório Marley tinha seis páginas cheias em
espaço um e tinha o seguinte texto:
ALIMENTAÇÃO: Marley come três vezes ao dia, duas
vasilhas em cada refeição. O copo de medida está dentro do
saco de ração. Por favor, alimente-o quando você se levantar
pela manhã e ao voltar do trabalho. Os vizinhos virão
alimentá-lo no meio da tarde. Isso soma seis xícaras de
comida por dia, mas se ele se mostrar faminto, por favor, dêlhe
uma xícara a mais. Como pode perceber, toda esta
comida tem de sair por algum lugar. Veja CONTROLE DO
COCÔ abaixo.
VITAMINAS: Toda manhã, damos a Marley um tablete de
vitamina para cães. O melhor modo de ministrá-lo é
simplesmente deixá-lo cair no chão e fazer de conta que ele
não deveria comê-lo. Se ele achar que é proibido, vai deglutilo.
Se por acaso esse método não funcionar, você pode
misturá-lo no meio da comida.
ÁGUA: No calor, é importante manter muita água fresca à
disposição dele. Trocamos a água que fica ao lado de sua
vasilha de comida uma vez por dia e jogamos fora se estiver
acabando e colocamos uma nova. Atenção: Marley gosta de
meter o focinho na vasilha de água e brincar de submarino.
Isto joga água para todo lado. Também a sua mandíbula
retém uma imensa quantidade de água, que escorre ao se
afastar da vasilha. Se você não tomar cuidado, ele vai secar a
boca em suas roupas e no sofá. Uma última recomendação:
ele normalmente se sacode depois de beber um bom gole de
água, e sua saliva voa nas paredes, nos abajures etc.
Tentamos limpar isso antes que seque, quando se torna quase
impossível de tirar.
PULGAS E CARRAPATOS: Se você vir pulgas ou
carrapatos no pêlo dele, você pode usar os sprays antipulga
e anticarrapato que temos em casa. Também temos um
inseticida que você pode usar nos tapetes etc, se você achar
que eles estão se espalhando. As pulgas são pequenas e ágeis
e difíceis de pegar, porém raramente atacam pessoas, nós
descobrimos, então, eu não ficaria muito preocupado.
Carrapatos são maiores e mais lentos e, de vez em quando,
encontramos no pêlo do Marley. Se você encontrar um
carrapato e tiver estômago para fazer isso, apenas pegue-o e
amasse-o num pano (você terá de apertá-lo com as unhas;
eles são muito duros) ou jogá-lo na pia ou na privada e dar a
descarga (a melhor opção se o carrapato estiver cheio de
sangue). Você provavelmente já ouviu falar de carrapatos
espalharem a Doença de Lyme entre seres humanos e todos
os problemas de saúde que eles podem causar, mas muitos
veterinários nos asseguraram que há muito pouco perigo de
se contrair essa doença na Flórida. Apenas como garantia,
lave bem as mãos depois de tirar um carrapato. O melhor
modo de retirar um carrapato do Marley é dar um brinquedo
para ele segurar na boca para distraí-lo, e espremer a pele
com uma das mãos e puxar o carrapato com a outra, usando
as unhas como pinça. Falando nisso, se ele começar a feder
muito, e você tiver coragem, poderá dar-lhe um banho na
piscina infantil que temos no quintal (apenas para este fim),
mas use um maiô. Você vai ficar encharcada!
OUVIDOS: Marley tem a tendência de juntar muita cera no
ouvido que, se não for limpado, pode causar infecções.
Enquanto estivermos viajando, por favor, aplique, uma ou
duas vezes, a solução azul para limpeza de orelhas com as
bolinhas de algodão, e tire o máximo de cera dos ouvidos de
Marley que puder. Como não é algo agradável de se fazer,
certifique-se de estar usando roupas mais velhas.
PASSEIOS: Se não sair para o seu passeio matinal, Marley
começa a bagunçar na garagem. Para sua própria saúde
mental, você pode sair para dar uma volta com ele à noite
antes de dormir, mas isto é opcional. Você poderá usar o
enforcador para sair com ele, mas nunca o deixe no pescoço
dele quando ele estiver sozinho. Ele pode se estrangular e,
conhecendo Marley como ele é, ele provavelmente
conseguiria fazer isso.
COMANDOS BÁSICOS: Caminhar com ele se torna muito
mais fácil se você fizer com que ele ande junto de você.
Sempre comece com ele sentado à sua esquerda e, em
seguida, dê o comando: “Marley, junto!”, e dê um primeiro
passo com o pé esquerdo. Se ele tentar arremeter à frente,
puxe a guia rápido para trás. Isso, em geral, funciona
conosco. (Ele já foi adestrado!) Se ele estiver sem a guia, ele
normalmente atende ao chamado de “Marley, venha!”.
Nota: é melhor que você esteja de pé e não agachada quando
você o chamar.
TEMPESTADE DE RAIOS: Marley tende a ficar um pouco
nervoso durante tempestades ou mesmo chuvas brandas.
Guardamos os sedativos dele (as pílulas amarelas) no armário,
junto com as vitaminas. Uma pílula ministrada trinta minutos
antes da tempestade começar (você vai acabar virando uma
metereologista depois disso!) deve bastar. Fazer Marley engolir
esta pílula é uma arte. Ele não vai engolir como faz com as
vitaminas, mesmo que deixe cair no chão e finja que ele não
deva comer. A melhor técnica é segurá-lo e forçar sua
mandíbula com uma das mãos. Com a outra, você empurra a
pílula o mais fundo possível em sua garganta. Você deve
colocá-la bem no fundo senão ele a põe para fora. Em seguida,
alise a garganta dele até que ele tenha engolido. Com certeza,
você deverá querer se lavar depois disso.
CONTROLE DO COCÔ: Há uma pá encostada na
mangueira no quintal que uso para recolher as fezes de
Marley. Sinta-se à vontade para limpar logo depois que ele
evacuar tantas vezes quantas quiser, dependendo de quanto
quiser andar pelo quintal. Olhe onde pisa!
PROIBIÇÕES: Marley está PROIBIDO de:
‘«á Subir nos móveis.
Mastigar a mobília, sapatos, travesseiros etc.
Beber água do vaso (melhor manter a tampa abaixada o
tempo todo, porém, cuidado: ele já descobriu como abri-la
com o nariz).
Cavar no quintal ou arrancar a raiz de plantas e flores. Em
geral, ele faz isso quando acha que não está recebendo
bastante atenção.
Fuçar no lixo (você deverá manter o lixo em cima do balcão).
Pular em cima das pessoas, cheirar virilhas ou ter qualquer
comportamento socialmente inaceitável. Temos tentado curálo
especialmente do hábito de mordiscar o braço das
pessoas, o que você pode imaginar, não é todo mundo que
aprecia. Vamos precisar de um pouco mais de paciência com
isso. Sinta-se à vontade de lhe dar uma palmada no
bumbum e dizer: “Não!”.
Mendigar à mesa por comida.
Empurrar a tela da porta da frente ou de trás (você verá
que várias já foram substituídas).
Obrigado mais uma vez por fazer tudo isto por nós, Kathy. Este é
um imenso favor. Creio que não conseguiríamos viajar se não fosse por
você. Espero que você e Marley se tornem bons amigos e você se divirta
com ele tanto quanto nós.
Dei as recomendações para Jenny ler e perguntei a ela se havia
qualquer coisa que eu estivesse esquecendo. Ela levou algum tempo para
olhar todo o texto e, depois, levantou a cabeça e me disse:
— O que você está pensando? Você não pode dar isto a ela.
Ela ficou brandindo com o papel na mão.
— Se você der isto a ela, pode esquecer nossa viagem para a
Irlanda. Ela foi a única pessoa que se dispôs. Se ela ler isto, acabou-se.
Ela vai sair correndo daqui até Key West.
Para que tivesse certeza de que eu estava entendendo, ela
repetiu:
—Que diabos você estava pensando quando escreveu isto?
—Você acha que falei demais?
Sempre acreditei em dizer a mais pura verdade e acabei entregando
minhas recomendações a ela. Kathy mostrou alguns sinais de estar se
sentindo um pouco abalada com tudo aquilo, especialmente quando
lemos sobre as técnicas de remoção de carrapatos, mas não fez nenhum
comentário negativo. Com aparência um pouco enojada, e gentil demais
para voltar atrás em sua promessa, ela continuou firme:
— Façam uma boa viagem — ela disse. — Vamos ficar ótimos
por aqui.
A Irlanda foi tudo o que sonhamos. Linda, bucólica,
preguiçosa. O tempo estava esplêndido, claro e ensolarado na maioria
dos dias, fazendo os moradores locais temerem a possibilidade de seca.
Como prometemos a nós mesmos, não tínhamos horário nem
itinerário predeterminado. Simplesmente vagávamos, vadeando pela
costa, parando para caminhar, fazer compras fazer trilha, beber uma
Guinness ou simplesmente ficar olhando para o mar. Paramos o
carro para conversar com fazendeiros que juntavam seu feno e tirar
fotos com as ovelhas no meio da estrada. Se víssemos um atalho
interessante, saíamos do caminho para descer por ele. Era impossível
se perder, porque não tínhamos nenhum lugar para ir. Todas as
nossas responsabilidades e obrigações em casa eram apenas remotas
lembranças.
Quando anoitecia, começávamos a procurar um lugar para
dormir. Invariavelmente, encontrávamos quartos para alugar em casas
de doces viúvas irlandesas que nos serviam, traziam chá, ajeitavam a
cama, e sempre pareciam nos fazer a mesma pergunta:
— Vocês planejam logo ter filhos?
E então nos deixavam no quarto, sorrindo de um modo estranho
e sugestivo, fechando a porta atrás de si.
Jenny e eu nos convencemos de que havia uma lei federal na
Irlanda que exigia que todas as camas de hóspedes deveriam estar de
frente para uma imensa imagem do papa ou da Virgem Maria. Alguns
lugares tinham os dois. Uma delas incluía um rosário desproporcional
pendurado sobre a cabeceira. A lei irlandesa do viajante celibatário
também ditava que todas as camas de hóspedes deveriam ser
extremamente barulhentas, como se soasse um alarme toda vez que um de
seus ocupantes se mexesse um pouco sobre ela.
Tudo conspirava para criar um ambiente tão inspirador para
relações amorosas quanto um convento. Estávamos hospedados em casa
de estranhos — numa casa de alguém muito católico —, de paredes
finas, uma cama muito barulhenta, estátuas de santos e virgens por toda
parte, e uma anfitriã bisbilhoteira que, pelo que sabíamos, estava
espreitando do outro lado da porta. Era o último lugar do mundo onde
se poderia pensar em ter relações sexuais. O que, obviamente, fez com
que eu passasse a desejar minha mulher de uma forma nova e poderosa.
Apagávamos as luzes e entrávamos na cama, as molas rangendo
com o nosso peso e, imediatamente, eu colocava minha mão sob a blusa
de Jenny em cima da sua barriga.
— De jeito nenhum! — ela sussurrava.
—Por que não? — eu sussurrava de volta.
—Tá maluco? A Sra. O’Flaherty está do outro lado da parede.
— E daí?
— Não podemos!
—Claro que podemos.
—Ela vai ouvir tudo.
—Faremos silêncio.
—Ah, está bem!
—Prometo. Mal vamos nos mexer.
— Está bem, mas coloque uma camiseta ou qualquer outra coisa
em cima do papa primeiro — ela diria, cedendo, finalmente. — Não vou
fazer nada com ele ali olhando para nós.
De repente, sexo parecia tão... tão... ilícito. É como se eu estivesse
de novo no colegial, tentando escapulir do olhar suspeito de minha mãe.
Arriscar a fazer amor neste lugar era arriscar passar por uma humilhação
na mesa do café da manhã comunitário na manhã seguinte. Era arriscar
enfrentar as sobrancelhas erguidas da Sra. O’Flaherty, enquanto nos
servia os ovos mexidos e os tomates fritos, perguntando com um meio
sorriso:
— Então, a cama estava confortável para vocês?
A Irlanda era, de costa a costa, uma Área Sem Sexo. E isto era
exatamente todo o estímulo que eu precisava. Passamos a viagem toda
trepando como coelhos.
Mesmo assim, Jenny não conseguia parar de se preocupar com seu
grande bebê que estava em casa. A cada dois dias, ela enfiava um punhado
de moedas num telefone público e ligava para casa para saber como estavam
as coisas com Kathy. Eu ficava do lado de fora, ouvindo os fins de frase de
Jenny:
— Ele fez? ...E mesmo? ...No meio do trânsito? ...Você não se
machucou, não é? Graças a Deus. ...Eu teria gritado também. ...O
que? Seus sapatos? ...Ah, não! E a sua bolsa? ...Certamente, vamos
pagar a você pelo conserto. ...Não sobrou nada? ...Claro, fazemos
questão de comprá-los novos para você. ...E ele, o que? ...Cimento
fresco, foi? Como é que uma coisa dessas pode acontecer?
E era sempre assim. Cada ligação era uma cantilena de
transgressões, uma pior que a outra, que surpreendiam até a nós,
sobreviventes da época em que ele era só um filhote. Marley era o aluno
incorrigível e, Kathy, a infeliz professora substituta. Ela estava vivendo
uma batalha.
Quando chegamos em casa, Marley correu até o lado de fora para nos
receber. Kathy ficou parada na porta, com ar esgotado. Ela tinha um olhar
distante de soldado e estado de choque após uma batalha sangrenta. Ela
deixara sua bolsa pronta, esperando na varanda da frente. Estava com a
chave do carro na mão como se estivesse ansiosa para ir embora. Nós lhe
demos seus presentes, agradecemos profusamente a ela, e dissemos-lhe
para não se preocupar com as telas rasgadas e outros estragos. Ela se
desculpou gentilmente e se foi.
Como pudemos imaginar, Kathy foi incapaz de exercer qualquer
autoridade sobre Marley, e muito menos controlá-lo. A cada vitória, ele
ficava mais ousado. Ele esqueceu tudo que aprendera quanto a andar
junto, arrastando-a atrás dele onde quisesse ir. Ele se recusou a vir até a
ela. Ele pegava o que queria — sapatos, bolsas, travesseiros — e não
soltava mais. Ele roubou comida do prato dela. Ele fuçou no lixo. Ele
tentou até mesmo tomar a cama dela de assalto. Ele decidiu que tomaria
conta da casa enquanto os pais estivessem fora e não iria deixar uma
mocinha comportada assumir o seu lugar e acabar com a brincadeira
dele.
—Pobre Kathy — disse Jenny. — Ela estava com um aspecto
horrível, não estava?
—Alquebrada é uma palavra melhor.
—Provavelmente, não vamos poder pedir a ela que tome conta
do Marley para nós novamente.
— Não — respondi. — Certamente, não será uma boa idéia.
Eu me virei para Marley e disse:
— A lua-de-mel acabou, Chefe. A partir de amanhã, você volta ao
seu treinamento.
Na manhã seguinte, Jenny e eu voltamos ao trabalho. Mas antes,
coloquei o enforcador em torno do pescoço de Marley e levei-o para dar
uma volta. Ele imediatamente puxou à frente, sem sequer se dar ao
trabalho de fingir que iria me acompanhar.
— Você está enferrujado, não é? — perguntei e puxei com toda a
força a guia para trás, derrubando-o no chão.
Ele se endireitou, tossiu e olhou para mim com uma expressão
dolorida como se dissesse: “Você não precisa ficar bravo comigo. Kathy
não se importava se eu puxasse”.
— É bom se habituar — eu disse, colocando-o sentado.
Ajustei o enforcador bem alto do seu pescoço, onde aprendi, por
experiência própria, que surtia um melhor efeito.
— O.k., vamos tentar novamente — eu disse.
Ele me encarou com uma frieza cética.
—Marley, junto! — ordenei, e rapidamente dei um passo com o
pé esquerdo, com a guia tão curta, que minha mão praticamente
segurava o enforcador. Ele avançou e puxou de modo brusco, apertando
o enforcador sem perdão.
—Aproveitando-se de uma mulher indefesa como aquela —
murmurei —, você deveria se envergonhar disso.
Ao fim da caminhada, com a guia apertada de tal forma que
deixou meus dedos brancos, consegui convencê-lo de que eu não estava
brincando. Isso não era um jogo. Era uma lição real de vida, com atos e
conseqüências. Se ele quisesse arremeter, eu iria sufocá-lo. Toda vez,
sem exceção. Se ele quisesse cooperar e andar ao meu lado, eu
afrouxaria a minha mão e ele mal sentiria a corrente em volta do seu
pescoço. Arremeter, sufocar; caminhar, respirar. Era simples o bastante
até mesmo para que Marley entendesse. Repetimos a seqüência
inúmeras vezes, caminhando para cima e para baixo pela ciclovia.
Arremeter, sufocar; caminhar, respirar. Aos poucos, ele começou a
entender que eu era o mestre e ele, o cachorro, e que era assim que as
coisas deveriam continuar a ser. Ao virar na calçada, meu cão
recalcitrante trotava ao meu lado, se não de modo perfeito, de maneira
bem respeitável. Pela primeira vez na vida, Marley estava caminhando de
verdade, ou pelo menos tentando fazer isso da melhor forma. Tomei isto
como uma vitória.
— Ah, sim — cantarolei, feliz. — O chefe está de volta.
Dias depois, Jenny me ligou no escritório. Ela acabara de voltar
de uma consulta com o Dr. Sherman.
— A sorte dos irlandeses — ela disse. — Vamos começar tudo
novamente.
Capítulo 11
Tudo que ele comeu
Esta gravidez foi diferente. O aborto que tivemos ensinou-nos
lições importantes e desta vez não tínhamos intenção de repetir os
mesmos erros. Mais importante ainda, mantivemos o maior segredo
possível desde que soubemos. A não ser pelos médicos e enfermeiras de
Jenny, ninguém, nem mesmo nossos pais, mereceu repartir nosso segredo.
Quando recebíamos amigos em casa, Jenny tomava suco de uva num copo
de vinho para não levantar suspeita. Além do segredo, fomos mais
comedidos em nosso entusiasmo, mesmo quando estávamos a sós.
Começávamos as frases com condicionais, como: “Se tudo der certo...” e “Se
tudo correr bem...”. Como se pudéssemos pôr a gravidez em risco apenas em
falar dela. Não ousávamos externar nossa alegria para não haver qualquer
chance de acontecer nada de errado.
Trancamos todos os limpadores químicos e os pesticidas. Não
iríamos correr o mesmo risco novamente. Jenny se tornou devota dos
poderes naturais de limpeza do vinagre, que enfrentou até o maior
desafio de dissolver a saliva ressecada de Marley das paredes.
Descobrimos que ácido bórico, um pó branco letal para insetos e
inofensivo para seres humanos, funcionava perfeitamente para manter
Marley e seus lençóis de cama sem pulgas. E se ele precisasse de um
tratamento antipulgas, nós o levávamos para que ele fosse tratado por
um profissional.
Jenny levantava-se toda manhã e levava Marley para uma
caminhada rápida ao longo da rebentação. Eu estaria ainda acordando
quando eles voltavam, com cheiro de maresia. Minha mulher era a
imagem perfeita de saúde em todos os sentidos, menos um. Ela passava
quase todos os dias querendo vomitar o dia inteiro. Mas ela não se
queixava: ela superava cada ataque de enjôo com um modo de aceitação
tácita, por indicar que o minúsculo corpo dentro dela estava conseguindo
se desenvolver perfeitamente.
E estava mesmo. Desta vez, Essie pegou a minha fita de vídeo e
gravou as primeiras imagens nebulosas e granuladas do nosso bebê.
Pudemos ouvir o coração bater e ver suas quatro minúsculas cavidades
pulsarem. Pudemos ver o contorno da cabeça e contar todos os braços e
perninhas. Dr. Sherman pôs a cabeça para dentro da sala de sonografia
para dizer que tudo estava perfeito e, depois, olhou para Jenny e disse
com sua voz retumbante:
— Por que você está chorando, meu bem? Você deveria estar feliz.
Essie bateu nele com a prancheta de mão e o repreendeu:
— Vá embora e deixe-a em paz! — disse ela, e virou os olhos
para Jenny com se quisesse dizer: “Homens! Eles não entendem
nada!”.
Quanto a lidar com mulheres grávidas, essa seria a melhor
definição para mim. Eu dava a Jenny o seu espaço, era solidário quando
ela se sentia enjoada ou com dor, e tentava não fazer uma cara muito
feia quando ela insistia em ler o livro O que esperar quando se está
esperando em voz alta para mim. Eu fazia elogios à forma que seu corpo
adquiria à medida que sua barriga crescia, dizendo coisas como: “Você
está ótima. De verdade. Você parece que resolveu colocar uma cesta de
basquete debaixo da camiseta”, Eu ainda me esforçava para levar numa
boa seu comportamento cada vez mais bizarro e irascível. Logo me
tornei íntimo do atendente de plantão do mercadinho 24 horas ao me
tornar um assíduo freqüentador, aparecendo a qualquer hora do dia ou
da noite para comprar sorvete, maçãs, aipo ou chiclete em sabores que
eu nem suspeitava que existissem.
— Você tem certeza que isto é cravo? — eu perguntaria a ele. —
Ela disse que tem de ser de cravo.
Certa noite, quando Jenny estava no quinto mês de gravidez, ela
cismou que precisávamos comprar meias de bebê. Sim, claro que
precisávamos, e eu concordei com ela, e certamente compraríamos tudo
que o bebê precisasse antes de nascer. Mas ela não dizia que
precisaríamos comprar as meias, apenas, ela dizia que precisaríamos
comprá-las imediatamente.
— Não vamos ter nada para colocar nos pés do bebê quando
voltarmos da maternidade — ela disse numa voz trêmula.
Não importava que o dia previsto para o parto fosse dali a quatro
meses. Não importava que quando o bebê nascesse a temperatura
externa seria de “gélidas” 36 graus Celsius. Não importava que até
mesmo um rapaz desavisado como eu sabia que o bebê estaria
embrulhado da cabeça aos pés em um cobertor quando fosse liberado
do berçário da maternidade.
— Meu bem, pelo amor de Deus! — eu disse. — Seja razoável, são
oito horas da noite de domingo. Onde é que vou achar meias de bebê?
— Precisamos das meias — ela repetiu.
— Temos várias semanas pela frente para comprar as meias —
tentei contornar. — Vários meses pela frente para comprar meias.
— Veja esses dedinhos pequeninhos — ela choramingou.
Não adiantou. Dirigi a esmo resmungando até encontrar uma loja que
estivesse aberta e peguei uma seleção efusiva de meias que eram tão
ridiculamente minúsculas que pareciam luvinhas de polegar. Quando
cheguei em casa e despejei-as da sacola, Jenny ficou satisfeita. Finalmente,
tínhamos meias. E graças a Deus que conseguimos pegar os últimos dos
poucos pares disponíveis antes que o fornecimento nacional de meias de bebê
se esgotasse, o que poderia acontecer a qualquer momento, sem prévio aviso.
Os frágeis dedinhos do nosso bebê agora estavam a salvo. Poderíamos nos
deitar e dormir em paz.
A medida que a gravidez avançava, também avançava o
treinamento de Marley. Eu trabalhava com ele todos os dias e agora eu
podia entreter nossos amigos gritando: “Entrando!”, e vê-lo se esborrachar
no chão com as patas esparramadas. Ele atendia quando era dado o
comando para vir (a menos que algo chamasse sua atenção, como outro
cão, um gato, um esquilo, uma borboleta, o carteiro, ou qualquer coisa que
passasse voando pelo seu nariz); ele atendia quando era dado o comando
para sentar (a menos que preferisse ficar de pé); ele andava sempre
acompanhando ao lado (a menos que houvesse algo tão tentador que
valesse a pena ele se enforcar — veja cães, gatos, esquilos etc, acima). Ele
estava aprendendo, mas isso não queria dizer que ele estivesse se
transformando um cão calmo e obediente. Se eu brigasse com ele e
esbravejasse as ordens que ele deveria cumprir, ele atenderia, por vezes,
atentamente. Mas seu estado normal apresentava um comportamento
incorrigível.
Ele também tinha um apetite insaciável por mangas, que, caíam
às dúzias no quintal. Cada uma pesava meio quilo ou mais e era tão
doce que doía nos dentes. Marley se estendia na grama, agarrava uma
manga madura entre as patas dianteiras, e começava a remover
cirurgicamente toda a polpa da casca. Ele chupava as enormes
sementes como se fossem pastilhas, e quando finalmente terminava de
chupá-las, parecia que haviam sido limpas em uma solução de ácido. Em
alguns dias, ele ficava lá fora por horas seguidas, entregue a um frenesi
de deglutição de frutas.
Como todo mundo que come muita fruta, suas fezes começaram a
mudar. Logo nosso quintal estava coalhado com imensos montes de
cocô, moles e coloridos. Uma das vantagens disso era que você deveria
ser literalmente cego para pisar sem querer num monte de cocô que ele
deixasse pelo caminho, que na época de manga adquiria a fluorescência
radiante de sinalizadores de tráfego amarelos.
Ele comia outras coisas também. E estas também passavam. Eu
via a prova a cada manhã enquanto removia seus montes com a pá.
Aqui eu encontrava um soldadinho de plástico, ali um elástico. Em um
monte, uma tampinha de refrigerante mordida. Em outro, uma tampinha
de caneta esferográfica retorcida.
— Ah, foi aqui que veio parar o meu pente! — exclamei certa
manhã.
Ele deglutia toalhas de banho, esponjas, meias, lenços de papel
usados. Fosse o que fosse que saísse do outro lado, marcava cada monte
cor de laranja fluorescente.
Nem tudo passava facilmente, e Marley vomitava com a
facilidade e regularidade de uma pessoa que sofre de bulimia. Ouvíamos
ele tossir alto no quarto ao lado, e quando chegávamos para acudir,
encontrávamos outro item doméstico no meio de uma poça de manga e
ração de cachorro mal digerida. Por excesso de consideração, Marley
nunca vomitou no assoalho de madeira de lei, ou mesmo no linóleo da
cozinha, se ele pudesse evitar. Ele sempre mirava o tapete persa.
Jenny e eu tínhamos a ilusão de que seria legal ter um cachorro
que pudéssemos deixar sozinho em casa de vez em quando por um curto
espaço de tempo. Trancá-lo na garagem toda vez que íamos sair havia
se tornado maçante e, como dizia Jenny: “Para que ter um cachorro, se
ele não pode receber você na porta quando se volta para casa?”.
Sabíamos bem que não ousaríamos deixá-lo sozinho se houvesse a
menor possibilidade de chuva. Mesmo com seus acolchoados de
cachorro, ele ainda seria capaz de cavar um buraco até a China.
Quando o tempo estava bom, porém, não queríamos ter de trancá-lo na
garagem toda vez que saíssemos por alguns minutos.
Começamos a deixá-lo sozinho por breves minutos enquanto
corríamos até a loja ou íamos até a casa de um vizinho. Às vezes, ele se
comportava e encontrávamos a casa inalterada ao voltar. Nesses dias,
víamos o seu nariz preto pressionado contra as minivenezianas,
enquanto ele olhava pela janela da sala de estar esperando por nós. Em
outros dias ele não se comportava tão bem e, em geral, sabíamos que
encontraríamos algum problema antes mesmo de abrir a porta, porque
ele não estaria na janela e, sim, se escondendo em algum lugar.
No sexto mês de gravidez de Jenny, voltamos depois de ter ficado
fora por menos de uma hora e encontramos Marley debaixo da cama —
com aquele tamanho, ele realmente deve ter-se esforçado para
conseguir entrar — com a cara como se tivesse acabado de matar o
carteiro. Sua expressão era de culpa total. Tudo parecia estar em
ordem, mas sabíamos que ele estava escondendo um segredo terrível, e
fomos de quarto em quarto, tentando descobrir o que ele havia feito de
errado. Então notei que a tela de um dos alto-falantes estava faltando.
Procuramos por toda parte. Havia desaparecido completamente. Marley
passaria impune se eu não tivesse encontrado a prova incontroversa de
sua culpa quando fui revirar suas fezes na manhã seguinte. Resquícios
da cobertura do alto-falante levaram dias sendo eliminados.
Quando saímos novamente, Marley conseguiu remover
completamente o cone de som do mesmo alto-falante. O alto-falante não
estava virado ou fora do lugar: o cone de papel simplesmente
desaparecera, como se alguém tivesse triturado. Depois, ele acabou
fazendo a mesma coisa com o outro alto-falante. De outra vez, ao chegar
em casa, descobrimos que nosso banquinho tinha agora apenas três
pernas e não havia nenhum sinal — nem uma lasquinha — da perna
que estava faltando.
Jurávamos que nunca nevaria no sul da Flórida, mas, certo dia,
abrimos a porta da frente e vimos uma tempestade de gelo na sala de
estar. O ar estava cheio de penugem. Através daquela nuvem branca
vimos Marley em frente à lareira, semi-enterrado em um monte de
plumagem branca, sacudindo violentamente um imenso travesseiro de
um lado para outro como se tivesse acabado de ensacar uma avestruz.
Na maioria das vezes, reagíamos de forma tácita em relação aos
danos Na vida de todo dono de cachorro alguns dos bens de família
mais estimados se perdem. Apenas uma vez eu estava pronto para abrir
a barriga dele para recuperar o que era meu por direito.
Para o aniversário de Jenny, eu comprei um colar de ouro de 18
quilates, uma corrente delicada com um pequeno fecho, e ela o
colocou imediatamente. Porém, algumas horas mais tarde, ela colocou a
mão sobre o pescoço e gritou:
— Meu colar! Sumiu!
O fecho deve ter-se aberto ou então ela não o fechou direito.
— Não entre em pânico -— eu disse a ela. — Nós não saímos de
casa. Deve estar aqui em algum lugar.
Começamos a vasculhar de um cômodo a outro. Enquanto
procurávamos, me dei conta que Marley estava mais agitado do que o
normal. Eu me levantei e o encarei. Ele estava se retorcendo como uma
centopéia. Quando ele percebeu que eu estava olhando para ele,
começou a querer fugir. “Ah, não”, pensei, o Marley Mambo. Só queria
dizer uma coisa.
— O que é isso — perguntou Jenny, apavorada —, pendurado na
boca dele?
Era algo fino e delicado. E dourado.
— Merda! — exclamei.
— Não se mexa rápido demais — ela ordenou, sussurrando.
Nós dois congelamos.
— O.k., rapaz, está tudo bem — eu disse, em tom ameno, como
um negociador de reféns de uma equipe da SWAT. — Não estamos
bravos com você. Venha até aqui agora. Queremos apenas o colar de
volta.
Instintivamente, Jenny e eu começamos a cercá-lo dos dois lados,
movendo-nos com uma lentidão glacial. Era como se ele estivesse envolto
em bananas de dinamite e um movimento em falso pudesse mandá-lo pelos
are.
— Devagar, Marley — disse Jenny com seu tom de voz mais
brando. — Devagar agora. Solte o colar e ninguém se machuca aqui.
Marley encarou-nos com ar suspeito, virando a cabeça de um lado
para outro para cada um de nós. Nós conseguimos cercá-lo, mas ele sabia
que tinha algo que nós queríamos. Pude vê-lo pensando quais seriam as
suas opções um pedido de resgate, talvez: Deixem duzentos biscoitos
de cachorro não numerados num saco de supermercado, ou vocês
nunca mais verão seu precioso colarzinho novamente.
— Solte Marley! — sussurrei, dando mais um pequeno passo a
frente.
Ele começou a se sacudir inteiro. Eu avançava lentamente na
direção dele. Sem que ele percebesse, Jenny fechou um dos lados.
Estávamos a um passo dele. Nós nos entreolhamos e sabíamos o que
fazer sem ter de dizer nada. Já havíamos passado por situações como
esta inúmeras vezes. Ela agarraria o traseiro, prendendo as patas, para
evitar que ele fugisse. Eu agarraria sua cabeça, abrindo à força sua
mandíbula e arrancando o contrabando. Com sorte, tudo estaria
terminando em segundos. Este era nosso plano e Marley viu-nos
aproximando dele.
Estávamos a menos de um metro de distância. Balancei a cabeça
para Jenny e movi os lábios sem emitir nenhum som, dizendo: “Quando
eu contar três”. Mas antes que pudéssemos nos mexer, ele puxou a
cabeça para trás e fez um enorme barulho com a boca. A ponta da
corrente, que estava pendurada do lado de fora, desapareceu.
— Ele está engolindo o colar! — Jenny exclamou.
Caímos juntos em cima dele, Jenny atacando as patas traseiras,
enquanto eu agarrava o pescoço. Eu abri sua boca à força e coloquei
minha mão toda dentro de sua garganta. Vasculhei todos os cantos, mas
não encontrei nada.
—Tarde demais — eu disse. — Ele o engoliu.
Jenny começou a bater em seu traseiro, gritando:
—Ponha para fora, desgraçado!
Mas não adiantou. O máximo que ela conseguiu dele foi um
arroto bem alto e satisfeito.
Marley poderia ter ganhado a batalha, mas sabíamos que seria
apenas uma questão de tempo até vencermos a guerra. O chamado da
natureza estava ao nosso lado. Mais cedo ou mais tarde, o que
entrava tinha de sair. Não importava quão desagradável fosse este
pensamento, eu sabia que se eu revirasse seus excrementos o bastante,
acabaria encontrando-o. Se tivesse sido, por exemplo, uma corrente de
prata, ou uma chapeada de ouro, qualquer coisa de menor valor,
minha aversão teria me vencido. Mas esta corrente era de ouro maciço
e custou uma nota preta. Enojado ou não, eu iria em frente.
Então, eu preparei Marley para seu laxante favorito — uma
vasilha gigante de fatias de manga supermaduras — e me pus a
esperar. Por três dias, eu o segui toda vez que o deixava sair para fazer
suas necessidades no quintal, esperando ansiosamente para atacar
com minha pá. Em vez de jogar seus montinhos sobre a cerca, eu
colocava cada um cuidadosamente sobre uma tábua larga em cima da
grama e remexia com um galho de árvore enquanto jogava água com a
mangueira do jardim, deixando o material digerido escorrer para a
grama e retendo qualquer objeto estranho que encontrasse ali. Eu me
sentia como um minerador de ouro trabalhando num rio, descobrindo
um veio de lixo deglutido, de cadarços a palitos de fósforo. Mas nem
sinal do colar. Onde teria ido parar? Já não deveria ter saído? Comecei
a imaginar se eu não deixara passar despercebido, escorrendo-o sem
querer para dentro da terra, onde estaria perdido para sempre. Mas
como eu não teria visto uma corrente de ouro de cinqüenta
centímetros de comprimento? Jenny estava acompanhando a minha
operação de resgate da varanda com a maior atenção, e até acabou
inventando um novo apelido para mim:
— Ei, Espalha-Brasas, já o encontrou? — ela gritava.
No quarto dia, minha perseverança foi recompensada. Levantei o
último monte deixado por Marley, repetindo o que havia se
transformado em meu mote diário: “Não acredito que estou fazendo
isso”, e comecei a revirá-lo e jogar água. Assim que as fezes se
dissolveram, procurei por algum sinal do colar. Nada. Eu estava a ponto
de desistir quando vi algo esquisito: um pequeno naco marrom, do
tamanho de uma ervilha torta. Não tinha sequer o tamanho suficiente
para ser a jóia perdida, mas mesmo assim eu suspeitei. Toquei-o com o
meu galho, que eu havia batizado oficialmente de “Pau-de-Bosta”, e
joguei um jato d’água generoso sobre ele. Quando a água conseguiu
lavá-lo, vislumbrei um brilho forte e cintilante. Heureca! Eu havia
encontrado ouro!
O colar estava todo comprimido, muito menor do que eu
imaginara. Como se um poder alienígena e desconhecido, um buraco
negro, talvez, o tivesse sugado para uma dimensão misteriosa do tempo e
do espaço antes de cuspi-lo de volta. E, na verdade, não estava muito
longe do que havia acontecido. A força da água começou a soltar a parte
mais dura e, aos poucos, o colar de ouro surgiu no meio da sujeira,
limpo de novo. Não, na verdade, melhor que novo. Eu o levei para
dentro para mostrar a Jenny que estava radiante de tê-lo de volta,
apesar do acontecido. Ambos ficamos maravilhados como ele brilhava
agora — mais do que antes de haver sido deglutido. Os ácidos do
estômago de Marley limparam o ouro de um modo impecável. Era o
ouro mais brilhante que já vi.
— Puxa vida — eu disse, assobiando —, deveríamos abrir uma loja
de limpeza de jóias.
— Iríamos fazer uma fortuna com as viúvas ricas de Palm Beach.
— Sim, senhoras — eu disse, imitando voz de camelô —, nosso
processo secreto e patenteado não está disponível em nenhum lugar! O
exclusivo Método Marley devolverá às suas adoradas jóias o brilho
ofuscante que antes jamais foi possível conseguir.
— Você tem chance de fazer sucesso, Grogan — disse Jenny, e
saiu para desinfetar seu presente de aniversário recém-recuperado.
Ela usou esta corrente de ouro por anos a fio, e toda vez que eu
olhava para ele, eu sempre me lembrava vividamente da minha breve e
bem-sucedida carreira como prospector de ouro. Espalha-Brasas e seu
Pau-de-Bosta haviam ido aonde nenhum outro homem jamais fora. E
aonde ninguém mais deveria ir.
Capítulo 12
Bem-vindos à Ala
dos Indigentes
Não se dá à luz ao primeiro filho todos os dias, então, quando o
Hospital de Santa Maria em West Palm Beach ofereceu-nos a opção de
pagar um valor extra por uma suíte de luxo na maternidade, nós
agarramos a chance. As suítes pareciam coberturas de hotel, espaçosas,
iluminadas e guarnecidas com mobília de madeira, papel floral nas
paredes, cortinas, uma banheira Jacuzzi, e uma bicama para o papai. Em
vez da comida comum de hospital, os “hóspedes” podiam escolher
refeições à la carte. Poderíamos pedir até uma garrafa de champanhe,
embora apenas os pais pudessem aproveitá-las, pois não aconselhavam
às mães beber mais do que um gole comemorativo por causa da
amamentação.
— Nossa, é como que se estivéssemos de férias — exclamei,
pulando na bicama para os papais ao visitar as acomodações semanas
antes da data prevista para o parto de Jenny.
As suítes atendiam à clientela mais moderna e era uma grande
fonte de renda para o hospital, que cobrava caro dos casais
endinheirados que queriam gastar acima do normal pelos partos. Era
um pouco de exagero, nós sabíamos disso, mas por que não?
Quando chegou o dia do nascimento e chegamos ao hospital com
mala e tudo, informaram-nos que havia um pequeno problema.
— Um problema? — perguntei.
— Deve ser um bom dia para a chegada de bebês — disse a
recepcionista alegremente. — Todas as suítes da maternidade estão
tomadas.
Tomadas? Este era o dia mais importante de nossas vidas. O que iria
acontecer com a bicama, o jantar romântico a dois e o brinde de
champanhe?
— Agora, espere um pouco — eu reclamei. — Nós fizemos nossa
reserva há várias semanas.
— Desculpe-me — disse a moça sem mostrar nenhuma
consternação. — Não podemos controlar o número de mães que entram em
trabalho de parto.
Ela tinha razão. Não dava para mandar ninguém se apressar. Ela
nos conduziu a outro andar, onde poderíamos ter um quarto comum do
hospital. Mas quando chegamos à ala da maternidade, a enfermeira de
plantão no atendimento tinha outras más notícias.
— Vocês acreditam que todos os quartos estão tomados? — ela
disse.
Não, não acreditávamos. Jenny parecia conformada, mas eu
estava começando a ficar irritado.
— O que vocês sugerem? Que coloquemos uma cama no
estacionamento? — eu disse, em tom de provocação.
A enfermeira sorriu para mim, aparentemente familiarizada com o
nervosismo de futuros papais e respondeu:
— Não se preocupe. Vamos arrumar um lugar para vocês.
Depois de uma série de telefonemas, ela nos mandou ir até o fim
de um longo corredor e atravessar algumas portas, quando nos vimos
numa réplica da ala da maternidade que havíamos acabado de sair
exceto por uma diferença óbvia — as pacientes definitivamente não eram
as mulheres elegantes e endinheiradas com quem fizemos as aulas de
pré-natal. Podíamos ouvir as enfermeiras conversando com elas em
espanhol e, no corredor do lado de fora dos quartos, havia homens
pardos segurando chapéus de palha com suas mãos enrugadas,
esperando, nervosos. O distrito de Palm Beach é conhecido como o
parque de diversões de pessoas estupidamente ricas, mas poucos
sabem que também abriga imensas fazendas que se estendem por todo
o pântano seco de Everglades por várias milhas a oeste da cidade.
Milhares de trabalhadores imigrantes, principalmente do México e da
América Central, emigram para o sul da Flórida no outono para colher
os pimentões, tomates, alfaces e aipo que suprem grande parte da
demanda de legumes e verduras da Costa Leste durante o inverno.
Parece que havíamos descoberto aonde a mão-de-obra imigrante
vinha ter seus filhos. Intermitentemente, os gritos desesperados de uma
mulher em trabalho de parto cortavam o ar, seguidos de terríveis
lamentos e exclamações de “Mi madre!”. O lugar parecia uma casa de
horrores. Jenny estava pálida como um fantasma.
A enfermeira nos conduziu a um cubículo minúsculo, que tinha
uma cama, uma cadeira e uma bancada com monitores eletrônicos, e
deu a Jenny uma camisola de hospital para ela vestir.
— Bem-vindos à ala dos indigentes! — exclamou o Dr. Sherman,
esfuziante, quando adentrou o recinto minutos depois. — Não se
deixem enganar pelas paredes limpas.
Ali eles tinham alguns dos equipamentos médicos mais
sofisticados do hospital e as enfermeiras eram as mais bem treinadas.
Como as mulheres carentes em geral não têm acesso a tratamento prénatal,
as gravidezes são de alto-risco. Estávamos em boas mãos, ele nos
assegurou, enquanto rompia a bolsa de água de Jenny. Então, ele
desapareceu tão rapidamente quanto havia aparecido.
Realmente, ao longo da manhã, enquanto Jenny enfrentava
corajosa- mente contrações fortíssimas, descobrimos que estávamos em
muito boas mãos. As enfermeiras eram profissionais experientes que
transmitiam confiança e calor humano, sempre atentas, checando os
batimentos cardíacos do bebê e acompanhando Jenny de perto. Eu fiquei
ao lado dela, sem saber o que fazer, tentando dar meu apoio moral, mas
não adiantou muito. Em determinado momento, Jenny resmungou algo
para mim, entredentes:
— Se você me perguntar mais uma vez como estou me sentindo,
vou-lhe DAR UM SOCO NA CARA!
Eu devo ter feito uma expressão magoada, pois uma das
enfermeiras deu a volta até onde eu estava, tocou o meu ombro,
solidária, e disse:
— Bem-vindo à sala de parto, papai. Tudo isso faz parte da
experiência.
Eu saí da sala para me juntar aos outros homens que esperavam
no corredor. Cada um se encostava à parede ao lado da porta onde
nossas esposas gritavam ou se lamentavam lá dentro. Senti-me um tanto
ridículo usando minha camiseta pólo, shorts, e sapatos esportes, mas os
peões de fazenda não pareciam se incomodar comigo. Logo estávamos
sorrindo de forma solidária. Eles não falavam inglês e eu não falava
espanhol, mas isso não fazia diferença. Estávamos no mesmo barco.
Ou quase no mesmo barco. Descobri nesse dia que, na América,
anestesia é um luxo, não uma necessidade. Para aqueles que pudessem
pagar — cujo seguro-saúde cobrisse, como o nosso — o hospital
fornecia a anestesia peridural, injetada diretamente no sistema nervoso
central. Depois de quatro horas de trabalho de parto, um
anestesiologista apareceu e espetou uma longa agulha junto à espinha
dorsal de Jenny e colocou-lhe uma sonda intravenosa. Em poucos
minutos, Jenny estava anestesiada da cintura para baixo e se sentindo
muito mais à vontade. As mães mexicanas ao nosso lado não tiveram a
mesma sorte. Elas tiveram de suportar o trabalho de parto até o fim, sem
anestesia, gritando o tempo todo.
As horas passavam. Jenny empurrava. Eu a assistia. Quando
anoiteceu, saí para o corredor carregando uma pequena bola de rúgbi
embrulhada. Ergui meu filho recém-nascido acima da minha cabeça para
que meus novos amigos o vissem e exclamei:
— Es el niño!
Os outros pais abriram imensos sorrisos e ergueram o polegar
fazendo sinal de positivo. Ao contrário da dificuldade de escolher um
nome para o nosso cachorro, rapidamente escolhemos um para nosso
primogênito. Ele se chamaria Patrick, o mesmo nome do primeiro
Grogan a chegar aos Estados Unidos vindo do condado de Limerick, na
Irlanda. Uma enfermeira entrou em nossa diminuta sala e informou-nos
que havia uma suíte disponível. Parecia inócuo mudar de quarto agora,
mas ela ajudou Jenny a se sentar numa cadeira de rodas, colocou nosso
bebê em seu colo, e saiu conosco dali. O jantar especial servido mais
tarde não foi tudo que disseram que seria.
Durante as semanas que antecederam o parto, Jenny e eu
conversamos longamente sobre como melhor aclimatar Marley ao
recém-chegado, que iria tirá-lo imediatamente de sua posição como o
Mais Preferido Dependente da casa até aquele momento. Queríamos
que ele se habituasse aos poucos. Havíamos ouvido histórias de
cachorros que se tornaram terrivelmente ciumentos em relação a
crianças ou reagindo de modo inaceitável — de urinar em objetos a
derrubar o cesto para atacá-las — que normalmente acabavam em
expulsão do animal da casa. Ao convertermos o quarto de hóspedes em
quarto de bebê, demos a Marley pleno acesso ao berço e a tudo que o
guarnecia. Ele cheirou, babou e lambeu bastante até saciar sua
curiosidade. Nas trinta e seis horas em que Jenny permaneceu no
hospital se recuperando do parto, voltei em casa várias vezes para
visitar Marley, carregando cobertores ou qualquer outra coisa que
tivesse o cheiro do bebê. Em um dos meus retornos, trouxe até mesmo
uma fralda descartável usada, que Marley cheirou tanto que temi que ele
ferisse suas narinas, precisando de uma intervenção médica mais cara.
Quando finalmente eu trouxe mãe e filho para casa, Marley ficou
fora de si. Jenny colocou Patrick dormindo no moisés no meio da nossa
cama, e depois se juntou a mim que estava comemorando com Marley na
garagem, numa alegria contagiante. Quando Marley se acalmou um
pouco, nós o trouxemos para dentro. Nosso plano era agir naturalmente,
sem apontar o bebê para ele. Iríamos passar por perto e deixá-lo perceber
a presença do novo morador da casa aos poucos, por conta própria.
Marley seguiu Jenny até o quarto, enfiando o nariz fundo na sacola
que ela trouxe de volta da maternidade. Ele literalmente não sabia que
havia um ser vivo em cima de nossa cama. Então Patrick se moveu e
emitiu um som semelhante a um chilreio abafado de pássaro. As
orelhas de Marley se ergueram e ele congelou. De onde veio esse
barulho? Patrick repetiu o som, e Marley levantou uma pata no ar,
apontando como um cão de caça. Meu Deus, ele estava apontando para
nosso bebê como um cão caçador apontaria para uma... presa. Nesse
instante, lembrei do travesseiro de penas que ele atacou com tanta
ferocidade. Ele não seria tão burro para confundir um bebê com um
faisão, seria?
Em seguida, ele se aproximou. Não foi um ataque feroz para
“matar o inimigo”; ele não mostrou os dentes nem grunhiu. Mas
tampouco foi uma aproximação de “boas-vindas ao mais novo habitante
do bairro”. Seu peito tocou o colchão com tanta força que a cama andou
de lugar. Patrick estava bem acordado agora, os olhos esbugalhados.
Marley retrocedeu e avançou novamente, desta vez aproximando sua
boca a poucos centímetros dos pezinhos do nosso recém-nascido.
Jenny agarrou o bebê e eu agarrei o cachorro, puxando-o para trás pela
coleira com ambas as mãos. Marley estava lívido, espichando-se para
se aproximar desta nova criatura, que, de alguma forma, havia invadido
o nosso santuário. Ele se sentou sobre as patas traseiras e eu o puxei
pela coleira, sentindo-me como Zorro montado em seu belo cavalo
negro.
— Muito bem, está tudo bem agora — eu disse.
Jenny colocou Patrick no moisés; eu coloquei Marley entre as
minhas pernas e segurei-o firme pela coleira com os punhos cerrados.
Até Jenny percebeu que Marley não queria agredi-lo. Ele estava arfando
com aquela expressão abobada que ele tinha; os olhos estavam
brilhando e o rabo balançando. Enquanto eu o segurava, Jenny se
aproximou de nós, permitindo que Marley farejasse primeiro os dedinhos
do bebê, depois seus pés, pernas e coxas. A pobre criança tinha apenas
um dia e meio de idade e já estava sob o ataque de um aspirador de pó.
Quando Marley farejou a fralda, ele pareceu entrar num estado alterado
de consciência, um tipo de transe induzido por fraldas infantis. Ele estava
no paraíso. Ele se mostrava eufórico.
— Um movimento em falso, Marley, e você está frito — Jenny
alertou, e ela estava falando sério.
Se ele tivesse demonstrado o menor gesto agressivo em relação
ao bebê, seria o fim dele. Mas ele nunca fez isso. Logo descobrimos que
nosso problema não era evitar que Marley machucasse nosso precioso
bebê. Nosso problema era mantê-lo afastado do cesto de fraldas usadas.
À medida que os dias se transformavam em semanas e as
semanas em meses, Marley aceitou Patrick como seu mais novo amigo de
infância. Certa noite, enquanto eu estava desligando as luzes para ir
dormir, eu não conseguia achar Marley em lugar algum. Finalmente,
resolvi olhar no quarto do bebê, e lá estava ele, deitado ao lado do berço
de Patrick, os dois dormindo a sono solto, numa felicidade cúmplice e
fraternal. Marley, nosso bronco selvagem, comportava-se de modo
diferente com Patrick. Ele parecia entender que este era um pequeno ser
humano, frágil e indefeso; ele se movia lentamente toda vez que estava
próximo dele, lambendo seu rosto e orelhas delicadamente. Quando
Patrick começou a engatinhar, Marley ficava deitado no chão, e deixava
o bebê escalá-lo como se fosse uma montanha, puxando suas orelhas,
colocando o dedo em seus olhos, e puxando tufos de seu pêlo. Nada disso
o perturbava. Marley continuava parado como uma estátua. Ele era
um gigante gentil perto de Patrick, e aceitou sua condição de segundo
violino da orquestra com benevolência e humilde resignação.
Nem todo mundo aprovava a confiança que depositávamos em
nosso cão. Eles o viam como uma besta selvagem, imprevisível e
possante — ele pesava quase cinqüenta quilos agora — e pensavam que
fôssemos idiotas por confiar nele em relação a um bebê indefeso. Minha
mãe batia firme nessa tecla e não abria mão de expressar sua opinião a
respeito. Ela se contorcia ao ver Marley lamber o seu neto:
— Vocês sabem onde ele já passou essa língua? — ela
perguntava desgostosa.
Ela nos prevenia soturnamente que nunca deveríamos deixar um
cachorro e um bebê sozinhos num mesmo quarto. Seu instinto
predatório ancestral poderia aflorar sem prévio aviso. Se fosse por ela,
haveria um muro de concreto permanente entre Marley e Patrick.
Um dia, durante uma de suas visitas, ela gritou da sala de estar:
— John, corra aqui, rápido! O cachorro está atacando o bebê!
Eu saí correndo do quarto, ainda meio vestido, apenas para ver
Patrick movendo-se alegremente para a frente e para trás em seu
balancinho, e Marley deitado debaixo dele. Realmente, o cão estava
abocanhando o bebê, mas não do modo terrível como minha apavorada
mãe imaginara. Marley havia se posicionado atrás do balanço, com a
cabeça na direção do traseiro de Patrick, preso dentro do assento. Cada
vez que o bumbum de fralda do Patrick se aproximava dele, Marley
empurrava-o com a boca para a outro direção. Patrick gritava de
alegria.
— Ah, mãe, isso não é nada! — eu disse. — Marley só adora as
fraldas dele.
Jenny e eu estabelecemos uma rotina. À noite, ela se levantava a
cada três ou quatro horas para amamentar Patrick, e eu lhe dava uma
mamadeira às seis da manhã para que ela pudesse continuar
dormindo. Meio sonolento, eu o apanhava do berço, mudava a fralda,
e preparava uma mamadeira para ele. Depois, o conforto: eu me
sentava na varanda de trás com seu corpinho aquecido acomodado
em cima da minha barriga enquanto ele devorava a mamadeira. Em
outras, eu aproximava meu rosto do alto de sua cabeça e dormia
enquanto ele mamava. Às vezes, eu ouvia o rádio e via o céu
amanhecendo, passando de violeta, a rosa e azul. Depois de alimentá-lo
e fazê-lo arrotar, nós nos vestíamos, eu assobiava chamando por
Marley, e íamos caminhar junto à arrebentação. Compramos um
carrinho de bebê especial com três imensas rodas de bicicleta que
permitia que o levássemos a qualquer parte, incluindo passar por areia
e meio-fios. Nós deveríamos fazer um belo trio toda manhã, Marley
seguindo na frente, conduzindo-nos como um cão-guia, eu atrás,
protegendo os dois, e Patrick no meio, agitando os bracinhos no ar como
um guarda de trânsito. Quando entrávamos de novo em casa, Jenny já
estaria de pé e teria feito o café. Colocávamos Patrick em seu cadeirão,
servíamos-lhe cereais em sua bandeja, que Marley roubava no instante
em que olhávamos para o outro lado, pondo sua cabeça ao lado da
bandeja, e usando a língua para pescá-los um a um. Roubando comida
de um bebê, pensávamos, aonde ele vai parar? Mas Patrick parecia se
divertir bastante com essa rotina, e logo aprendeu a derrubar os flocos
de milho no chão para poder ver Marley comendo. Patrick também
descobriu que se derrubasse o cereal no colo, Marley poria sua cabeça
sob a bandeja e cutucaria a barriga de Patrick para tentar pegar o
alimento caído, fazendo-o gargalhar.
Nós descobrimos que a paternidade nos tinha feito bem.
Acostumamo-nos ao seu ritmo, comemorávamos suas pequenas alegrias,
sorríamos diante de suas frustrações, sabendo que até mesmo os maus
dias logo seriam guardados como boas lembranças. Tínhamos tudo que
desejávamos. Tínhamos nosso precioso bebê. Tínhamos nosso cão
cabeçudo. Tínhamos nossa casinha perto do mar. E claro, também
tínhamos um ao outro. Naquele mês de novembro, meu jornal me
promoveu ao cargo de colunista, uma posição invejada que me deu o
espaço próprio na primeira página três vezes por semana para falar
sobre o que eu quisesse. A vida estava boa. Quando Patrick fez nove
meses de idade, Jenny perguntou sutilmente quando começaríamos a
pensar em ter outro bebê.
— Oh, meu Deus, eu não sei! — respondi.
Sempre dissemos que gostaríamos de ter mais de um, mas eu não
havia pensado em termos de tempo. Para repetir tudo o que havíamos
acabado de passar parecia melhor não nos apressarmos.
— Acho que você poderia deixar de tomar anticoncepcionais
novamente e ver o que acontece — sugeri.
— Ah — respondeu Jenny —, o velho método de planejamento
familiar Que será, será...
— Ei, não tripudie — respondi. — Funcionou da primeira vez.
Então, foi o que fizemos. Imaginamos que se a concepção
acontecesse em qualquer mês do ano seguinte, daria tempo
suficiente. Aos fazer as contas, Jenny disse:
— Vamos imaginar mais seis meses para eu ficar grávida e depois
mais nove meses para o nascimento. Isso vai dar uns dois anos de
diferença entre eles.
Parecia bom para mim. Dois anos seriam tempo suficiente. Dois
anos seriam quase uma eternidade. Dois anos seriam quase irreais.
Agora que já havia provado ser capaz de cumprir o papel masculino de
fecundar uma mulher, eu não me sentia mais pressionado. Sem
preocupação, sem estresse. O que tiver de acontecer, acontecerá.
Uma semana depois, Jenny estava grávida.
Capítulo 13
Um grito na noite
Com outro bebê crescendo no ventre, os estranhos desejos
noturnos de Jenny voltaram. Uma noite ela queria uma lata de soda,
na outra, uma fruta exótica.
— Temos alguma barra de chocolate com castanhas em casa? —
ela me perguntou certa vez um pouco antes da meia-noite.
Parecia que eu teria de sair novamente até a loja de
conveniência 24 horas mais próxima. Assobiei para chamar Marley,
prendi a guia em sua coleira, e parti até a esquina. No estacionamento,
uma jovem com cabelos louros tingidos, batom cintilante, e os saltos
mais altos que eu já vira, começou a conversar conosco:
— Olha que gracinha! — ela cantarolou. — Oi, cachorrinho, qual
é o seu nome, queridinho?
Marley, evidente, estava mais do que feliz em começar uma nova
amizade e eu o puxei para bem próximo de mim para que ele não
babasse em sua minissaia violeta e seu tope branco.
— Você só quer me beijar, benzinho, não é? — ela disse,
estalando os lábios num beijo.
Enquanto conversávamos, imaginei o que esta mulher atraente
estaria fazendo sozinha em uma quadra de estacionamento junto à Dixie
Highway a esta hora. Ela não parecia estar de carro. Ela não parecia estar
ali para comprar algo da loja. Ela estava apenas ali, recepcionando
alegremente estranhos e seus cachorros no estacionamento assim que
chegavam. Por que ela estava sendo tão gentil? Mulheres bonitas nunca
são gentis, pelo menos não com homens estranhos em estacionamentos
vazios à meia-noite. Um carro parou próximo de nós e um senhor baixou
o vidro da janela:
—Você é Heather? — ele perguntou.
Ela me lançou um sorriso, como se dissesse: “Fazemos o que
podemos para pagar o aluguel”.
—Preciso ir — ela exclamou, entrando no carro. — Tchau,
cachorrinho!
—Não se apaixone muito, Marley — eu disse, enquanto eles se
afastavam. — Você não tem cacife para bancá-la.
Algumas semanas depois, às dez horas da manhã de um domingo,
fui com Marley até a mesma loja comprar o Miami Herald e novamente
fomos abordados, desta vez por duas jovens, na verdade, adolescentes,
que pareciam ansiosas. Diferente da primeira mulher que encontramos,
elas não eram tão bonitas e não estavam bem vestidas. Ambas pareciam
desesperadas por uma tragada de crack.
—Haroldo? — uma delas me perguntou.
—Não — respondi, mas o que eu pensei foi: “Você realmente
acha que um cara vai aparecer atrás de sexo e trazer o seu labrador com
ele?”.
Que tipo de pervertido essas duas pensaram que eu fosse?
Enquanto eu pegava o jornal no estande em frente à loja, um carro
parou — Haroldo, pensei — e as garotas embarcaram nele.
Eu não era o único a testemunhar o aumento do mercado de
prostituição ao longo da Dixie Highway. Numa de suas visitas, minha
irmã mais velha, vestida como uma freira, saiu para caminhar ao meiodia
e foi abordada duas vezes por caras suspeitos que passavam de carro.
Outro amigo chegou nossa casa para dizer que uma mulher acabara de
lhe mostrar os seios quando ele passou dirigindo por ela, mas não que
ele se importasse com isso.
Em resposta às reclamações dos moradores, o prefeito prometeu
expor publicamente quem fosse preso ao pegar moças na rua, e a polícia
começou a patrulhar a área, colocando policiais femininas disfarçadas na
esquina à espera de pretensos clientes para prendê-los em flagrante. As
policiais eram as prostitutas mais mal-ajambradas que já vi — pense em
J. Edgar Hoover travestido de mulher — mas isso não impediu os homens
de parar para tentar pegá-las. Um desses flagrantes aconteceu na calçada
em frente de casa — com uma equipe de reportagem de TV na cola.
Se fossem apenas as prostitutas e seus clientes, estaríamos
sossegados, mas a atividade criminosa não parava aí. Nossa vizinhança
parecia se tornar cada vez mais perigosa. Em uma de nossas caminhadas
junto ao mar, Jenny, sentindo-se enjoada demais para continuar
conosco, decidiu voltar para casa sozinha, enquanto eu seguiria o
passeio com Patrick e Marley. Ao entrar em uma transversal, ela ouviu
um carro acompanhá-la. Ela pensou que fosse um vizinho querendo
cumprimentá-la, ou alguém procurando informação. Quando ela se virou
para olhar para o carro, o motorista estava nu e se masturbando.
Depois de ejacular, ele dirigiu rapidamente em marcha à ré para
esconder a placa de licença do carro.
Quando Patrick estava com quase um ano de idade, aconteceu
outro assassinato em nosso quarteirão. Como a Sra. Nedermier, a vítima
foi uma senhora que vivia sozinha. Ela morava na primeira casa depois
de dobrar na Churchill Road vindo da Dixie Highway, exatamente atrás
da lavanderia 24 horas, e eu somente a conhecera de vista. Ao contrário
da morte da Sra. Nedermier, esse crime não se restringiu a uma questão
caseira. A vítima foi escolhida ao acaso, e o assassino era um estranho
que entrou furtivamente, enquanto ela pendurava a roupa no quintal
num sábado à tarde. Quando ela voltou, ele amarrou seus pulsos com o
fio do telefone e jogou-a debaixo de um colchão, enquanto revirava a casa
atrás de dinheiro. Ele fugiu levando seu saque, enquanto minha frágil
vizinha sufocou sob o peso do colchão. A polícia rapidamente prendeu
um suspeito que fora visto zanzando na lavanderia. Quando esvaziaram
seus bolsos, descobriram que tudo que ele roubara somava dezesseis
dólares e algumas moedas. O preço de uma vida humana.
O crime crescente à nossa volta fez com que nos sentíssemos
gratos pela presença assustadora de Marley em casa. E daí se na
verdade ele era um cão pacífico, cuja estratégia mais agressiva era
conhecida como o Ataque de Baba? E daí se sua resposta imediata à
chegada de qualquer pessoa estranha era agarrar uma bola de tênis
esperando ter alguém novo para jogar bola com ele? Os intrusos não
precisavam saber disso. Quando estranhos batiam, não trancávamos
mais Marley antes de atender à porta. Deixamos de dizer que ele era
inofensivo. Ao contrário, deixávamos escapar alguns alertas dúbios
como “ultimamente ele está se tornando imprevisível” e “não sei dizer
quanto esta tela da porta ainda vai agüentar com as investidas dele”.
Tínhamos um bebê agora e outro a caminho. Não estávamos mais
tão despreocupados em termos de segurança pessoal como antes. Jenny
e eu sempre especulávamos o que Marley faria se alguém tentasse
machucar o bebê ou a nós. Eu imaginava que ele apenas começaria a latir
e arfar. Jenny tinha mais confiança nele. Ela estava convencida de que
sua lealdade especialmente a Patrick, romperia em um irresistível
impulso de proteção primai em relação a nós.
— De jeito nenhum — eu disse. — Ele correria para cheirar a
virilha do bandido e ficaria tudo por isso mesmo.
De qualquer forma, sabíamos que ele apavorava as pessoas. E isso era
bom para nós. A sua presença fazia diferença entre nos sentirmos
vulneráveis ou mais seguros em casa. Mesmo continuando a debater sua
eficiência como nosso protetor, dormíamos melhor sabendo que ele estava
do nosso lado. Então, uma noite, ele acabou com nossa discussão de uma
vez por todas.
Estávamos no mês de outubro e o tempo ainda estava firme.
Com a noite quente, havíamos ligado o ar-condicionado e as janelas
estavam fechadas. Depois do jornal das onze da noite, deixei Marley sair
para fazer seu pipi, olhei para ver se Patrick estava bem em seu berço,
apaguei as luzes, e deitei na cama ao lado de Jenny, que já dormia a
sono solto. Marley, como sempre costumava fazer, esborrachou-se no
chão ao meu lado, soltando um longo suspiro. Eu estava começando a
dormir quando ouvi — um guincho, um som agudo e demorado.
Despertei imediatamente, e Marley também. Ele congelou ao lado da
cama, no meio do escuro, as orelhas em pé. Ouvimos novamente,
atravessando as janelas fechadas, mais alto do que o barulho do arcondicionado.
Um grito. Um grito de mulher, alto e claro. Pensei
primeiro que fossem adolescentes brincando na rua, que não era muito
incomum. Mas este não era um grito acompanhado de gargalhadas.
Havia um desespero nele, um terror verdadeiro, e comecei a suspeitar
que alguém estivesse em perigo.
— Venha, rapaz — sussurrei, escorregando para fora da cama.
—Não vá lá fora — disse Jenny ao meu lado no escuro.
Eu não vira que ela havia acordado e ouvido também.
—Chame a polícia — pedi a ela.
—Vou tomar cuidado.
Segurando Marley pela ponta de seu enforcador, saí na
varanda de entrada, de shorts, a tempo de ver alguém escapulindo rua
abaixo em direção ao mar. Alguém gritou novamente, do outro lado. Do
lado de fora, sem o abafamento das paredes e dos vidros, o grito da
mulher encheu o ar da noite com uma rapidez e agudeza
surpreendentes, como somente ouvira em filmes de terror. Outras
luzes de varanda começaram a acender. Os dois rapazes que alugavam
uma casa do outro lado irromperam na rua só de regata e cueca e
correram em direção aos gritos. Segui com cautela à distância, com
Marley junto de mim. Eu os vi descer algumas casas à frente e, alguns
segundos depois, voltaram às pressas vindo em minha direção.
— Vá acudir a moça — gritou um deles, apontando para trás. —
Ela foi esfaqueada.
— Vamos atrás do cara! — o outro gritou, e saíram a toda,
descalços, pela rua, na direção em que a pessoa fugira. Minha vizinha
Barry, uma mulher solteira e destemida que comprara e restaurara o
bangalô ao lado da casa da Sra. Nedermier, entrou em seu carro e
juntou-se à perseguição.
Soltei a coleira de Marley e corri em direção aos gritos. Três casas
depois, encontrei minha vizinha de dezessete anos sozinha na entrada da
garagem em frente à sua casa, dobrada ao meio, chorando
convulsivamente. Ela apertava as costelas, e sob suas mãos pude ver uma
mancha de sangue em sua blusa. Uma garota magra e bonita, de cabelo
louro-claro, curvada para a frente. Ela morava com a mãe que era
divorciada, uma mulher muito simpática, que trabalhava como
enfermeira em um plantão noturno. Eu havia conversado com a mãe dela
algumas vezes, mas apenas conhecia a filha de vista. Eu não sabia
sequer o nome dela.
— Ele me disse para não gritar, senão me esfaqueava — ela
urrou, chorando.
Ela cuspia as palavras, respirando com dificuldade.
— Mas eu gritei. Eu gritei e ele me esfaqueou.
Como se eu não acreditasse nela, levantou a blusa para me
mostrar a ferida em sua caixa torácica.
— Eu estava sentada no carro com o rádio ligado. Ele saiu do
nada.
Coloquei minha mão sobre o seu braço para acalmá-la e, ao fazer
isso, seus joelhos se dobraram. Ela caiu sobre mim, dobrando as pernas
para a frente. Eu a deitei no asfalto e coloquei-a sobre meu colo. Suas
palavras saíam mais devagar agora, enquanto lutava para manter os
olhos abertos.
— Ele me disse para não gritar — ela repetiu. — Ele colocou a
mão sobre minha boca e me disse para não gritar.
— Você fez o que devia — respondi. — Você o espantou daqui.
Notei que ela estava entrando em choque e eu não sabia o que
fazer para ajudá-la. “Venha, ambulância. Onde estão vocês?” Eu a
consolei do único modo que eu sabia, como se consolasse meu próprio
filho, alisando seu cabelo, colando a palma da minha mão sobre o seu
rosto, secando suas lágrimas. A medida que ela ficava mais fraca,
continuava dizendo a ela para resistir, que a ajuda estava chegando.
— Você vai ficar bem — eu afirmei, mas nem eu tinha certeza
disso.
Sua pele estava ficando acinzentada. Ficamos sentados sozinhos
na rua pelo que me pareceram horas, mas, na verdade, de acordo com
o relatório da polícia, foram cerca de três minutos. Somente depois me
lembrei de verificar onde Marley estava. Quando olhei para a frente,
ali estava ele, a três metros de nós, olhando para a rua, numa posição
de ataque que eu nunca vira antes. Seus músculos do pescoço estavam
levantados; sua mandíbula estava cerrada; o pêlo entre as omoplatas,
erguidos. Ele estava olhando atentamente para a rua e parecia pronto
para saltar. Percebi, nesse momento, que Jenny estava certa. Se o assaltante
armado voltasse, ele teria de passar pelo meu cão antes. Instantaneamente
eu soube — sem sombra de dúvida — que Marley lutaria
com ele até a morte antes de deixá-lo passar. Eu estava de qualquer
forma emocionado, segurando esta moça, sem saber se ela morreria em
meus braços. Ver Marley naquela postura singular de cão de guarda,
tão majestoso e destemido, fez meus olhos se encherem de lágrimas. O
melhor amigo do homem? Com certeza ele era.
— Estou com você — eu disse à moça.
Mas o que eu queria dizer, o que eu deveria ter dito, era que nós
estávamos com ela: Marley e eu.
— A polícia está chegando — eu acrescentei. — Agüente firme,
por favor, agüente firme aí.
Antes de fechar os olhos, ela sussurrou:
—Meu nome é Lisa.
—Sou John — respondi.
Parecia ridículo nos apresentarmos nessas circunstâncias como
se estivéssemos numa festa de bairro. Quase ri diante do absurdo da
situação. Em vez disso, puxei uma mecha de seu cabelo para trás da
orelha e lhe disse:
— Você está segura agora, Lisa.
Como um anjo enviado dos céus, um policial veio subindo a
calçada. Eu assobiei para Marley e gritei:
— Está tudo bem, rapaz. Ele é do bem.
Ele reagiu como se, com este assobio, eu tivesse quebrado algum
tipo de transe. Meu companheiro bem-humorado e pateta estava de
volta, correndo em círculos, arfando, tentando nos cheirar. Não
importa que instinto ancestral emergira das sombras de sua psique,
acabou retornando aos seus abismos. Em seguida, chegaram mais
policiais, e logo uma equipe de salvamento chegou em uma ambulância,
com uma maca e pedaços de gaze esterilizada. Eu abri caminho, contei
à polícia o que eu sabia, e voltei para casa, com Marley saltitando à
minha frente.
Jenny me encontrou à porta e ficamos juntos na janela da frente,
observando o que acontecia na rua. Nossa vizinhança parecia um
set de seriado policial de televisão. Luzes estroboscópicas vermelhas
atravessavam as janelas. Um helicóptero da polícia passou por cima de
nós, lançando seu facho de luz sobre ruas e alamedas circunvizinhas.
Os policiais fecharam a rua com fitas de isolamento e revistaram o
bairro a pé. seus esforços foram em vão: nenhum suspeito foi preso
nem determinaram o motivo do ataque. Meus vizinhos que saíram em
perseguição do bandido depois me relataram que nem chegaram a vêlo
de longe. Jenny e eu acabamos voltando para cama, onde
continuamos acordados por muito tempo.
— Você teria ficado orgulhosa de ver Marley — eu contei a ela.
— Foi tão estranho. De algum modo, ele sabia que algo sério estava
acontecendo. Ele simplesmente sabia. Ele pressentiu o perigo, e agiu
como um cão completamente diferente.
— Eu disse isso a você — ela arrematou.
E ela realmente dissera.
Quanto o helicóptero da polícia cortava os céus acima de nós,
Jenny virou-se para o seu lado da cama e, antes de adormecer, disse:
— Apenas mais uma noite agitada na vizinhança.
Eu coloquei a mão para fora da cama e procurei Marley deitado ao
meu lado, no chão, no escuro.
— Você se comportou muito bem hoje à noite, rapagão —
sussurrei, coçando suas orelhas. — Você fez por merecer sua ração.
Com minha mão em suas costas, voltei a adormecer.
Era um sintoma da apatia do sul da Flórida em relação à
criminalidade a notícia de uma adolescente ter sido esfaqueada por
estar sentada no carro em frente à sua casa merecer apenas seis frases
no jornal na manhã seguinte. O relato do Sun-Sentinel sobre o crime
entrou na coluna de notas rápidas na página 3B sob o subtítulo
“Homem ataca jovem”.
O relato não mencionava a mim ou Marley, ou aos rapazes seminus
do outro lado da rua que perseguiram o assaltante seminus. Não
mencionou Barry, que o perseguiu em seu carro. Ou todos os vizinhos do
quarteirão que acenderam as luzes de suas varandas e chamaram a
polícia. Na onda de crimes violentos do sul da Flórida, o drama vivido em
nossa vizinhança era apenas um detalhe. Não houve morte, não houve
reféns, não foi importante.
A faca perfurou o pulmão de Lisa, e ela passou cinco dias
hospitalizada e várias semanas recuperando-se em casa. Sua mãe
manteve os vizinhos informados sobre sua recuperação, mas ninguém
mais a viu. Eu me preocupei com os danos emocionais que o ataque
poderia ter deixado. Ela voltaria a se sentir segura para sair de casa?
Nossas vidas se aproximaram por apenas três minutos, mas me senti
como um irmão mais velho vendo-a ali ferida. Eu queria respeitar sua
privacidade, mas também queria vê-la para ter certeza de que ela ficaria
bem.
Enquanto eu lavava os carros na calçada num sábado, com
Marley preso a uma corrente perto de mim, olhei para a frente e lá
estava ela. Mais bonita do que conseguia me lembrar dela. Bronzeada,
forte, atlética — parecendo inteira novamente. Ela sorriu e perguntou:
—Lembra de mim?
—Vamos ver... — respondi, fingindo esquecimento. — Você me
parece familiar. Você não estava em pé na minha frente no show de
Tom Petty e não queria se sentar?
Ela riu e eu lhe perguntei:
— Como está se sentindo, Lisa?
— Estou bem — ela respondeu. — Quase normal.
— Você parece ótima — respondi. — Um pouco melhor do que
da última vez que a vi.
— Ah, sim — ela disse, e baixou os olhos. — Que noite aquela!
— Que noite! — repeti.
Foi tudo que comentamos a respeito do que acontecera. Ela me
falou do hospital, dos médicos, do investigador que a interrogou, das
inúmeras cestas de frutas que recebeu, o tédio de ter de ficar em casa
sem poder sair enquanto se recuperava. Mas evitou comentar o ataque
que sofrerá, e eu fiz o mesmo. Algumas coisas não precisam ser ditas.
Lisa me fez companhia por um longo tempo naquela tarde,
acompanhando minhas tarefas no quintal, brincando com Marley,
jogando conversa fora. Eu senti que havia alguma coisa que ela queria
me contar, mas não conseguia. Ela tinha dezessete anos. Eu não
esperava que ela conseguisse verbalizar o que queria. Nossas vidas
haviam se entroncado de forma inesperada, duas pessoas estranhas
unidas por um surto de inexplicável violência. Não houve tempo de nos
familiarizarmos como vizinhos comuns; não houve tempo para que
estabelecêssemos nossos limites. Num segundo, estávamos ali,
intimamente ligados num momento de crise, um pai em calções de
dormir, e uma adolescente com uma blusa encharcada de sangue,
abraçados a uma única esperança. Havia agora uma proximidade. Como
poderia deixar de haver? Havia também um desconforto, um ligeiro
constrangimento, por termos nos encontrado naquele momento sem
nenhuma barreira. As palavras não foram necessárias. Eu sabia que ela
se sentia grata por eu tê-la acudido. Eu sabia que ela aceitara meu
esforço em consolá-la, mesmo sem surtir nenhum efeito. Ela sabia que
eu me importara realmente com ela e estava ali para tentar ajudá-la.
Compartilhamos algo naquela noite, sentados no meio do asfalto — um
desses momentos breves de claridade que definem todos os demais ao
longo da vida — que nenhum de nós jamais esqueceria.
—Fico feliz que tenha vindo me ver — eu disse.
—Eu também fiquei — Lisa respondeu.
Quando ela se afastou, ela me deixou uma boa impressão. Ela era
forte. Era corajosa. Ela seguiria em frente. E, de fato, descobri, anos
mais tarde, quando soube que seguira carreira como apresentadora de
televisão, que conseguira vencer o seu destino.
Capítulo 14
Uma chegada prematura
No meio da bruma do sono, aos poucos, ouvi chamar meu
nome.
— John, John, acorde!
Era Jenny. Ela me sacudia com força.
— John, acho que o bebê está nascendo.
Apoiei-me rápido sobre o meu cotovelo e esfreguei os olhos.
Jenny estava deitada com os joelhos dobrados em direção ao peito.
— O bebê, o quê?
— Estou tendo contrações muito fortes — ela disse. — Estou
aqui deitada controlando o tempo. Precisamos chamar o Dr. Sherman.
Agora eu acordara completamente. O bebê estava nascendo? Eu
estava louco de ansiedade pelo nascimento do nosso segundo filho —
outro menino, já sabíamos pelo ultra-som. Mas o prazo, no entanto,
estava errado, muito errado. Jenny havia completado vinte e uma
semanas de gravidez, um pouco mais da metade do período de
gestação de quarenta semanas. Entre seus livros de bebês havia uma
série de fotografias de alta resolução mostrando o feto a cada semana
do desenvolvimento. Há poucos dias, tínhamos olhado o livro,
estudando as fotos tiradas na vigésima primeira semana, e nos
maravilhado como nosso bebê estava progredindo. Na vigésima
primeira semana o feto cabe na palma da mão. Pesa menos que 454
gramas. Seus olhos estão ainda fechados, seus dedos parecem pequenos
ramos frágeis, seus pulmões ainda não estão desenvolvidos o suficiente
para absorver o oxigênio do ar. Na vigésima primeira semana, o bebê
praticamente não tem chances de sobrevivência depois de nascer. As
chances de vida fora do útero são muito pequenas e a de sobreviver
sem sérios problemas permanentes de saúde menores ainda. Há uma
razão para a natureza manter os bebês na barriga por longos nove
meses. Na vigésima primeira semana, as chances de vida são muito
reduzidas.
— Provavelmente, não é nada sério — eu disse.
Mas eu podia sentir meu coração batendo forte enquanto ligava
pelo discador automático para o serviço de atendimento obstétrico. Dois
minutos depois, o Dr. Sherman chamou de volta, também com a voz
sonolenta.
— Podem ser gases — ele disse —, mas é melhor dar uma olhada.
Ele me disse para levar Jenny para o hospital imediatamente. Corri
pela casa, jogando peças de roupa numa sacola para ela, fazendo
mamadeiras, empacotando a sacola do bebê. Jenny ligou para sua
amiga e colega de trabalho Sandy, outra mãe recém-parida que morava a
poucos quarteirões de nós, e perguntou se poderia tomar conta de
Patrick. Marley já havia acordado também, espreguiçando-se, bocejando
e se sacudindo. Uma viagem no meio da noite!
— Desculpe, Marley — eu disse a ele, conduzindo-o até a
garagem, vendo uma expressão desapontada em seu rosto. — Você
tem de ficar para guardar o forte.
Puxei Patrick para fora do berço, prendi-o em seu assento do carro
sem acordá-lo e embrenhamo-nos na noite.
Na unidade de terapia neonatal intensiva do Hospital de Santa
Maria, as enfermeiras começaram a trabalhar rapidamente. Colocaram
uma camisola de hospital em Jenny e ligaram-na a um monitor que
media as contrações e os batimentos cardíacos do bebê. Jenny estava
tendo contrações a cada seis minutos. Não poderiam ser gases.
— Seu bebê está fazendo força para nascer — disse uma das
enfermeiras. — Vamos fazer todo o possível para que ele não saia ainda.
Pelo telefone, o Dr. Sherman pediu-lhes para checar se ela tinha
dilatação. Uma das enfermeiras introduziu um dedo com uma luva
obstétrica e informou que Jenny estava com dilatação de um
centímetro. Até eu sabia que isso não era bom sinal. Com dez
centímetros a cervical está totalmente dilatada, quando, em partos
normais, a mãe começa a fazer força para empurrar. A cada contração, o
corpo de Jenny empurrava-a cada vez mais próximo ao limite.
Dr. Sherman deu ordem para que pusessem nela uma sonda
intravenosa com solução fisiológica e uma injeção de Brethine, um
inibidor de trabalho de parto. As contrações cederam, mas, menos de
duas horas depois, voltaram violentas, precisando de uma segunda
aplicação e depois de uma terceira.
Nos doze dias seguintes, Jenny ficou hospitalizada, e foi
analisada por uma sucessão de perineonatologistas, presa a monitores
e sondas intravenosas. Eu tirei um período de férias e fiquei cuidando
de Patrick sozinho, fazendo o que podia para manter tudo funcionando
— a lavanderia, a alimentação, as refeições, as contas, o trabalho de
casa, o quintal. Ah, sim, e aquela outra criatura que vivia em nossa
casa. O pobre Marley, de repente, deixou de ser o segundo violino para
sequer fazer parte da orquestra. Mesmo ignorando-o, ele fez sua parte,
nunca me perdendo de vista. Ele me seguia fielmente, enquanto eu
corria pela casa com Patrick em um dos braços, passando o aspirador
de pó, colocando roupa para lavar ou fazendo o jantar. Eu passava pela
cozinha para colocar alguns pratos sujos na máquina de lavar louça, e
Marley me seguia, andava sempre atrás, uma meia dúzia de vezes
tentando achar o melhor lugar e, então, se atirava no chão. Tão logo ele
se acomodava, eu partia para a lavanderia para tirar a roupa da
máquina de lavar e colocá-las na secadora. Ele ia atrás de mim, andava
em círculos, arrumava as passadeiras com a pata até ficarem do seu
agrado, e deitava-se novamente, apenas para me ver sair mais uma vez
para ir até a sala para pegar os jornais. E assim tudo seguia. Se ele
tivesse sorte, eu parava o meu frenesi para fazer-lhe um carinho na
cabeça.
Certa noite, depois de fazer Patrick dormir, caí no sofá, exausto.
Marley se aproximou e derrubou a sua corda de morder em meu colo e
olhou para mim com aqueles imensos olhos castanhos.
— Ah, Marley — exclamei —, estou quebrado.
Ele pôs o focinho debaixo da corda e jogou-a para cima, esperando
que eu tentasse pegá-la, pronto para me derrubar.
— Desculpe, meu chapa — respondi. — Hoje à noite, não.
Ele arqueou as sobrancelhas e inclinou a cabeça. De súbito, sua
confortável rotina diária havia ido para o espaço. Sua dona estava
misteriosamente ausente, seu dono não estava para brincadeiras, e nada
parecia o mesmo. Ele soltou um pequeno resmungo, e percebi que
estava tentando entender: “Por que John não quer mais brincar comigo?
O que aconteceu com nossas caminhadas matinais? Por que não
lutamos mais no chão? Onde exatamente está Jenny, afinal? Ela não
fugiu com aquele dálmata do quarteirão aqui do lado, fugiu?”.
A vida não era totalmente tenebrosa para Marley. Vendo do
aspecto positivo, eu havia rapidamente voltado ao meu estilo de vida
pré-marital (leia-se relaxado). Pelo poder que me havia sido investido
como o único adulto da casa, suspendi a Lei Doméstica do Casal e
proclamei as antigas e banidas Leis do Solteiro para governar a todos.
Enquanto Jenny estivesse no hospital, as camisas seriam usadas duas
vezes, até três vezes se necessário, retirando as manchas de mostarda a
cada lavada; o leite poderia ser bebido direto da caixinha, e os assentos
de banheiro ficariam permanentemente levantados a não ser que se fosse
sentar neles. Para o imenso prazer de Marley, instituí portas de
banheiro permanentemente abertas. Afinal, havia só homens em casa.
Isto deu a Marley ainda uma nova oportunidade de convivência em um
espaço fechado. A partir daí, somente faria sentido se eu o deixasse
beber a água da torneira da banheira. Jenny ficaria horrorizada, mas do
meu ponto de vista, era melhor que beber do vaso sanitário. Agora que
a Política do Assento em Pé estava consolidada (e, portanto, por
definição, a Política da Tampa em Pé também), eu precisava oferecer a
Marley uma alternativa viável para a água dentro daquela porcelana
atraente que implorava que ele brincasse de submarino com o seu
focinho.
Passei a deixar um filete de água escorrendo da torneira da
banheira enquanto eu estava no banheiro, assim Marley poderia beber
um pouco de água fresca. Ele não se sentiria mais emocionado se eu
tivesse construído para ele uma réplica da Montanha de Água. Ele torcia
sua cabeça debaixo da torneira e bebia, o rabo batendo na pia atrás dele.
Sua sede era infinita, e eu me convenci que ele foi um camelo em outra
vida. Logo descobri que eu criara um monstro da banheira. Em
seguida, Marley começou a ir ao banheiro sozinho e ficava parado lá
dentro, olhando fixamente para a torneira, lambendo qualquer gota que
caísse, tocando a maçaneta da torneira com seu nariz, até que eu não
suportasse mais e viesse abri-la. De repente, a água da sua vasilha era
pouco para ele.
O passo seguinte em nossa barbarização veio quando eu estava no
chuveiro. Marley imaginou que poderia pôr sua cabeça para dentro da
cortina do boxe e tomar, não um filete de água, mas uma cachoeira
inteira. Eu estava me ensaboando e inesperadamente, ele meteu a sua
cabeçorra e começou a beber a água do chuveiro.
— Apenas não conte nada para a mamãe — eu disse.
Tentei enganar Jenny dizendo que tinha tudo sob controle, sem o
menor esforço.
— Ah, estamos todos bem — eu disse a ela e, então, virando-me
para Patrick, eu perguntava —, não é, companheiro?
Ao que ele respondia, como sempre:
— Dada!
E depois, apontando para o ventilador de teto, disse:
— Fannnn!
Ela não se deixou enganar. Certo dia, quando cheguei com Patrick
para fazer nossa visita diária, ela olhou para nós sem acreditar, e
perguntou:
—Em nome de Deus, o que você fez com ele?
—O que quer dizer “o que eu fiz com ele”? — respondi. — Ele
está ótimo. Você está ótimo, não está?
—Dada! Fannnn!
—A roupa dele — ela disse. — O que é...?
Somente então que reparei. Algo estava errado com o macacão.
Suas perninhas gordinhas, eu percebera agora, estavam apertadas
dentro dos buracos por onde teriam de passar os braços, que estavam
tão esganadas que deveria estar cortando a circulação dele. O
colarinho estava entre suas pernas. No alto, a cabeça de Patrick passara
pela abertura desabotoada que fica embaixo, e seus braços estavam
perdidos no meio das perninhas do macacão. Estava uma beleza.
—Seu tonto — ela disse. — Você colocou o macacão nele de
cabeça para baixo.
—Essa é a sua opinião — eu repliquei.
Mas o jogo terminara. Jenny começou a fazer ligações da cama do
hospital e, dois dias depois, minha doce e querida tia Anita, uma
enfermeira aposentada que veio da Irlanda para a América quando era
adolescente, e hoje vivia do outro lado do Estado, apareceu por
encanto, de mala na mão, e começou alegremente a restaurar a ordem
no recinto. As Leis do Solteiro foram banidas para sempre.
Quando os médicos finalmente deram alta a Jenny, fizeram as mais
rígidas recomendações. Se ela quisesse ter um bebê saudável, deveria
permanecer na cama o maior tempo possível. Ela só poderia se levantar
para ir ao banheiro. Tomaria uma rápida ducha de chuveiro por dia, e
depois teria de voltar para a cama. Sem cozinhar, sem mudar fraldas,
sem pegar a correspondência do lado de fora, sem levantar nada mais
pesado do que uma escova de dentes — e isso significaria o seu filho,
uma ordem que quase acabou com ela. Repouso absoluto, sem qualquer
exceção. O trabalho dos médicos interrompeu o parto prematuro; seu
objetivo agora era mantê-lo assim pelas próximas doze semanas, no
mínimo. Então o bebê teria trinta e cinco semanas de gestação. Ainda
estaria pequeno, mas completamente desenvolvido e capaz de nascer
normalmente. Isso significava manter Jenny congelada em cima da
cama. Tia Anita, que Deus abençoe sua alma caridosa, resolveu ficar até
o fim. Marley estava ansioso para ter seu novo companheiro de
brincadeiras. Logo ele conseguiu convencer Tia Anita a abrir a torneira
da banheira para ele.
Uma técnica de enfermagem do hospital veio até nossa casa e
inseriu um cateter na coxa de Jenny; ligou este a uma pequena bomba
acionada por uma bateria amarrada à perna de Jenny, que ministrava
um fluxo contínuo de drogas inibidoras de parto em sua corrente
sangüínea. Como se isso não bastasse, conectou Jenny a um sistema
de monitoração que parecia um instrumento de tortura — uma ampola
de sucção gigante presa a um emaranhado de fios que se conectavam
ao telefone. A ampola de sucção estava presa à barriga de Jenny com
um fio elástico e registrava o batimento cardíaco do bebê e qualquer
ocorrência de contração, enviando-os por meio do telefone três vezes
por dia para uma enfermeira que verificaria o menor índice de alteração.
Corri até a livraria e gastei uma nota em livros e revistas, que Jenny
devorou nos três primeiros dias. Ela estava tentando manter o moral
alto, mas o tédio e a incerteza sobre a saúde de se filho conspiravam
para deprimi-la. O pior de tudo, ela era uma mãe que tinha um filho de
quinze meses de idade e não poderia carregá-lo no colo, acudir,
alimentá-lo quando sentisse fome, banhá-lo quando estivesse sujo,
acolhê-lo e beijá-lo quando estivesse triste. Eu o colocava sobre ela na
cama, e ele puxava seus cabelos e colocava os dedos em sua boca. Ele
apontava para as pás do ventilador acima da cama e dizia:
— Mamã! Fannnn!
Isso a fazia sorrir, mas não era a mesma coisa. Ela estava, aos
poucos enlouquecendo.
Sua companhia constante ao longo de tudo isso, claro, era Marley.
Ele acampou no chão ao lado dela, cercando-se de uma coleção de
brinquedos e ossos para ele morder no caso de Jenny mudar de idéia e
decidir sair da cama para brincar de cabo-de-guerra com ele. Ali ele
montou sua vigília, dia e noite. Eu voltava para casa e encontrava tia
Anita na cozinha preparando o jantar, Patrick em seu assento de
balanço ao lado dela. Então, eu entrava no quarto para ver Marley ao
lado da cama, o queixo sobre o colchão, abanando o rabo, o nariz
apoiado no pescoço de Jenny, enquanto ela lia ou dormia, ou
simplesmente olhava para o teto com o braço sobre as costas dele.
Risquei todos os dias que passavam no calendário para ajudá-la a marcar
o tempo, mas apenas servia para mostrar quão lentamente escorriam os
minutos e as horas. Algumas pessoas se contentam em passar a vida
deitadas; Jenny não era uma delas. Ela nasceu para agitar, e a preguiça
forçada a fazia naufragar cada dia um pouco mais. Ela era como um
marinheiro preso numa calmaria, aguardando, desesperado, o menor
sinal de brisa, para enfunar as velas e permitir que a viagem
continuasse. Tentei encorajá-la, dizendo-lhe coisas como “Daqui a um
ano vamos olhar para esta situação e dar risada”, mas eu podia ver que
algo dentro dela se distanciava. Em alguns dias, seus olhos se perdiam
no infinito.
Quando faltava ainda mais um mês de repouso pela frente, tia
Anita fez as malas e se mandou. Ela ficou o máximo que pôde, na
verdade, prolongando sua estada várias vezes, mas tinha um marido em
casa que ela temia, mesmo dizendo isso de brincadeira, que estivesse
regredindo à idade das cavernas, depois de ter sobrevivido sozinho à
custa de comida congelada e TV Esporte. Mais uma vez, estávamos
entregues à nossa própria sorte.
Fiz o melhor que pude para manter o curso do navio, levantando
ao amanhecer para dar banho e vestir Patrick, dar-lhe seu cereal e purê
de cenoura, e levá-lo com Marley para, ao menos, uma breve volta a pé.
Então eu deixaria Patrick na casa de Sandy para passar o dia, enquanto
eu trabalhava, e pegava-o novamente no final da tarde. Eu voltava para
casa na hora do almoço para preparar comida para Jenny, trazer-lhe sua
correspondência — o ponto alto do seu dia —, jogar varetas para Marley
pegar, e arrumar a casa que, aos poucos, estava adquirindo um aspecto
de negligência. A grama precisava ser cortada, empilhavam-se as roupas
para lavar, e a tela na varanda de trás continuava sem conserto depois
de Marley tê-la atravessado, como um desenho animado, ao perseguir
um esquilo. Por várias semanas, a tela rompida balançou ao vento,
transformando-se numa autêntica passagem de cachorro, que permitia
que Marley entrasse e saísse à vontade entre o quintal e a casa durante
as longas horas em que ficava sozinho com Jenny deitada na cama.
— Vou consertá-la — eu prometia. — Está na lista de coisas para
fazer.
Mas eu via que ela não me levava a sério. Ela precisou ter muito
controle para não saltar da cama e colocar sua casa de volta no lugar.
Eu fazia compras no supermercado à noite, depois que Patrick dormia,
muitas vezes passeando pelos corredores à meia-noite. Sobrevivemos
comendo comidas prontas, sucrilhos, e panelas de macarrão. O diário
que eu mantivera fielmente por anos subitamente foi abandonado.
Simplesmente não havia mais tempo, muito menos energia. Na última
anotação rápida que fiz, escrevi apenas: “A vida está muito complicada
agora”.
Então, um dia, ao nos aproximar da trigésima-quinta semana de
gravidez de Jenny, a técnica de enfermagem do hospital bateu à nossa
porta e disse:
— Parabéns, menina, você conseguiu. Está livre do repouso a
partir de agora.
Ela desconectou a bomba de remédio, retirou o cateter, embalou o
monitor fetal, e passou a dar as prescrições médicas. Jenny estaria livre
para retomar sua vida normal. Sem restrições. Sem medicações.
Poderíamos até transar novamente. O bebê estava perfeitamente viável
agora. O trabalho de parto começaria quando fosse a hora.
— Divirta-se — ela disse. — Você merece.
Jenny levantou Patrick no ar, rolou com Marley no quintal,
desdobrou-se no trabalho doméstico. Naquela noite, comemoramos
indo a um restaurante indiano e assistindo a um espetáculo de comédia
num clube, local. No dia seguinte, nós três continuamos comemorando,
almoçando em um restaurante grego. Porém, antes dos pratos chegarem
à nossa mesa Jenny entrou em pleno trabalho de parto. As contrações
haviam começado na noite anterior quando ela comeu carneiro ao curry,
mas ela as ignorou. Ela não iria deixar algumas contrações
interromperem sua merecida noite fora. Agora cada contração quase a
dobrava ao meio. Corremos para casa, onde Sandy já estava aguardando
para levar Patrick e ficar de olho em Marley. Jenny ficou esperando no
carro, soltando sopros curtos para suportar a dor, enquanto eu
apanhava sua mala de hospital. Quando chegamos à maternidade e
entramos no quarto, Jenny já estava com sete centímetros de dilatação.
Menos de uma hora depois, eu segurava nosso filho recém-nascido nos
braços. Jenny contou todos seus dedinhos das mãos e dos pés. Seus
olhos estavam abertos e alertas, suas bochechas coradas.
— Você conseguiu — declarou o Dr. Sherman. — Ele é perfeito.
Conor Richard Grogan, 2,32kg, nasceu no dia dez de outubro de
1993. Eu estava tão eufórico que nem pensei duas vezes na cruel ironia
de que para este parto reservamos uma das suítes de luxo, porém mal
tivemos tempo de aproveitá-la. Se o nascimento tivesse ocorrido um
pouco mais rápido, Jenny teria dado à luz no estacionamento do posto
da Texaco. Nem tive tempo de me deitar na bicama do papai.
Considerando o que passamos para trazê-lo com segurança para
este mundo, pensamos que o nascimento do nosso filho seria a grande
notícia — mas não tão grande a ponto de fazer a mídia local vir até o
hospital. Debaixo da nossa janela, porém, havia uma bateria de carros
de televisão estacionados, com seus pratos de transmissão por satélite
apontando para o céu. Eu podia ver os repórteres com seus microfones
gravando em frente às câmeras.
—Ei, amor — eu disse —, os paparazzi vieram para fotografar
você.
Uma enfermeira que estava no quarto cuidando do bebê, disse:
—Você acredita? Donald Trump está no saguão de entrada!
— Donald Trump? — Jenny perguntou. — Eu não sabia que ele
iria ter um bebê.
O mega-empresário imobiliário causou sensação quando se
mudou para Palm Beach há alguns anos, estabelecendo-se na antiga
mansão de Marjorie Merriweather Post, a falecida herdeira do cereal. A
propriedade passou a se chamar Mar-a-Lago, e como sugere o nome, a
propriedade se estendia por dezessete acres do Oceano Atlântico à
Intracoastal Waterway e incluía um campo de golfe de nove buracos. Da
nossa rua podíamos olhar para o outro lado da rebentação e ver as
torres de influência mourisca da mansão de cinqüenta e oito quartos
acima das palmeiras. Os Trump e os Grogan eram praticamente
vizinhos.
Liguei a televisão e descobri que Donald e sua namorada Maria
Maples eram os orgulhosos pais de uma menina, Tiffany, que nasceu
não muito depois de Jenny ter dado à luz a Conor.
— Temos de convidá-los para brincar juntos — disse Jenny.
Olhamos pela janela enquanto as equipes de televisão se
movimentavam para filmar o casal Trump saindo do hospital com seu
novo bebê para voltar à sua propriedade. Maria sorria, tímida, segurando
seu recém-nascido para ser fotografado pelas câmeras; Donald acenava
e piscava o olho, todo orgulhoso.
— Eu me sinto ótimo! — ele disse aos jornalistas.
Em seguida, partiram numa limusine levada por seu motorista.
Na manhã seguinte, quando chegou a nossa vez de voltar para
casa, uma senhora aposentada muito simpática, que prestava serviços
voluntários ao hospital, conduziu Jenny e o bebê Conor pelo saguão, em
uma cadeira de rodas, passando pelas portas automáticas, até chegar a
céu aberto onde o sol lançava seus raios sobre nós. Não havia equipes
de câmeras, nem os carros com pratos de satélite, nem microfones,
nem reportagens ao vivo. Éramos apenas nós e nossa voluntária sênior.
Ninguém me perguntou, mas eu me sentia ótimo também. Donald
Trump não era o único estourando de orgulho de sua cria.
A voluntária esperou com Jenny e o bebê, enquanto eu
estacionava o carro junto ao meio-fio. Antes de prender meu filho recémnascido
no seu assento, eu o ergui no ar para que todo o mundo o visse,
se eles estivessem olhando e disse:
— Conor Grogan, você é tão especial quanto Tiffany Trump, e
nunca se esqueça disso!
Capítulo 15
Ultimato pós-parto
Estes deveriam ter sido os dias mais felizes de nossas vidas e, em
muitos aspectos, eles foram. Tínhamos dois filhos agora, um bebê de um
ano e outro recém-nascido, com apenas dezessete meses de diferença
entre eles. A alegria que eles nos trouxeram foi profunda. Embora tenha
persistido a melancolia que descera sobre Jenny quando ela se viu
obrigada a ficar em repouso. Em algumas semanas ela estava ótima,
lidando, despreocupada, com os desafios da responsabilidade de ter duas
crianças totalmente dependentes dela para tudo. Em outras, sem prévio
aviso, ela se tornava sombria e deprimida, fechada em si mesma, que
poderia levar dias para passar. Estávamos ambos exaustos e insones.
Patrick ainda acordava pelo menos uma vez no meio da noite, e Conor
chorava mais vezes para ser amamentado ou para suas fraldas serem
trocadas. Raramente tínhamos mais do que duas horas de sono
ininterrupto de cada vez. Algumas noites, ficávamos como zumbis,
passando um pelo outro sem dizer uma palavra, com os olhos extasiados,
Jenny com um bebê e eu com o outro. Acordávamos à meia-noite, às duas,
às três e meia e novamente às cinco. Então, o sol nascia e com ele vinha
um novo dia, trazendo novas esperanças e um cansaço físico ao retomar o
ciclo. Ouvíamos a voz doce, alegre e desperta de Patrick descendo pelo
corredor — Mama! Dada! Fannnn! — e por mais que quiséssemos pensar
de outra maneira, sabíamos que nosso sono, ou o que sobrara dele, teria
de ser adiado por mais um dia. Comecei a fazer um café mais forte, e
aparecer para trabalhar com camisas amassadas e gravatas manchadas de
papinha de bebê. Certa manhã, na redação, notei a jovem e atraente
assistente editorial olhando fixamente para mim. Lisonjeado, sorri para ela:
“Ei, posso ser o pai de dois filhos, mas as mulheres ainda reparam em mim”.
Então, ela disse:
— Sabe que está com uma etiqueta de ursinho grudada em seu
cabelo?
Para complicar o caos da falta de sono que se instalou em nossas vidas,
nosso novo bebê começou a nos deixar muito preocupados. Ainda abaixo
do peso, Conor não conseguia manter o leite que mamava em sua barriga.
Jenny estava determinada a amamentá-lo até que ficasse saudável e
robusto, e ele parecia não querer corresponder a essa expectativa. Ela o
amamentava e ele começava a sugar, esfomeado. Então, em seguida,
colocava tudo para fora. Ela o amamentava novamente; ele sugava
nervosamente e, logo depois, vomitava tudo de novo. Vômitos tornaram-se
uma recorrência diária em nossas vidas. A rotina se repetia, deixando Jenny
cada vez mais nervosa. Os médicos diagnosticaram um caso de refluxo e
encaminharam-nos a um especialista, que sedou nosso bebezinho, e
introduziu uma sonda em sua garganta para poder fazer uma endoscopia.
Conor acabou superando o mal e passou a ganhar peso normalmente, mas
por quatro longos meses fomos consumidos pela preocupação com o que
acontecia com ele. Jenny acumulava medo, estresse e frustração, tudo
exacerbado pela falta de sono, ao amamentá-lo quase ininterruptamente
para depois vê-lo expelir de volta todo o leite, sem nada que pudesse fazer.
— Eu me sinto tão mal — ela dizia. — Mães devem ser capazes de
dar aos seus bebês tudo que eles precisam.
Sua paciência estava curtíssima como eu nunca vira, e por causa
de nada — uma porta de armário aberta ou migalhas deixadas em cima
do balcão fariam com que estourasse.
A boa notícia é que Jenny jamais descontou sua ansiedade em
cima das crianças. De fato, ela cuidava dos dois com obsessivo cuidado e
paciência. Ela se derramava sobre eles. A má notícia é que ela passou a
dirigir sua frustração raiva a mim e ainda mais a Marley. Ela perdeu toda a
paciência com ele. Ele a desagradava em tudo, e tudo o que ele fazia estava
errado. Cada transgressão — e continuaram a haver muitas delas —
empurravam Jenny cada vez mais para o fim de sua paciência. Sem
perceber, Marley continuou agindo como sempre, com suas
excentricidades, suas confusões, e infinita ebulição. Eu comprei um
arbusto florido e plantei-o no jardim para comemorar o nascimento de
Conor; Marley arrancou-o pela raiz no mesmo dia e mastigou-o inteiro.
Eu finalmente consegui substituir a tela da porta da varanda que ele havia
rasgado e Marley, já acostumado com sua passagem de cachorro, em
seguida, furou-a novamente. Ele fugiu um dia e quando finalmente
retornou, trouxe um par de calcinhas nos dentes. Nem me importei.
Apesar dos tranqüilizantes que Jenny passou a lhe dar cada vez com
mais freqüência, mais por ela do que por ele, sua fobia a trovões tornava-se
a cada dia mais intensa e irracional. Agora qualquer chuva leve o deixava
em pânico. Se estivéssemos em casa, ele simplesmente grudava cm nossas
pernas e babava nervosamente em cima de nós. Se tivéssemos saído, ele
tentaria escapar do mesmo modo alucinado, cavando e se jogando contra
portas, paredes e linóleo. Quanto mais eu consertava, mais ele destruía.
Eu não conseguia acompanhá-lo. Eu deveria ficar furioso, mas Jenny já
estava suficientemente zangada por nós dois. Ao contrário, comecei
encobertá-lo. Se eu encontrasse um sapato, livro ou travesseiro mastigado,
escondia a prova antes que ela visse. Quando ele atravessava a casa, como
um touro em uma loja de porcelanas, eu o seguia, arrumando tapetes,
endireitando mesinhas de centro, e limpando a saliva que ele borrifava nas
paredes. Antes que Jenny descobrisse, eu corria para aspirar as lascas de
madeira na garagem que ele tivesse arrancado da porta outra vez. Eu
ficava até mais tarde emendando e lixando para que, de manhã, quando
Jenny levantasse, o último dano estivesse reparado.
— Pelo amor de Deus, Marley, você quer morrer? — eu disse a ele,
um dia à noite, enquanto consertava mais uma de suas destruições e
ele, ao meu lado, balançava o rabo e lambia minha orelha. — Você tem
de parar com isso!
Foi nesse ambiente volátil que cheguei certa noite em casa. Abri
a porta e vi Jenny esmurrando Marley. Ela estava chorando
descontrolada e espancando-o nas costas, nos ombros e no pescoço.
— Por quê? Por que você faz isso? — ela gritava com ele. — Por
que você destrói tudo?
Nesse momento, vi o que ele fizera. O sofá estava todo
arrebentado, o tecido rasgado e o estofamento puxado para fora.
Marley estava com a cabeça baixa e as patas esparramadas, como se
estivesse dentro de um furacão. Ele não tentou fugir ou evitar os murros;
apenas ficou ali parado, agüentando a surra, sem chorar ou reclamar.
— Ei, ei, ei, ei, ei! — gritei, agarrando seus pulsos. — Que é isso?
Pare! Pare!
Ela estava aos prantos sem conseguir respirar.
— Pare! — repeti.
Postei-me entre ela e Marley e olhei-a direto nos olhos. Era
como se uma estranha estivesse olhando para mim. Não reconheci seu
olhar.
— Tire-o daqui! — ela grunhiu, num tom de voz baixo e irado.
— Tire-o daqui agora!
— O.k.! Vou levá-lo para fora — respondi —, mas acalme-se!
— Tire-o daqui e mantenha-o fora daqui — ela disse de forma
estranhamente monocórdia.
Abri a porta da frente e Marley saiu, e quando me virei para pegar
sua guia de cima da mesa, Jenny advertiu:
—Estou falando sério. Quero que ele vá embora. Quero que ele
saia daqui de uma vez!
—Que é isso? — perguntei. — Você não pode estar falando sério.
—Estou, sim — ela respondeu. — Estou farta desse cachorro.
Encontre um novo lugar para ele morar ou eu encontrarei.
Ela não poderia estar falando sério. Ela amava esse cachorro. Ela o
adorava apesar de sua longa lista de confusões. Ela estava exausta; estava
estressada além do limite. Ela iria mudar de idéia. Nesse momento, pensei
que seria melhor dar tempo a ela para esfriar a cabeça. Eu saí de casa sem
dizer mais nada. No jardim da frente, Marley corria para cima e para
baixo, saltando e estalando os dentes no ar, tentando tirar a guia da minha
mão. Ele continuava brincalhão, aparentemente inalterado depois da
surra. Eu sabia que ela não o ferira. Para falar francamente, eu batia nele
com muito mais força quando brincava com ele, e ele adorava, sempre
voltando para apanhar mais. Era algo típico de sua raça; ele era imune à
dor, uma infatigável máquina de músculos e força. Certa vez, enquanto eu
estava na entrada lavando o carro, ele enfiou a cabeça no balde de água
com sabão e galopou às cegas pela grama, e não parou até ir bater com
toda a força contra uma parede de concreto. Ele não pareceu nem um
pouco perturbado. Mas dê-lhe uma palmada de leve no traseiro com a mão
espalmada com raiva, ou até mesmo apenas fale com ele com a voz séria, e
ele se mostrará totalmente magoado. Para o pateta que ele era, Marley era
extremamente sensível. Jenny não o machucou nem um pouco
fisicamente, mas ela pisou em seus sentimentos, pelo menos naquele
momento. Jenny era tudo para ele, sua melhor amiga no mundo, além de
mim, e ela havia se revoltado contra ele. Ela era sua dona e ele, seu fiel
companheiro. Se ela achava que deveria espancá-lo, ele acreditava que
deveria suportar o castigo. Em relação a cachorros, ele não era um dos
melhores; mas era indiscutivelmente leal. Era minha obrigação agora
reparar o dano e fazer com que as coisas se acertassem novamente.
Na rua, enganchei a guia em sua coleira e comandei:
— Sente!
Ele sentou.
Puxei o enforcador bem alto em sua garganta para prepará-lo para
o passeio. Antes de dar o primeiro passo, passei minha mão sobre a
cabeça dele e massageei seu pescoço. Ele levantou o focinho e olhou
para mim, deixando sua língua caída para o lado. O incidente com
Jenny parecia ter sido esquecido; agora eu esperava que fosse esquecido
por ela também.
— O que vou fazer com você, seu bobão? — perguntei a ele.
Ele saltou para a frente, como se tivesse molas nos pés e beijou-me
na boca com sua imensa língua.
Marley e eu caminhamos vários quilômetros naquela noite, e quando
finalmente abri de novo a porta de casa, ele estava exausto e pronto para se
esborrachar num canto. Jenny estava dando um potinho de papinha de bebê
a Patrick, enquanto ninava Conor em seu colo. Ela estava calma e parecia
ter voltado ao normal. Soltei Marley e ele foi beber em sua vasilha, fazendo
um enorme barulho enquanto lambia, derrubando água para todos os
lados. Sequei o chão e olhei furtivamente na direção de Jenny; ela parecia
tranqüila. Talvez aquele momento terrível tivesse passado. Talvez ela tivesse
mudado de idéia. Talvez ela estivesse se sentindo mal em relação a ter
estourado com ele e estivesse buscando uma forma de pedir desculpas.
Quando passei por ela, com Marley junto a mim, ela disse numa voz calma
e baixa, sem levantar os olhos:
— Estou falando muito sério. Quero que ele vá embora.
Nos dias seguintes, ela repetiu o ultimato o suficiente para que
finalmente eu aceitasse que não era uma ameaça inócua. Ela não estava
falando por falar, e não iria desistir da idéia. Eu estava cansado desse
assunto. Por mais patético que parecesse, Marley se tornara minha alma
gêmea masculina, um companheiro constante, meu amigo. Ele era o
espírito livre, indisciplinado, recalcitrante, não-conformista, e
politicamente incorreto que eu sempre quis ser, se eu tivesse a coragem de
sê-lo, e eu me regozijava com sua verve inquebrantável. Não importa quão
complicada a vida se tornara, ele me lembrava de suas simples alegrias.
Não importa quantas exigências me fossem feitas, ele nunca me deixava
esquecer que a desobediência voluntária algumas vezes vale a pena.
Num mundo cheio de caciques, ele era seu próprio senhor. O pensamento
de passá-lo adiante dilacerava a minha alma. Mas agora eu tinha dois filhos
para me preocupar e uma mulher de quem precisávamos. Nossa casa se
mantinha por um fio muito tênue. Se perder Marley faria a diferença entre
a dissolução e a estabilidade, como eu não atenderia à vontade de Jenny?
Comecei a sondar, discretamente perguntando a amigos e colegas
de trabalho, se eles estariam interessados em adotar um labrador de dois
anos de idade, adorável e vivaz. Descobri um vizinho que adorava
cachorros e que não recusaria um cão abandonado. Até ele se recusou.
Infelizmente, a reputação de Marley o precedia.
Toda manhã, eu abria o jornal na seção de classificados à procura
de um anúncio milagroso: “Procura-se um labrador selvagem, enérgico,
descontrolado com múltiplas fobias. Qualidades destrutivas são bemvindas.
Pagamos o melhor preço do mercado”. O que encontrei em vez
disso foi um mercado ascendente de cachorros que, por alguma razão,
não tinham dado certo. Muitos eram cães de raça cujos donos haviam
gasto centenas de dólares poucos meses antes. Agora estavam sendo
oferecidos por um valor ínfimo ou até mesmo de graça. Um número
assustador dos cães indesejados eram labradores machos.
Os anúncios eram publicados todos os dias, e eram, ao mesmo
tempo, hilários e de cortar o coração. Por conhecer bem esse tipo de cão, eu
reconhecia as tentativas de disfarçar as verdadeiras razões por que estes
cães estavam sendo devolvidos ao mercado. Os anúncios estavam
coalhados de eufemismos para descrever os tipos de comportamento que
eu conhecia bem demais: “Ativo ...adora pessoas ...necessita de um
quintal grande ...necessita de espaço para correr ...enérgico ...espirituoso
...possante ...um tipo único”. Todos induziam à mesma idéia: um cão que o
dono não conseguiu controlar. Um cão que havia se transformado em
estorvo. Um cão que seu dono desistira de ter.
Um lado meu ria; os anúncios eram cômicos por serem
decepcionantes. Quando eu lia “extremamente leal”, eu sabia que o
vendedor na verdade queria dizer “capaz de morder”. “Companheiro
constante” significava “sofre de carência afetiva” e “bom cão de guarda”
queria dizer “late muito” E quando eu via “melhor oferta”, eu sabia muito
bem que o dono, desesperado, no fundo estava perguntando: “Quanto
você quer para me tirar este problema das mãos?”. Outro lado meu doía
de tristeza. Eu não iria desistir fácil; eu não acreditava que Jenny fosse
desistir fácil também. Não éramos do tipo de pessoa que colocava seus
problemas à venda numa página de classificados. Marley era, sem sombra
de dúvida, uma dor de cabeça. Ele não se parecia nem um pouco com os
cachorros civilizados que nós dois tivemos quando crianças. Ele tinha
uma coleção de maus hábitos e maus comportamentos. Era culpado por
tudo que fazia de errado. Ele também não era mais o filhote fofinho que
havíamos trazido para casa dois anos antes. Em seu modo confuso, ele
continuava tentando. Parte de nossa atribuição como seus donos era
adequá-lo às nossas necessidades, mas outra parte era também aceitá-lo
como ele era. Não apenas aceitá-lo, mas apoiá-lo e a seu espírito canino
indomável. Nós havíamos trazido para casa um ser vivo e pulsante, não
um acessório de moda para enfeitar um canto da sala. Pelo sim ou pelo
não, ele era nosso cachorro. Ele era parte de nossa família e, apesar de
todos os seus defeitos, ele correspondeu mil vezes ao nosso amor. Uma
devoção como a dele não poderia ser comprada a preço algum.
Eu não estava pronto para abrir mão dele.
Mesmo continuando a procurar de modo casual um novo lar para
Marley, comecei a treiná-lo ferozmente. Minha “Missão: Impossível”
pessoal era conseguir reabilitá-lo e provar a Jenny que ele valia a pena.
Ignorando a falta de sono, comecei a acordar mais cedo, prendia Patrick
no carrinho e ia para o quebra-mar para treinar Marley. Sente. Fique.
Deitado. Junto. Praticamos infinitas vezes. Havia um desespero em
minha missão, e Marley parecia perceber isso. A aposta era outra agora;
esta era para valer. No caso de ele não haver entendido isso
inteiramente ainda, eu repetia em alto e bom som para ele: “Não
estamos fazendo nada para perder, Marley. Isto vale tudo. Vamos em
frente”. E eu o faria repetir a seqüência de co-mandos, com meu
ajudante Patrick batendo palmas e gritando para seu grande amigo
peludo e amarelo:
— Waddy!Hee-O!
Quando eu inscrevi Marley mais uma vez na escola de
adestramento, ele era um cão diferente do delinqüente juvenil que eu
levara antes. Sim, mesmo selvagem como um javali, desta vez ele
sabia que era eu quem comandava, e ele obedecia. Desta vez, não
haveria investidas contra outros cachorros (pelo menos não muitos),
nenhum ataque descontrolado pela pista, nenhum ataque às virilhas de
pessoas estranhas. Com aulas diárias, eu avancei pelos comandos com
rédea curta, e ele se sentia feliz — ou até mesmo esfuziante — em
cooperar. Na última aula, a adestradora — uma mulher tranqüila, a
antítese da Sra. Dominatrix — chamou-nos para frente.
— O.k. — ela disse —, mostre-nos o que sabe fazer.
Dei a ordem a Marley para se sentar e ele se sentou
perfeitamente sobre as patas traseiras. Ajustei o enforcador alto em sua
garganta e, com um puxão curto da guia, dei o comando para ele vir
junto a mim. Andamos pelo estacionamento, ida e volta, Marley ao
meu lado, seu ombro raspando na minha perna, exatamente como
estava escrito no livro. Dei o comando para ele se sentar novamente e
fiquei de pé na frente dele, e apontei meu dedo para sua testa:
— Fique — eu disse, calmamente e, com a outra mão, deixei cair a
guia.
Dei alguns passos para trás. Seus grandes olhos castanhos
estavam fixos em mim, esperando por qualquer sinal para que pudesse se
mover, porém permaneceu firme. Caminhei 360 graus em torno dele.
Ele tremia de ansiedade e tentou me acompanhar com a cabeça, à moda
de O Exorcista, para continuar de olho em mim, mas ele não se moveu.
Quando voltei a ficar na frente dele, apenas por diversão, estalei os
dedos e gritei:
— Entrando!
Ele se esparramou no chão como se estivesse se escondendo de
um ataque aéreo. A instrutora estourou na gargalhada, que era um bom
sinal. Dei as costas para ele e caminhei por uns nove metros. Eu podia
sentir seus olhos grudados nas minhas costas, mas ele agüentou firme.
Ele estava tremelicando muito quando me virei para encará-lo. Ele
estava a ponto de explodir como um vulcão. Então, afastando bem os
meus pés para esperar o que estava por vir, eu disse:
— Marley... — e esperei alguns segundos para criar expectativa.
— Venha!
Ele disparou com tudo em minha direção, e esperei pelo
impacto. No último instante, desviei do caminho dele com a graça de
um toureiro; ele passou direto por mim, e depois deu a meia-volta e veio
por trás e empurrou-me com o nariz.
— Bom menino, Marley! — exultei, caindo de joelhos. — Muito
bom menino! Você é um bom menino!
Ele dançava à minha volta como se tivéssemos acabado de escalar
o Monte Everest.
No fim da noite, a instrutora nos chamou e entregou-nos o nosso
diploma. Marley havia passado no treinamento de adestramento básico
em sétimo lugar na turma. E qual o problema se eram oito na classe e o
oitavo cachorro era um pit bull psicopata assassino que mataria o primeiro
ser humano que atravessasse a sua frente? Para mim estava bom. Marley,
meu cão incorrigível, não domesticável e indisciplinado havia concluído o
curso. Eu estava tão orgulhoso que seria capaz de chorar e, de fato, eu
teria chorado, se Marley não tivesse saltado e imediatamente engolido o
seu diploma.
No caminho de casa, cantamos We are the champions o mais alto
possível. Marley, percebendo meu orgulho e contentamento, enfiou sua
língua dentro da minha orelha. Pela primeira vez, eu não me importei.
Havia uma questão ainda não resolvida entre Marley e eu. Eu
precisava acabar com seu pior defeito: saltar em cima das pessoas. Não
importava se fosse um amigo ou um desconhecido, uma criança ou um
adulto, o funcionário da empresa de fornecimento elétrico ou o carteiro.
Marley saudava a todos do mesmo modo — atacando-os em plena
velocidade, deslizando pelo chão, saltando, e colocando suas patas sobre
o peito ou os ombros da pessoa, enquanto lambia a cara delas. O que
era uma gracinha quando ele era pequeno se tornou desagradável e até
mesmo atemorizante para algumas das pessoas que recebiam esse
ataque inesperado. Ele derrubara crianças, surpreendera convidados,
sujava as roupas dos nossos amigos, e também quase havia derrubado
minha frágil mãe. Ninguém gostava disso. Eu tentara, sem sucesso,
ensiná-lo a não saltar nas pessoas, utilizando técnicas de adestramento
padrão. A ordem não entrava na cabeça dele. Então, um antigo dono de
cachorros que eu respeitava muito me disse:
—Se você quer ensiná-lo a não fazer isso, dê uma joelhada no
peito dele da próxima vez que ele saltar sobre você.
—Eu não quero machucá-lo — respondi.
—Você não irá machucá-lo. Umas boas porradas com o joelho, e
eu garanto que ele pára de saltar.
Foi algo duro de fazer. Marley tinha de mudar ou se mudar. Na
noite seguinte, quando cheguei em casa do trabalho, entrei e gritei:
— Cheguei!
Como sempre, Marley veio disparado atravessando o assoalho de
madeira para vir me saudar. Ele escorregou os três últimos metros como
se estivesse numa pista de gelo, e então se ergueu para esborrachar suas
patas sobre meu peito e passar a língua na minha cara. Assim que suas
patas pousaram sobre mim, bati rápido com o joelho logo abaixo de sua
caixa torácica. Ele engasgou um pouco e deslizou até o chão, olhando
para mim com um ar magoado, tentando entender por que eu fizera isso.
Ele sempre pulara em cima de mim a vida inteira. Por que eu o atacara
de repente?
Na noite seguinte, repeti o baque. Ele saltou, eu levantei o joelho
contra o peito dele, e ele caiu no chão, tossindo. Achei que estava sendo
um tanto cruel, mas se eu iria salvá-lo dos anúncios de classificados,
sabia que teria de fazê-lo entender.
— Desculpe, rapaz — eu disse, abaixando-me para que ele pudesse
me lamber com as quatro patas no chão. — É para o seu próprio bem.
Na terceira noite, quando entrei em casa, ele veio correndo do
mesmo modo como costumava fazer. Desta vez, no entanto, ele mudara
sua rotina. Em vez de saltar, ele se manteve no chão e enfiou a cabeça
entre meus joelhos, quase me derrubando. Eu considerei isso uma
vitória.
— Você conseguiu, Marley! Você conseguiu! Bom menino! Você
não saltou!
Eu me abaixei para que ele pudesse me lamber à vontade sem o
risco de levar uma joelhada. Eu fiquei impressionado. Marley cedera ao
poder da persuasão.
Porém, o problema não se resolvera totalmente. Ele pode ter sido
curado de pular em cima de mim, mas não parara de pular em cima dos
outros. Ele era esperto o suficiente para entender que apenas eu
representei uma ameaça, e ele ainda poderia pular em cima do resto da
humanidade e continuar impune. Eu precisei ampliar minha ofensiva e,
para fazer isso, convoquei um amigo do trabalho, um jornalista chamado
Jim Tolpin. Jim era gentil, intelectual, meio careca, usava óculos e tinha
estatura mediana. Se havia uma pessoa que Marley imaginasse que ele
poderia pular em cima sem maiores conseqüências seria Jim. Na
redação, um dia, expus o plano. Ele deveria vir até minha casa depois
do trabalho, tocar a campainha da porta e entrar em seguida. Quando
Marley saltasse para cumprimentá-lo, ele deveria fazer o mesmo que eu.
— Não se acanhe — eu reforcei. — Não se pode ser sutil com
Marley.
Naquela noite, Jim tocou a campainha e entrou pela porta da
frente. Marley engoliu a isca e disparou, as orelhas voando para trás.
Quando saltou do chão para pular em cima dele, Jim fez exatamente o
que eu pedi Temendo que fosse bater sem força, ele meteu o joelho sobre
o plexo solar de Marley, derrubando-o no chão. Deu para ouvir o
barulho da outra sala. Marley grunhiu alto, os olhos arregalados,
totalmente esparramado no assoalho.
—Nossa, Jim — eu repliquei. — Você tem praticado kung-fu?
—Você me disse para não ter dó — ele respondeu.
E não teve mesmo. Marley se levantou, retomou o fôlego, e
saudou Jim do modo que um cão deve saudar alguém — com as quatro
patas no chão. Se ele pudesse dizer alguma coisa, juro que ele teria
reconhecido a derrota. Marley não pulou em mais ninguém, pelo menos
não na minha frente, e nunca mais ninguém precisou lhe dar uma
joelhada.
Um dia de manhã, não muito depois de Marley ter abandonado o
seu hábito de pular em cima das pessoas, eu acordei e minha mulher
estava de volta. Minha Jenny, a mulher que eu amava, que desaparecera
no meio daquela espessa bruma azul, havia voltado para mim. Da
mesma forma como a depressão pós-parto se instalou, acabou indo
embora. Como se ela tivesse sido exorcizada. Todos os demônios
haviam ido embora. Embora para sempre. Ela estava forte, pra cima,
não apenas enfrentando as situações de uma jovem mãe de dois filhos,
mas conseguindo fazer isso com sucesso. Marley caiu novamente nas
graças dela, pisando em terreno firme. Com um bebê em cada braço, ela
se inclinava para beijá-lo. Jogava varetas para ele pegar e fazia um molho
para ele com as sobras de hambúrguer. Dançava com ele na sala quando
começava a tocar uma música que ela gostasse. Às vezes, à noite,
quando ele estava calmo, eu a encontrava deitada no chão com a
cabeça apoiada no pescoço dele. Jenny havia voltado. Graças a Deus,
ela havia voltado.
Capítulo 16
O teste
Algumas coisas na vida são tão bizarras que só podem ser verdadeiras.
Assim, quando Jenny ligou para a redação para dizer que
Marley iria fazer um teste, eu sabia que ela não estaria inventando
aquilo. Mesmo assim, eu não acreditei:
—Um, o quê...? — perguntei.
—Um teste para um filme.
—Tipo... filme de cinema?
—É, de cinema, seu bobo — ela respondeu. — Um longametragem,
—Marley? Num longa-metragem?
Continuamos repetindo isso por algum tempo até eu conciliar a
imagem do nosso cabeçudo mordedor de tábuas de passar com a
imagem de um imponente sucessor de Rin Tin Tin saltando na tela
prateada, salvando crianças indefesas de edifícios em chamas.
— Nosso Marley? — perguntei novamente, só para ter absoluta
certeza.
E era verdade. Uma semana antes, a supervisora de Jenny no Palm
Beach Post ligara e dissera que tinha uma amiga que precisava que lhe
prestássemos um favor. Ela era fotógrafa, chamava-se Colleen McGarr e
fora contratada pela produtora de filmes Shooting Gallery de New York
para trabalhar em um filme que pretendiam rodar em Lake Worth, que
fica ao sul do lugar onde moramos. O trabalho de Colleen era encontrar
um “típico lar do sul da Flórida” e fotografado de todos os ângulos possíveis
— estantes, ímãs de geladeira armários, tudo — para ajudar aos diretores a
dar mais realismo ao seu filme.
—A equipe inteira é gay — confidenciou a chefe de Jenny. —
Eles querem entender como os casais que têm filhos vivem por aqui.
—Tipo um estudo antropológico — completou Jenny.
—Exatamente.
—Claro — Jenny concordou —, desde que eu não tenha de fazer
uma faxina em casa antes.
Colleen veio e começou a fotografar, não só o que tínhamos em
casa, mas a nós também. Como nos vestíamos, como nos penteávamos,
como nos sentávamos no sofá. Fotografou as escovas de dentes no
banheiro, os bebês em seus berços, e também o cachorro eunuco do
típico casal heterossexual. Ou ao menos o que conseguiu fotografar dele.
Como ela disse:
— Ele é meio indefinido.
Marley não poderia ficar mais entusiasmado em participar. Desde
que os bebês haviam invadido a casa, ele procurava carinho onde
pudesse encontrá-lo. Colleen poderia tê-lo furado com uma agulha:
enquanto recebesse atenção, estaria tudo bem para ele. Colleen, uma
amante de animais grandes, e sem medo de tomar banhos de saliva,
deu-lhe toda a atenção, atirando-se para rolar no chão com ele.
Enquanto Colleen fotografava, não pude deixar de pensar nas
possibilidades. Não apenas estávamos fornecendo dados antropológicos
em estado natural aos diretores, como estávamos contribuindo
pessoalmente com o elenco. Eu sabia que grande parte dos atores
coadjuvantes e todos os extras deste filme seriam contratados na cidade.
E se o diretor encontrasse um verdadeiro astro entre os ímãs de geladeira
e os pôsteres artísticos? Coisas mais estranhas do que isso já havia
acontecido.
Eu podia ver o diretor, que na minha imaginação se pareceria
bastante com Steven Spielberg, curvado sobre uma mesa imensa coberta
com centenas de fotos. Ele olha, impaciente, para todas elas,
resmungando:
— Lixo! Lixo! Isto não serve!
Então, ele pára em uma foto.
Nela vê um rude, sensível e típico macho heterossexual, que é chefe
de família. O diretor aponta com veemência para a foto e grita para seus
assistentes:
— Tragam-me este homem! Preciso tê-lo em meu filme!
Quando conseguem me encontrar, humildemente hesito antes de
aceitar o papel principal. Afinal, o show deve continuar.
Colleen agradeceu por havermos aberto nossa casa para ela e foi
embora. Ela não nos deu nenhum motivo para que acreditássemos que
ela ou qualquer outra pessoa associada ao filme entraria em contato
conosco novamente. Nosso dever tinha sido cumprido. Porém, alguns
dias mais tarde, Jenny me ligou no trabalho e disse:
— Acabei de falar com Colleen McGarr, e você NÃO vai acreditar.
Não tive dúvida de que simplesmente eu havia sido descoberto.
Meu coração saltou.
—Continue — eu disse.
—Ela disse que o diretor quer que Marley faça um teste.
—Marley? — perguntei, certo de que havia ouvido mal.
Ela não pareceu notar o desânimo em minha voz.
—Aparentemente, ele está procurando por um cão grande, bobo
e retardado, para fazer o papel do animal de estimação da família, e
Marley chamou a atenção dele.
—Retardado? — perguntei.
—Foi isso o que Colleen disse que ele quer. Grande, bobo e
retardado.
Bem, ele, com certeza, havia escolhido certo.
—Colleen disse se ele mencionou algo a meu respeito? —
perguntei.
— Não — Jenny respondeu. — Por que ele mencionaria algo?
Colleen apanhou Marley no dia seguinte. Sabendo da
importância de uma boa entrada, ele atravessou a sala feito um rojão
para cumprimentá-la, parando apenas para abocanhar uma almofada
mais próxima, porque nunca se sabe quando um diretor ocupado irá
precisar tirar uma soneca rápida e, se fosse o caso, Marley queria estar
preparado.
Ao tocar o assoalho de madeira, ele deslizou, só parando ao
trombar na mesinha de centro, alçou vôo de novo, espatifou-se contra a
cadeira, caiu de costas, rolou, empertigou-se novamente, e meteu a cabeça
entre as pernas de Colleen. Pelo menos, ele não saltou em cima dela: isso
eu pude reparar.
— Tem certeza de que não quer que eu aplique um calmante? —
Jenny perguntou.
O diretor queria vê-lo em seu estado normal, sem qualquer
medicação, insistiu Colleen, e lá foi ela com nosso cão
desesperadamente feliz ao seu lado, em seu jipe vermelho.
Duas horas depois, Colleen e companhia estavam de volta e o
veredicto foi o seguinte: Marley passara no teste.
— Como assim? — Jenny esganiçou. — Como assim, ele passou?
Nosso júbilo não diminuiu nem um pouco quando Colleen nos
disse que Marley era o único concorrente para o seu papel. Nem
quando nos contou que este seria o único a não ser pago do elenco.
Eu perguntei a ela como havia sido o teste.
— Eu pus Marley no carro e foi como se estivesse dirigindo em
uma banheira — ela relatou. — Ele babou o tempo todo em cima de
tudo. Quando cheguei com ele, eu estava encharcada.
Quando eles chegaram ao estúdio de produção no Hotel
GulfStream, um antigo marco turístico com vista para a Intracoastal
Waterway, Marley imediatamente impressionou a equipe saltando do jipe
e cruzando o pátio do estacionamento de forma tão irregular como se
estivesse esperando um ataque aéreo começar a qualquer momento.
—Ele estava simplesmente eufórico — ela disse —-, totalmente
fora de si.
—Sim, ele sempre fica um pouco ansioso — eu respondi.
Em determinado momento, ela contou, Marley agarrou um talão
de cheques da mão de um dos membros da equipe e saiu correndo,
dando voltas, desembestado, como se dessa forma ele conseguisse
garantir o seu pagamento.
— Nós o chamamos de nosso Labrador fujão — Jenny se
desculpou, com um sorriso que só uma mãe orgulhosa daria.
Marley acabou se acalmando o suficiente para convencer todo
mundo que ele poderia fazer o papel, que seria basicamente ser ele
mesmo. O filme iria se chamar A Ultima Jogada, uma ficção sobre
beisebol no qual um senhor de 79 anos que vive em uma casa de repouso
se torna um garoto de doze anos por cinco dias para viver seu sonho de
jogar em um campeonato pela sua liga. Marley seria o cão hiperativo da
família do treinador do time, interpretado pelo agarrador aposentado da
liga profissional, Gary Carter.
— Eles realmente querem que Marley participe do filme? —
perguntei, ainda incrédulo.
— Todo mundo o adorou — respondeu Colleen. — Ele é perfeito.
Nos dias que antecederam a filmagem, notamos uma mudança
sutil na atitude de Marley. Uma estranha calma tomou conta dele.
Como se ter passado no teste tivesse lhe dado uma nova confiança. Ele
estava se comportando de modo quase imperial.
— Talvez ele apenas precisasse que alguém acreditasse nele — eu
disse a Jenny.
Se alguém acreditava nele, esse alguém era ela, Dona Mãe de
Palco Extraordinária. Antes de chegar o primeiro dia de filmagem, ela
dava banhos, escovava-o, cortava as unhas e limpava as suas orelhas.
Na manhã em que começava a filmagem, eu saí do quarto, e vi
Jenny e Marley enrascados como se estivessem em um combate mortal,
rolando no chão. Ela o prendera entre os joelhos apertando as suas
costelas e com uma das mãos puxava a corrente do enforcador,
enquanto ele se debatia. Era como se eu estivesse assistindo a um
rodeio no meio da minha sala de estar.
—Em nome de Deus, o que é que você está fazendo?
—O que é que lhe parece? — ela respondeu, rápido. — Escovando
os dentes dele!
Realmente, ela estava com uma escova de dente na outra mão e
estava fazendo o possível para escovar seus imensos dentes brancos,
enquanto Marley, babando a mais não poder, mastigava a escova. Ele
parecia absolutamente enlouquecido.
—Você está usando pasta de dente? — perguntei, que, evidente,
pedia outra pergunta melhor. — E como é que você pretende fazê-lo cuspir
tudo isso?
—E bicarbonato — ela replicou.
—Graças a Deus — respondi. — Então ele não está com um
ataque de raiva?
Uma hora mais tarde, saímos em direção ao Hotel GulfStream, os
meninos sentados em suas cadeirinhas e Marley entre eles, resfolegando
com um hálito fresco completamente inusitado. Nossas instruções eram
para chegar até às nove da manhã, mas no quarteirão seguinte, o
trânsito parou. Acima, na estrada, havia uma barricada e um policial
desviava os carros do hotel. A filmagem havia sido bastante divulgada
no jornal — o maior evento a acontecer na adormecida Lake Worth
desde que Corpos quentes fora filmado havia quinze anos no mesmo
local — e uma multidão de espectadores apareceu para prestigiar. A
polícia estava desviando todo mundo. Andamos lentamente pelo
trânsito, e quando finalmente chega-mos ao guarda, abri a janela e
disse:
—Precisamos passar.
—Ninguém passa — ele respondeu. — Continue rodando. Vamos.
—Temos alguém do elenco conosco — eu disse.
Ele nos lançou um olhar cético, um casal numa minivan com dois
bebês e um cão domesticado a tiracolo.
—Eu disse para ir rodando! — ele repetiu.
—Nosso cão está no filme — eu insisti.
De repente, ele me encarou de outro modo:
—O cão está com você? — ele perguntou.
O cão estava na lista de nomes autorizados dele.
—O cão está comigo — respondi. — O cão Marley.
—Interpretando a ele mesmo — Jenny acrescentou.
Ele se virou e tocou seu apito com enorme alarido:
— O cão está com ele! — ele gritou a outro guarda, meio
quarteirão adiante. — O cão Marley!
E o outro guarda, por sua vez, gritou para mais alguém à frente:
—O cão está com ele! O cão Marley está aqui!
—Deixem este carro passar! — um terceiro policial gritou de
longe.
—Deixem este passar! — o segundo policial repetiu.
O guarda retirou a barricada e acenou para que passássemos.
— Venham por aqui! — ele disse, educadamente.
Eu me senti parte da família real. Ao passar por ele, ele repetiu
mais uma vez, como se não conseguisse acreditar:
— O cão está com ele!
No pátio do estacionamento em frente ao hotel, a equipe de
filmagem estava pronta para rodar. Cabos atravessavam o chão; tripés
de câmeras e gruas de microfones haviam sido instalados. Lâmpadas
dependuravam-se do alto. Havia trailers com cabides de roupas
penduradas. Haviam montado duas grandes mesas com comida e
bebida à sombra para o elenco e a equipe de produção. Pessoas com ar
importante usando óculos escuros passeavam de um lado para outro. O
diretor Bob Gosse nos cumprimentou e nos deu uma rápida prévia da
cena que iria ser rodada. Era bastante simples: uma minivan
encostava no meio-fio, a dona de mentirinha de Marley, interpretada
pela atriz Liza Harris, está na direção. Sua filha, interpretada por uma
linda adolescente chamada Danielle, que era da escola de teatro da
cidade e seu filho, outro jovem ator local de pelo menos nove anos de
idade, estão no banco de trás com o cão da família, interpretado por
Marley. A filha abre a porta de correr e desce do carro; seu irmão a
segue, puxando Marley pela guia. Eles se afastam da câmera. Final da
cena.
— Bastante fácil — eu disse ao diretor. — Ele deverá conseguir
fazê-la, sem problema.
Puxei Marley para o lado para esperar por sua deixa para entrar
na van.
— O.k., pessoal, ouçam aqui — Gosse disse para a equipe. — O
cão é um pouco doido varrido, está bem? Mas a menos que ele estrague
toda a cena, vamos continuar rodando.
Ele explicou seu ponto de vista: Marley era o filé mignon — um
típico cão de família — e o objetivo era captá-lo se comportando como
um típico cão de família se comportaria saindo em condições normais
com a família. Sem interpretação ou direção; um cinema puro e
verdadeiro.
— Deixe-o fazer o que ele quiser — ele explicou —, e façam o que
tiverem de fazer a partir dele.
Quando todo mundo estava pronto para começar a filmar,
coloquei Marley na van e dei sua guia de náilon para o menino, que fez
um ar apavorado por ter de segurá-lo.
— Ele é bonzinho — eu disse a ele. — Ele apenas vai querer
lambê-lo, vê?
Coloquei meu pulso em frente à boca de Marley para mostrar
como ele fazia.
Tomada um: A van se aproxima do meio-fio. No instante em que a
filha abre a porta lateral, uma mancha amarela dispara como uma bola
de pêlo gigante atirada por um canhão e zune na frente das câmeras,
arrastando uma guia vermelha atrás dele.
— Corta!
Eu cacei Marley no fim do estacionamento e arrastei-o de volta.
— O.k., amigos, vamos tentar fazer a mesma cena novamente —
disse Gosse.
Então, ele se virou para o menino e disse, gentilmente:
— O cão é um demônio. Tente segurá-lo mais firme desta vez.
Tomada dois: A van se aproxima do meio-fio. A porta se abre
deslizando para o lado. A filha apenas começa a sair quando Marley
surge e salta na frente dela, desta vez arrastando o pálido menino atrás
dele.
— Corta!
Tomada três: A van estaciona. A porta desliza para o lado. A filha
sai. O menino sai, segurando a guia. Quando ele dá um passo para fora
da van, a guia se estica para dentro, mas o cão não sai. O menino
começa a puxar com força. Ele se dobra à frente e puxa com toda a
força. A guia não se mexe. Passam-se longos e dolorosos segundos. O
garoto faz uma careta e vira para a câmera.
— Corta!
Eu olhei dentro da van e vi Marley lambendo-se onde nenhum
macho deveria se lamber. Ele se virou candidamente para mim como se
dissesse: “Não dá pra ver que estou ocupado?”
Tomada quatro: Coloco Marley no banco de trás da van com o
menino e fecho a porta. Antes que Gosse grite “Ação!”, ele interrompe
por alguns minutos para falar com seus assistentes. Finalmente,
começam a rodar a cena. A van estaciona junto ao meio-fio. A porta se
abre para o lado. A filha sai. O filho sai, mas com um olhar estupefato.
Ele olha direto para a câmera e levanta uma das mãos. Nela está
dependurada metade da guia, a ponta esgarçada e encharcada de
saliva.
— Corta! Corta! Corta!
O menino explicou que, enquanto ele esperava dentro da van,
Marley começou a morder a guia sem parar. A equipe e o elenco
olhavam para a guia estraçalhada sem acreditar, um misto de espanto
e horror tomou conta deles como se tivessem acabado de testemunhar
uma grande e misteriosa manifestação de uma força da natureza. Eu, por
outro lado, não me surpreendi nem um pouco. Marley havia destruído
mais guias e cordas do que eu conseguia contar; ele mordeu até mesmo
um cabo de aço revestido de borracha que havia sido anunciado como
sendo “usado na indústria aérea”. Logo depois de Connor nascer, Jenny
voltou para casa com o novo produto, um arreio de viagem para
cachorros que lhe permitiria atar Marley no cinto de segurança do carro
para que ele não se mexesse com o carro em movimento. Nos primeiros
noventa segundos em que ele usou o novo equipamento, conseguiu
mastigar não apenas o pesado arreio, mas o cinto de segurança da
nossa mini van novinha em folha.
— O.k., todo mundo, vamos fazer um intervalo! — exclamou
Gosse.
Virando-se para mim, ele perguntou, numa voz
surpreendentemente calma:
— Em quanto tempo consegue arranjar outra guia para ele?
Ele não precisava me contar quanto cada minuto perdido custava
para ele enquanto os atores e equipe de produção ficavam parados.
— Há uma loja de animais a poucos metros daqui — respondi. —
Dá pra voltar em quinze minutos.
— E desta vez compre algo que ele não consiga mastigar — ele
recomendou.
Voltei com uma corrente pesada que se assemelhava mais a algo
que um treinador de leões usaria, e a filmagem continuou, tomada após
tomada, todas mal sucedidas. Cada cena era pior que a anterior. Em
determinado momento, Danielle, a atriz adolescente, soltou um guincho
desesperado no meio da cena e gritou, realmente horrorizada:
—Oh, meu Deus! Ele está com tudo para fora!
—Corta!
Em outra cena, Marley estava arfando tão alto sentado aos pés de
Danielle, enquanto ela falava ao telefone com o namorado, que o
engenheiro de som arrancou os fones de ouvido, desgostoso e reclamou
bem alto:
—Não consigo ouvir nenhuma palavra do que ela está dizendo.
Tudo que consigo ouvir é uma respiração resfolegante. Parece um filme
pornô.
—Corta!
Assim se passou o primeiro dia de filmagem. Marley foi um
desastre, incorrigível e indesculpável. Por um lado, eu me defendia:
“Bem, o que eles esperavam dele de graça? O cão Benji?”, e por outro,
eu estava mortificado. Eu olhava de esguelha para o elenco e para a
equipe de filmagem e podia ver claramente na expressão deles: “De onde
saiu este animal, e como conseguimos nos livrar dele?”. Ao final do dia,
um dos assistentes, segurando uma plaqueta na mão, nos disse que a
escalação para a manhã seguinte ainda estava em aberto.
— Não precisa se preocupar em vir amanhã — ele disse. — Nós
chamaremos vocês se precisarmos do Marley.
E para ter certeza de que não houvesse confusão, ele repetiu:
— Só venha se nós ligarmos para vocês, entendeu?
Sim, eu entendi, em alto e bom som. Gosse mandou seu ajudante
nos dispensar. A carreira promissora de ator de Marley havia
terminado. Não que eu pudesse culpá-los por isso. Com a exceção da
cena em Os Dez Mandamentos em que Charlton Heston abre o Mar
Vermelho, Marley causou o maior pesadelo logístico da história do
cinema. Ele causou não sei quantos milhares de dólares em atrasos
inúteis e perda de filme. Ele lambrecou inúmeras roupas, atacou a
mesa de comida, e quase derrubou uma câmera de trinta mil dólares no
chão. Eles cortaram os prejuízos nos cortando de cena. Era a velha
rotina conhecida como “Não nos chame, nós chamamos você”.
— Marley — eu disse, ao chegarmos em casa, — esta era sua
grande chance e você a estragou.
Na manhã seguinte, eu ainda estava lamentando nossos sonhos de
estrelato perdido quando o telefone tocou. Era o assistente, dizendonos
para levarmos Marley até o hotel o mais rápido possível.
—Você quer dizer que querem que ele volte? — perguntei.
—Imediatamente — ele respondeu. — Bob quer que ele esteja
na próxima cena.
Cheguei trinta minutos depois, sem conseguir acreditar que
haviam nos pedido para voltar. Gosse estava eufórico. Ele assistira às
tomadas da véspera e não poderia estar mais feliz:
— O cão foi incrível! — ele exclamou. — Simplesmente hilário!
Um gênio da sandice!
Eu me senti orgulhosíssimo.
— Sempre soubemos que ele possuía um talento natural — Jenny
respondeu.
A filmagem continuou em Lake Worth por mais alguns dias, e
Marley continuava sendo o destaque. Ficávamos nos bastidores com os
outros pais e acompanhantes, conversando, trocando idéias, e fazendo
silêncio absoluto quando o diretor assistente gritava:
— Todos prontos para rodar!
Quando ouvíamos a expressão “Corta!”, a festa continuava.
Jenny conseguiu até mesmo que Gary Carter e Dave Winfield, o astro
do Hall da Fama do Beisebol que estava fazendo uma ponta no filme,
assinasse uma bola para cada um dos meninos.
Marley estava chegando ao estrelato. A equipe, especialmente as
mulheres, ficavam pararicando ele. O tempo estava muito quente, e um
dos assistentes recebeu a incumbência exclusiva de seguir Marley por
toda parte com um prato e uma garrafa de água mineral, dando-lhe de
beber à vontade. Todo mundo, pelo que parecia, dava-lhe de comer dos
pratos do bufê. Eu o deixei com a equipe de filmagem por duas horas
enquanto corri no trabalho, e ao voltar encontrei-o todo esparramado
como o Rei Tut, as patas viradas para o ar, com a barriga sendo coçada
pela linda maquiadora.
— Ele é tão gracinha! — ela arrematou.
O estrelato começara a me subir à cabeça também. Passei a me
apresentar como o “dono do cão Marley” e a dizer coisas como “Para o
próximo filme dele, esperamos que ele possa latir”. Durante um
intervalo das filmagens, entrei no saguão do hotel para usar o telefone
público. Marley estava sem a guia e cheirando a mobília a poucos
metros de distância. O gerente, confundindo o meu astro com um cão
qualquer, barrou-o e tentou enxotá-lo pela porta lateral:
— Saia daqui! — ele gritou. — Suma!
— Desculpe-me? — perguntei, colocando a mão sobre o bocal do
telefone e encarando o gerente do hotel. — Você sabe com quem está
falando?
Ele ficou no set de filmagem por quatro dias, e quando nos
disseram que todas as cenas de Marley haviam terminado e seus préstimos
não seriam mais necessários, Jenny e eu nos sentíamos parte da família
da Shooting Gallery. Verdade que éramos os únicos membros não
remunerados da família, mas membros mesmo assim.
—Nós amamos vocês! — exclamou Jenny a todos que pudessem
ouvir, enquanto colocávamos Marley dentro da nossa minivan.
—Mal posso esperar para ver a edição final!
Mas nós esperamos. Um dos produtores nos disse para deixar
passar uns oito meses e então ligar que eles nos remeteriam uma cópia
antecipada do filme. Oito meses depois, quando liguei, no entanto, uma
atendente deixou-me esperando por vários minutos para dizer no final:
— Por que você não liga novamente daqui a dois meses?
Esperei e liguei, esperei e liguei, mas cada vez me pediam para
ligar dali a algum tempo. Comecei a achar que estava assediando, e
poderia imaginar a recepcionista, com a mão cobrindo o telefone e
sussurrando para Gosse, na mesa de edição:
— E o dono daquele cachorro doido varrido novamente. O que
quer que eu diga a ele desta vez?
Por fim, parei de telefonar, resignando-nos de que nunca
veríamos A Ultima Jogada, achando de que ninguém veria, que o projeto
fora abandonado na sala de edição por conta do imenso desafio de tentar
tirar aquele cão estúpido de cada cena. Passaram-se dois anos inteiros
até finalmente ter a chance de ver as qualidades de interpretação de
Marley.
Eu estava na Blockbuster quando, de repente, resolvi perguntar
ao atendente se ele conhecia um filme chamado A Vitima Jogada. Não
apenas ele conhecia, como tinha o filme disponível em estoque. De fato,
fora uma sorte, pois nenhuma cópia havia sido retirada.
Somente depois eu descobri o lado triste da história. Incapaz de
captar um distribuidor nacional, a Shooting Gallery não teve outra
escolha senão relegar a estréia de Marley no cinema ao destino mais
cruel. A Última Jogada fora produzido direto em vídeo. Eu não me
importei. Corri até em casa com uma cópia e gritei para Jenny e as
crianças para se reunirem em torno da televisão. Ao todo, Marley
passava menos de dois minutos em cena, mas devo dizer que foram os
melhores de todo o filme. Nós rimos, choramos e comemoramos!
—Waddy, é você! — gritou Connor.
—Estamos famosos! — berrou Patrick.
Marley, sempre despretensioso, continuou sem se deixar
impressionar. Ele bocejou e arrastou-se debaixo da mesinha de centro.
Quando o filme acabou e começaram a rolar os créditos, ele estava
dormindo a sono solto. Esperamos com a respiração suspensa enquanto
os nomes de todos os atores (humanos) passavam. Por um minuto,
acreditei que nosso cão não iria merecer seu crédito. Mas, de repente,
apareceu, escrito em letras maiúsculas, de um lado a outro da tela,
para que todos vissem: “O cão Marley... Como Ele Mesmo”.
Capítulo 17
Na terra de Bocahontas
Um mês após as filmagens de A Ultima Jogada terem terminado,
dissemos adeus a West Palm Beach e a todas as suas lembranças.
Houve mais dois assassinatos a um quarteirão de casa, mas acabou
sendo a confusão e não o crime o que nos tirou de nosso pequeno
bangalô na Churchill Road. Com duas crianças e toda a tralha que se
carrega junto com elas, estávamos literalmente atulhados até o teto. A
casa havia adquirido o pálido brilho de um outlet da fábrica de
brinquedos Toys “R” Us. Marley pesava 44 quilos, e não conseguia se
mover sem derrubar alguma coisa. A casa tinha dois quartos e
acreditamos, ingenuamente, que os meninos poderiam dividir o
segundo quarto. Mas, quando um começou a acordar o outro,
duplicando nossas aventuras noturnas, transferimos Conor para um
espaço entre a cozinha e a garagem. Oficialmente, aquele era o meu
“escritório de casa”, onde eu tocava violão e pagava contas. Para
qualquer pessoa, no entanto, não tinha desculpa: havíamos colocado o
nosso bebê no corredor. Isso parecia horrível. O corredor estava apenas
um pouco acima da garagem, o que, por sua vez, era quase um sinônimo
para celeiro. E que tipo de pais poria seu filho em um celeiro? O
corredor soava como um local inseguro: um lugar onde passava uma
correnteza de ar — e tudo o mais que viesse com ela. Sujeira, alergias,
insetos, morcegos, criminosos, pervertidos. O corredor era um lugar
onde se poderia esperar encontrar latas de lixo e tênis molhados. E, de
fato, era o lugar onde mantínhamos as vasilhas de água e de comida de
Marley, mesmo depois de termos colocado Conor ali, não porque fosse
um lugar adequado somente para um animal, mas apenas porque era o
lugar onde Marley se acostumara a tê-los.
Nosso corredor-berçário soava como uma descrição de conto de
Charles Dickens, mas na verdade não era tão ruim assim; até era
bastante charmoso. Originalmente, havia sido construído como uma
passagem coberta entre a casa e garagem, e os antigos proprietários a
haviam fechado há alguns anos. Antes de designá-la como berçário,
substituí as telas de plástico por janelas modernas. Pendurei cortinas
novas e apliquei uma nova camada de tinta. Jenny cobriu o chão com
tapetes macios, pendurou quadrinhos alegres, e móbiles interessantes no
teto. Mas mesmo assim, o que parecia? Nosso filho estava dormindo no
corredor, enquanto o cachorro tinha acesso direto ao quarto do casal.
Além disso, Jenny estava agora trabalhando meio expediente para
a seção de cinema do Post e na maior parte do tempo em casa, ela
tentava cuidar dos filhos e desenvolver uma carreira ao mesmo tempo. E
por isso fazia sentido colocá-lo próximo ao meu escritório.
Concordamos que já era hora de mudar.
A vida é cheia de pequenas ironias, e uma delas era o fato de que,
depois de passar meses procurando, escolhemos uma casa na cidade do
sul da Flórida que eu havia ridicularizado publicamente. Este lugar era
Boca Raton que, traduzido do espanhol quer dizer literalmente “Boca do
Rato”. E que boca!
Boca Raton era um rico bastião republicano habitado em grande
parte por recém-chegados de Nova Jersey e Nova York. A maior parte
do dinheiro da cidade era dinheiro novo, e a maioria que possuía esse
dinheiro não sabia gastá-lo sem passar por ridículo. Boca Raton era
uma terra de luxuosos sedãs, carros esportes vermelhos, mansões corde-
rosa apertadas em pequenos terrenos e edifícios com guardas
postados em seus portões. Os homens preferiam calças de linho e
mocassins italianos sem meias, e gastavam uma incrível quantidade de
tempo fazendo ligações de celular a torto e a direito como se estivessem
discutindo os assuntos mais importantes. As mulheres eram
exageradamente bronzeadas, no mesmo tom das bolsas de couro
Gucci que mais gostavam, contrastando a pele escura com o cabelo
tingido em alarmantes tons platinum blonde.
A cidade fervilhava com cirurgiões plásticos, que possuíam as
maiores mansões e os sorrisos mais largos. Para as mulheres bem
conservadas de Boca Raton, os implantes de seios eram uma exigência
tácita para estabelecer residência no local. Todas as mulheres mais
jovens tinham bustos magníficos; todas as mulheres mais velhas tinham
bustos magníficos e plásticas faciais. Escultura de nádegas, plásticas de
nariz, barrigas alisadas, e maquiagem permanente delineavam a
variedade cosmética, dando à população feminina da cidade a estranha
aparência de soldados rasos de um exército de bonecas infláveis
anatomicamente perfeitas. Como eu cantei certa vez numa paródia que
escrevi para uma matéria do jornal, “Lipoaspiração e silicone são os
melhores amigos da mulher de Boca Raton”.
Em minha coluna eu fazia piada ao estilo de vida de Boca,
começando pelo próprio nome da cidade. Os moradores na verdade
nunca a chamavam de Boca Raton. Eles simplesmente se referiam a ela
pelo apelido familiar de “Boca”. E não o pronunciavam como o dicionário
indicava que deveriam, com um “O” mais longo, Bo-ca. Em vez disso,
davam uma inflexão suave, nasal, bem ao estilo de Jersey: “Bouca!”,
assim: “Ah, as árvores cortadas são liiiindas aqui eu Bouuuca!”.
O desenho animado da Disney Pocahontas estava passando nos
cinemas na época, e eu lancei uma paródia com o tema da princesa
indígena, que batizei de “Bocahontas”. Minha protagonista bronzeada
era uma princesa dos subúrbios que dirigia uma BMW cor-de-rosa,
com o busto rijo e cirurgicamente esculpido, apoiado-o sobre a
direção do carro, o que lhe permitia dirigir sem pôr as mãos no
volante, falando em seu celular e ajeitando o cabelo platinado no
espelho retrovisor, enquanto acelerava para o salão de bronzeamento.
Bocahontas vivia em uma tenda de tons pastel, exercitava toda manhã
no ginásio tribal — mas apenas se ela pudesse estacionar a menos de
três metros de distância da porta de entrada — e passava as tardes
procurando casacos de pele, com um cartão AmEx na mão, em sua
área de caça preferida conhecida como Town Center Mall.
— Enterrem meu Visa no Parque Mizner — dizia Bocahontas
solenemente em uma de minhas colunas, uma referência ao shopping
mais badalado da cidade.
Em outra, ela ajusta seu sutiã de pele de animal e faz uma campanha
para fazer uma cirurgia plástica com direito a desconto no imposto de
renda.
Minha caracterização era cruel. Era impiedosa. Era apenas um pouco
exagerada. As Bocahontas da vida real eram a maiores fãs desses artigos,
tentando imaginar qual delas havia inspirado minha heroína ficcional.
(Nunca vou revelar.) Eu era normalmente convidado para falar diante de
associações e grupos comunitários e, invariavelmente, alguém se erguia e
perguntava:
— Por que você odeia tanto Bouca?
Não era que eu odiasse Boca, eu respondia; eu apenas adorava
uma boa piada. Nenhum outro lugar no mundo poderia me dar o
material que eu precisava como a rosada “Boca de Rato”.
Então, parecia fazer sentido que, quando Jenny e eu finalmente
escolhemos uma casa, ela fosse no meio da cidade, entre as propriedades
marinhas do lado leste e as comunidades fechadas por trás de grades do
lado oeste de Boca Raton (que eu caçoava apontando a grande
preocupação dos moradores com seu endereço postal, que ficavam fora
dos limites da cidade no condado de Palm Beach onde ainda não havia
incorporações mobiliárias). Nossa nova vizinhança ficava em uma das
poucas áreas de classe média da cidade, e seus moradores gostavam de
brincar com certo esnobismo às avessas, de que estariam do lado errado
de ambos os lados do trilho. De fato, havia duas linhas de trem, uma
delimitando a região leste da vizinhança, e outra a oeste. A noite,
podíamos ouvir os trens de carga deslizando sobre os trilhos indo e
voltando de Miami, ao nos deitarmos para dormir.
— Você está doida.7 — perguntei a Jenny. — Não podemos nos
mudar para Boca! Vou ser escorraçado da cidade. Eles vão servir minha
cabeça sobre um leito de folhas de alface orgânicas mesclun.
— Ah, deixe disso — ela respondeu. — Você está exagerando de
novo.
Meu jornal, o Sun-Sentinel, era o principal de Boca Raton,
muito à frente do Miami Herald, do Palm Beach Post ou mesmo do
local Boca Raton News em termos de circulação. Meus artigos eram
muito lidos na cidade e nas localidades a oeste e, como minha foto
aparecia acima da coluna, eu era sempre reconhecido. Eu não achei que
estivesse exagerando.
— Eles vão arrancar minha pele e pendurar meu esqueleto em
frente à Tiffany’s — respondi.
Mas nós estávamos procurando fazia meses, e esta era a primeira
casa que se adequava a todas as nossas exigências. Tinha o tamanho
certo pelo preço certo e no local certo, estrategicamente localizada entre
os dois escritórios onde eu dividia o meu tempo. As escolas públicas
eram tão boas quanto as do sul da Flórida, e apesar de todas as suas
superficialidades, Boca Raton tinha excelentes parques, incluindo
algumas das praias oceânicas mais preservadas da área metropolitana
entre Miami e Palm Beach. Com um pouco mais do que um incômodo
pessoal, eu concordei em ir adiante com a compra. Eu me senti como
um agente não tão secreto se infiltrando no acampamento inimigo. O
bárbaro iria passar pelos portões, um indesculpável crítico de Boca
adentrando a festa dos moradores de Boca. Quem poderia culpá-los por
não me querer entre eles?
Quando chegamos, eu me esgueirei pela cidade com sentimento
de culpa, convencido de que todos os olhos estavam me perseguindo.
Minhas orelhas queimavam, imaginando que pessoas sussurrassem ao me
ver passar. Depois que eu escrevi uma coluna dando as boas-vindas a
mim mesmo à vizinhança (e engolindo um monte de sapos ao fazer isso),
recebi inúmeras cartas dizendo coisas como, “Você emporcalha a nossa
cidade e agora quer morar aqui? Que hipócrita sem-vergonha que você
é!” Eu tive de admitir que eles tinham razão. Um colega de trabalho não
conseguiu deixar de me confrontar:
— Então — ele disse, sorrindo maliciosamente —, você decidiu
que a decadente Boca não é um lugar tão ruim assim, afinal? Os
parques, o índice de imposto de renda, as escolas, as praias e o
zoneamento, isso tudo deixa de ser ruim quando se resolve comprar uma
casa, não é?
Tudo que eu pude fazer era me esquivar e dar a mão à palmatória.
Eu logo descobri, no entanto, que a maioria dos meus vizinhos do
lado errado de ambos os trilhos de trem se sentiam solidários com os
ataques por escrito que eu recebia, o que um deles chamou de
“grosseiros e vulgares” . Logo pude me sentir em casa.
Nossa casa, construída na década 1970, tinha quatro quartos, o
dobro da metragem da nossa primeira residência, mas não o mesmo
charme. O lugar, no entanto, podia ser melhorado, e gradualmente
colocamos a nossa marca nele. Arrancamos o carpete que ia de um lado
a outro, e instalamos assoalhos de carvalho na sala de estar e lajotas
italianas nos outros quartos.
Substituímos as horrendas portas de deslizar de vidro por portas de
varanda envernizadas, e eu lentamente transformei o decaído quintal da
frente em um jardim tropical, ostentando arbustos de gengibre,
helicônias e pés de maracujá, que atraíam a admiração de borboletas e
transeuntes.
Os dois melhores aspectos da nossa nova casa não tinham nada a
ver com a casa propriamente dita. Através da janela da sala de estar
podia-se ver um pequeno parque municipal cheio de brinquedos
infantis cercados por altíssimos pinheiros. As crianças adoraram ir lá. E
no quintal dos fundos, exatamente em frente às novas portas
envernizadas, havia uma piscina. Não pensávamos em ter uma,
considerando os riscos para nossos infantes, e Jenny fez o corretor ficar
estarrecido quando ela sugeriu fechá-la. Nossa primeira ação no dia em
que nos mudamos foi cercar a piscina com uma grade de um metro e
vinte de altura, digna de uma prisão de segurança máxima. Os meninos
— Patrick acabara de fazer três anos de idade e Conor tinha dezoito
meses quando nos instalamos na casa — se adaptaram à água como
uma dupla de golfinhos. O parque se tornou uma extensão do nosso
quintal e a piscina uma extensão da estação temperada que tanto
gostávamos. Uma piscina na Flórida — logo nós descobrimos —, fazia a
diferença entre simplesmente suportar os tórridos meses de verão e
passar a desfrutá-los de fato.
Ninguém amava a piscina do quintal dos fundos mais do que
nosso cão de água, aquele orgulhoso descendente dos pegadores de
peixe, que auxiliavam os pescadores cortando as ondas do mar ao
largo da costa da Terra Nova. Se o portão da piscina estivesse aberto,
Marley saltava na água, disparando desde a saleta de televisão,
voando pelas portas duplas e, pulando do chão de tijolos, caía de
barriga, jogando água para todos os lados. Nadar com Marley era uma
aventura potencialmente ameaçadora à integridade física, como se
estivéssemos trombando com um transatlântico. Ele avançaria com
tudo para cima de quem estivesse à sua frente, colocando suas patas
adiante. Imaginava-se que ele fosse desviar no último minuto, mas
simplesmente se arremessava tentando passar por cima. Se
estivéssemos com a cabeça para fora d’água, ele nos empurrava para
baixo.
— O que você pensa que eu sou? Um trampolim? — eu
perguntava, e eu o pegava nos braços para que ele recuperasse seu
fôlego, ainda movendo as patas dianteiras em piloto-automático,
enquanto lambia a água do meu rosto.
Uma coisa que a nova casa não tinha era um abrigo à prova de
Marley. Em nossa antiga casa, a garagem de concreto aparente com
espaço para um carro era um bocado indestrutível, e tinha duas janelas,
o que mantinha o ambiente confortável mesmo quando fazia muito calor
no verão. Nossa casa em Boca tinha uma garagem para dois carros, mas
era inadequada para alojar Marley ou qualquer outra forma de vida que
não suportasse temperaturas acima de 65° C. A garagem não tinha
janelas e ficava muito quente. Além disso, era feita de estuque, não de
concreto, e que Marley já havia provado ser um especialista em pulverizála.
Seus ataques de pânico por causa dos trovões estavam simplesmente
piorando, apesar dos tranqüilizantes.
A primeira vez que o deixamos sozinho em nossa nova casa,
colocamo-lo trancado na lavanderia, ao lado da cozinha, com um
cobertor e uma grande vasilha de água. Quando voltamos algumas horas
depois, ele havia desbeiçado toda a porta. O prejuízo foi pequeno, mas
havíamos empenhado nossas vidas pelos trinta anos seguintes para
comprar essa casa, e sabíamos que isso não era um bom sinal.
—Talvez ele esteja apenas se habituando ao novo ambiente —
eu arrisquei.
—Não há sequer uma nuvem no céu — observou Jenny, cética.
— O que vai acontecer quando realmente cair uma tempestade?
Na vez seguinte que nós o deixamos sozinho, nós descobrimos.
Quando a tempestade se aproximou, encurtamos a nossa saída e corremos
de volta para casa, mas já era tarde. Jenny estava apenas a alguns passos à
minha frente, e quando ela abriu a porta da lavanderia, parou
repentinamente e balbuciou:
— Oh, meu Deus!
Ela disse isso de uma forma como se tivesse visto um corpo
pendurado de cima do lustre. E repetiu:
— Oh, meu Deus!
Olhei por cima do ombro dela e era pior do que eu temia. Marley
estava ali, de pé, arfando freneticamente, com as patas e a boca
sangrando. Havia pêlo por toda a parte, como se os trovões o tivessem
arrancado de seu corpo. O estrago fora pior do que qualquer coisa que ele
fizera antes, e isso já era muito. Uma parede inteira havia sido
esburacada, abrindo um rombo em sua estrutura. Havia lascas de
madeira, gesso e pregos dobrados à volta dele. A fiação elétrica estava
para fora. O chão e as paredes estavam manchados de sangue. Parecia,
literalmente, uma cena de homicídio qualificado.
—Oh, meu Deus! — disse Jenny, uma terceira vez.
—Oh, meu Deus! — eu repeti.
Era tudo que nós conseguíamos dizer.
Depois de alguns segundos parados ali, mudos, apenas olhando
aquela carnificina, eu disse, finalmente:
— O.k., vamos dar um jeito. Tudo dá para consertar.
Jenny me olhou duro; ela conhecia os meus consertos.
— Vou chamar um carpinteiro e mandar fazê-lo de forma
profissional — respondi. — Desta vez, não vou tentar fazê-lo eu
mesmo.
Dei a Marley um dos seus tranqüilizantes e me preocupei se esta
última investida autodestrutiva poderia fazer com que Jenny voltasse ao
seu estado depressivo depois que Conor nasceu. Aquele
comportamento, no entanto, parecia ter desaparecido completamente.
Ela reagiu de forma surpreendentemente despreocupada.
—Algumas poucas centenas de dólares e vai ficar tudo
parecendo novo de novo — ela pipilou.
—Concordo com você — respondi. — Vou dar algumas palestras
extras para fazer mais dinheiro. Vai ser o suficiente para pagar por isto.
Em poucos minutos, Marley começou a dormir. Suas pálpebras
ficaram pesadas e seus olhos ficaram avermelhados, como sempre
acontecia quando ficava dopado. Como se ele fizesse parte de um
concerto do Grateful Dead. Eu detestava vê-lo assim, sempre detestei, e
sempre resisti sedá-lo. Mas os comprimidos o ajudavam a superar o
terror, a superar a ameaça mortal que existia apenas em sua mente. Se
ele fosse humano, eu diria que ele era um psicótico. Ele era alucinado,
paranóico, convencido de que uma força obscura e maligna viria do alto
para levá-lo. Ele se enroscou no tapete em frente à pia da cozinha e
soltou um longo suspiro. Eu me ajoelhei ao lado dele e acariciei seu pêlo
sujo de sangue.
— Ihhh, cachorro... — eu disse. — O que vamos fazer com você?
Sem levantar a cabeça, ele olhou para mim com seus olhos
vermelhos, o olhar mais triste, mais deprimido que eu já vira, parados,
sem se mover, me encarando. Era como se ele estivesse tentando me
dizer alguma coisa algo importante que ele queria que eu entendesse:
— Eu sei — respondi. — Eu sei que você não consegue evitar.
No dia seguinte, Jenny e eu levamos os meninos até a loja de
animais e compramos uma gaiola gigante. Há gaiolas de todos os
tamanhos, e quando eu descrevi Marley para o balconista, ele nos levou
para ver a maior de todas. Era enorme, grande o suficiente para um leão
ficar de pé e zanzar dentro dela. Era feita de inox e tinha duas traves para
segurar a porta firme e um chão de chapa de aço. Esta foi a nossa resposta,
nossa Alcatraz portátil. Conor e Patrick entraram na gaiola e fecharam as
trancas por alguns minutos.
— O que vocês acham, garotos? — perguntei. — Acham que vai
segurar o nosso supercão?
Conor sacudiu a porta da gaiola, colocando seus dedos em volta
das barras como um presidiário e disse:
—Mim na cadeia.
—Waddy vai ser nosso prisioneiro! — Patrick cantarolou,
divertindo-se com a idéia.
Em casa, colocamos a gaiola ao lado da máquina de lavar. Nossa
Alcatraz portátil ocupava quase metade da lavanderia.
— Venha aqui, Marley! — chamei-o quando terminei de montar.
Joguei um biscoito de leite do lado de dentro e ele alegremente
zuniu atrás dele. Eu fechei e tranquei a porta atrás dele, e ele ficou lá
dentro mastigando sua guloseima, sem se abalar com a nova experiência
de vida que ele estava prestes a começar, conhecida nos círculos de
saúde mental como “confinamento involuntário”.
— Esta vai ser sua nova casa quando nós sairmos — eu disse, com
um sorriso estampado.
Marley ficou ali, arfando satisfeito, sem parecer preocupado, e
então ele se deitou e soltou um suspiro.
— Um bom sinal — eu disse a Jenny. — Um muito bom sinal.
Naquela noite, decidimos fazer um teste com a unidade de
segurança máxima de contenção de cachorro. Desta vez, sequer precisei
de um biscoito de leite para atrair Marley para dentro. Simplesmente
abri a porta, assobiei, e ele entrou, batendo o rabo nas laterais da
gaiola.
— Seja um bom menino, Marley — eu recomendei.
Ao colocar os meninos na minivan para sairmos para jantar,
Jenny comentou:
— Sabe?
— O que? — perguntei.
—Esta é a primeira vez desde que o temos que não fico com um
aperto no estômago de deixar Marley sozinho em casa — ela disse. —
Nunca tinha me dado conta de quanto isso me angustiava até agora.
—Sei o que quer dizer — respondi. — Nunca sabíamos o que
iria acontecer, como num jogo de adivinhação: O que o seu cachorro vai
destruir desta vez?
—Ou “quanto sair para ir ao cinema esta noite pode custar a
você”?
—Era uma roleta russa.
—Acho que aquela gaiola será o dinheiro mais bem gasto até
hoje — ela disse.
— Nós deveríamos ter feito isso há muito tempo — concordei. —
Não há preço para a paz de espírito.
Tivemos um excelente jantar fora, seguido de um passeio ao pôrdo-
sol na praia. Os meninos se divertiram na água, caçaram gaivotas,
arremessaram punhados de areia no mar. Jenny estava incrivelmente
relaxada. Apenas de saber que Marley estava em segurança dentro de
Alcatraz, impossibilitado de se machucar sozinho ou de quebrar qualquer
coisa, foi um bálsamo.
— Que maravilhoso passeio fizemos hoje — ela disse, ao
chegarmos à calçada em frente de casa.
Eu estava a ponto de concordar com ela quando notei algo no meu
campo de visão periférica, algo adiante que não estava muito certo. Virei a
cabeça e olhei pela janela ao lado da porta da frente. As venezianas
estavam fechadas, como as deixamos ao sair de casa. Mas a cerca de trinta
centímetros da base da janela, as hastes metálicas estavam separadas e
havia algo entre elas.
Algo preto. E molhado. E pressionado contra o vidro.
— O que...? — eu exclamei. — Como pode... Marley?
Quando abri a porta da frente, ali estava o comitê de recepção
formado por nosso único cão, sacudindo-se no corredor de entrada,
felicíssimo em nos ver em casa novamente. Zunimos pela casa,
checando todos os quartos e armários, procurando rastros da aventura
incerta de Marley. A casa estava inteira, com tudo no lugar. Fomos à
lavanderia. A porta da gaiola estava totalmente aberta, tão aberta
quanto a pedra do túmulo de Cristo na manhã do Domingo de Páscoa.
Era como se um cúmplice oculto tivesse se esgueirado e libertado o
nosso prisioneiro. Eu me abaixei ao lado da gaiola para olhar mais de
perto. As duas travas estavam escancaradas, e — uma dica significativa
— estavam lambuzadas de saliva.
— Parece que ele se soltou de dentro — eu disse. — De alguma
forma, este Houdini aqui lambeu até conseguir sair da sua jaula.
— Eu não acredito! — respondeu Jenny.
Em seguida, ela xingou usando uma expressão que fiquei muito
feliz que as crianças não estivessem por perto para ouvir.
Sempre imaginamos que Marley era tão burro quanto uma alga,
mas ele foi inteligente o suficiente para descobrir como usar sua língua
de modo a levantar e soltar a barra que prendia a trava. Ele havia
aprendido a usar a língua para se libertar, e provou, nas semanas
seguintes, de que era capaz de facilmente repetir a façanha quando
quisesse. Nossa prisão de segurança máxima havia, na verdade, se
tornado em um albergue em regime semi-aberto. Em alguns dias,
voltaríamos para encontrá-lo descansando pacificamente dentro da
gaiola; em outros, estaria esperando por nós na janela da frente.
“Confinamento involuntário” não era um conceito que Marley iria
aprender por si só.
Passamos a ligar ambas as travas a um cabo elétrico pesado. Isso
funcionou por algum tempo. Mas um dia, ao ouvir trovejar ao longe,
voltamos para casa para descobrir que o canto inferior da porta da gaiola
estava escancarado como se tivesse sido aberto por um abridor de lata
gigante, e um Marley em pânico, com as patas novamente
ensangüentadas, preso pela cintura, com metade do corpo para dentro e
a outra metade para fora por aquela estreita abertura. Coloquei a porta
de aço de volta no lugar do melhor modo que pude, e colocamos fios
elétricos, não só nas travas, mas nos quatro cantos da porta. Logo
estávamos reforçando as quinas da gaiola, pois Marley continuava a usar
sua força para conseguir escapar. Dentro de três meses, a gaiola de aço
reluzente que pensamos que fosse inexpugnável, parecia ter sido
vitimado por uma granada. As barras estavam dobradas e torcidas, a
base torta, a porta completamente fora de prumo, os lados capengas.
Continuei reforçando a gaiola o melhor que pude, e ela continuou a
resistir aos assaltos aterradores de Marley. Havíamos perdido o falso
sentido de segurança que a gaiola nos proporcionara. Cada vez que
saiamos, mesmo que por meia hora, imaginávamos se esta seria a vez em
que nosso louco prisioneiro escaparia e rasgaria o sofá, romperia a
parede, e comeria a porta. Era demais para a nossa paz de espírito.
Capítulo 18
Restaurante ao ar livre
Marley não se adaptou a Boca Raton melhor do que eu. Boca
tinha (e com certeza ainda tem) uma quantidade desproporcional dos
menores e mais mimados cães do mundo, o tipo de animais de
estimação que as Bocahontas usavam como acessórios de moda. Eles
eram coisinhas preciosas, em geral enfeitados com laços e perfumados
com água de colônia no pescoço, até unhas pintadas, e você os
encontraria nos lugares mais inusitados — encarando-o de dentro de
uma bolsa de uma desenhista, parado na fila na padaria; dormitando na
toalha de banho de suas donas, na praia; adentrando galhardamente um
antiquário caríssimo com uma coleira cravejada de pedras.
Principalmente, poderiam ser vistos transitando pela cidade em Lexus,
Mercedes-Benz, e Jaguares, reclinados aristocraticamente por trás de
uma direção no colo de suas donas. Eram para Marley o que Grace Kelly
era para Buster Keaton. Eram mignons, sofisticados e de gosto bastante
duvidoso. Marley era grande, desajeitado e um farejador de partes
íntimas. Ele adoraria ser convidado a integrar mundo deles e eles não
estavam nem aí para ele.
Com o seu certificado de adestramento recém-adquirido no
bolsinho. Marley era razoavelmente controlável ao passear na rua,
mas se visse qualquer coisa que ele gostasse, ainda não hesitaria em
avançar sobre ela, sem se importar com a ameaça de estrangulamento.
Quando saíamos para passear pela cidade, sempre valia a pena quase ser
esganado por causa desses cães sofisticados. Toda vez que divisava um,
saía a galope, atirando-se contra ele, arrastando Jenny ou eu atrás na
outra ponta da guia, a coleira apertando o pescoço, fazendo-o engasgar
ou tossir. Todas as vezes, Marley era grosseiramente esnobado, não
apenas pelo minicão de Boca, mas pela dona do minicão de Boca, que
iria agarrar a pequena Fifi, Suzi ou Cheri do chão como se fosse salvála
da bocarra de um jacaré. Marley não se importava. O minicão
seguinte que aparecesse pela frente seria alvo de um novo ataque, sem
se abalar com a esnobada anterior. Como um cara que nunca conseguiu
superar muito bem ser rejeitado por uma garota, eu admirava a
perseverança dele.
Jantar fora era a grande pedida em Boca e muitos restaurantes da
cidade tinham mesas ao ar livre sob palmeiras cujos troncos e copas
eram revestidos por fios com pequeníssimas lâmpadas brancas. Eram
lugares para se ver e ser visto, para tomar um café ao leite e ficar
conversando no celular, enquanto a acompanhante lançava um olhar
vago para o céu. Os casais traziam seus cães e amarravam as guias nas
mesas de ferro, onde ficariam confortavelmente enrodilhados aos seus
pés ou, por vezes, até mesmo se sentar à mesa ao lado de seus donos, a
cabeça erguida em uma postura arrogante, zangados com a falta de
atenção dos garçons.
Um domingo à tarde, Jenny e eu pensamos que seria divertido
levar toda a família para almoçar fora em um dos pontos de encontro
mais populares da cidade.
— Em Boca, como os Bocais — eu disse.
Colocamos os meninos e nosso cachorro na minivan e fomos para
Mizner Park, o shopping center no centro da cidade construído como
uma praça italiana, com calçadas largas e infinitas opções de
restaurantes. Estacionamos o carro e fomos caminhando por um dos
lados a extensão de três quarteirões e dobramos uma esquina, vendo e
nos deixando ver — e que vista devemos ter proporcionado. Jenny
colocara os meninos amarrados em um carrinho de bebê duplo que
poderia muito bem ser confundido por um carrinho de manutenção,
carregando na parte de trás todo tipo de parafernália infantil, de suco de
maçã a lenços umedecidos. Eu a seguia de perto, Marley com o alerta de
minicães ligado, mal se segurando ao meu lado. Ele estava ainda mais
atacado do que o normal, mal se contendo diante da possibilidade de se
aproximar de um desses pequenos puros-sangues que desfilavam à frente
dele, e decidi segurar a guia firme. Sua língua pendia para fora e ele
arfava como uma locomotiva.
Escolhemos um restaurante que tinha um dos cardápios mais em
conta e ficamos esperando até desocupar uma mesa da calçada. Ela era
perfeita — sombreada, com uma vista do chafariz no meio da praça, e
pesada o suficiente, como pudemos nos certificar, para impedir um
labrador de cinqüenta quilos de sair em desabalada carreira. Prendi a
ponta da guia de Marley em uma das pernas da mesa, e pedimos bebidas
para todos: duas cervejas e dois sucos de maçã.
— A um lindo dia com minha linda família — disse Jenny,
erguendo a bebida para um brinde.
Brindamos com um toque de nossas garrafas de cerveja; os
meninos bateram seus copinhos com canudinho. Foi quando
aconteceu. Foi tão rápido, na verdade, que sequer nos demos conta do
que tinha acontecido. Só sabíamos que em um instante estávamos
sentados junto a uma mesa ao ar livre, brindando aquele belíssimo dia e,
no seguinte, nossa mesa havia sumido, espatifando-se contra as outras
mesas, derrubando pedestres inocentes, e guinchando de forma
insuportável, arrastada sobre a calçada de concreto. Naquela primeira
fração de segundo, nenhum de nós percebeu exatamente o que havia
acontecido para que nossa mesa voasse, tentando fugir de nós. Na fração
de segundo seguinte, descobri que não fora a mesa que estava
assombrada, mas nosso cão. Marley disparara, puxando com todo o
peso, esticando a guia como uma corda de piano.
Na fração de segundo em seguida, vi onde Marley queria ir,
arrastando a mesa atrás dele. Quinze metros à frente na calçada, um
delicado poodle francês esticava-se ao lado de sua dona, com o nariz
empinado. Droga, eu pensei, que idéia fixa que ele tem com poodles. Jenny
e eu ficamos ali ainda um segundo a mais, com as bebidas na mão, os
meninos entre nós no carrinho, nossa perfeita tarde de domingo intocada
exceto pelo fato de que nossa mesa estava agora abrindo caminho pela
multidão. No instante seguinte, estávamos de pé, gritando, correndo,
desculpando-nos aos clientes à nossa volta, à medida que passávamos. Fui o
primeiro a agarrar a mesa fujona que arranhava a calçada da praça. Coloquei
as mãos nela, firmei os pés, e puxei-a para trás com tudo. Logo Jenny me
alcançou, puxando-a também. Senti como se fôssemos uma dupla de
mocinhos em um filme de bangue-bangue, usando toda a força para deter
um trem descontrolado antes que se descarrilasse e caísse em uma
ribanceira. No meio de toda essa loucura, Jenny virou-se para trás e
exclamou:
— Já voltamos, meninos!
Já voltamos? Ela fez com que se parecesse tão comum, tão
esperado, tão planejado, como se fizéssemos isso sempre, decidindo de
última hora que, por que não, seria divertido deixar Marley nos
conduzir em um pequeno passeio arrastando uma mesa pela cidade,
talvez parando para ver as vitrines no caminho, antes de voltarmos a
tempo de comer o tira-gosto.
Quando finalmente conseguimos segurar a mesa e fazer Marley
sentar, a poucos metros do poodle e sua dona aterrorizada, virei-me
para olhar para os meninos, e foi quando dei uma boa olhada pela
primeira vez para os rostos de nossos vizinhos de mesa sentados ao ar
livre. Foi como uma cena em uma dessas propagandas de televisão onde
uma multidão se congela em silêncio, esperando ouvir uma palavra
sussurrada dizendo-lhes o que fazer. Os homens pararam no meio da
conversa, os celulares pendurados na orelha. As mulheres arregalaram
os olhos, boquiabertas. Os Bocais estavam espantados. Finalmente,
Conor rompeu o silêncio.
— Waddy, vá em frente! — ele gritou, eufórico.
Um garçom acorreu e me ajudou a arrastar a mesa de volta ao seu
lugar enquanto Jenny segurava Marley, ainda com os olhos fixos no
objeto do seu desejo, com força total.
— Deixe-me pegar um novo jogo de mesa para vocês — disse o
garçom.
— Isso não será necessário — Jenny disse, sem se abalar. —
Vamos pagar por nossas bebidas e ir embora.
Pouco depois de nossa fantástica excursão ao restaurante ao ar livre
em Boca, encontrei um livro na biblioteca chamado Não há cães maus,
escrito pela conhecida treinadora de cães inglesa Barbara Woodhouse.
Como o título dizia, o livro defendia a mesma tese que a primeira instrutora
de Marley, a Sra. Dominatrix, acalentava — que a única diferença entre um
cão incorrigível e outro maravilhoso era um dono fraco, indeciso, que não
sabia o que fazer. Os cães não eram o problema, sustentava a autora; as
pessoas, sim. Dito isso, o livro continuava, descrevendo capítulo depois de
capítulo, alguns comportamentos caninos mais inimagináveis. Havia cães
que uivavam, cavavam, brigavam, transavam e mordiam sem parar. Havia
cães que odiavam homens, e outros que odiavam mulheres; cães que
fugiam de seus donos e outros que atacavam crianças indefesas por ciúmes.
Havia até cães que comiam as suas próprias fezes. Graças a Deus, pensei,
pelo menos ele não come as próprias fezes.
A medida que eu lia, comecei a me sentir melhor em relação ao
nosso labrador incorrigível. Aos poucos, havíamos chegado à firme
conclusão de que Marley era de fato o pior cão do mundo. Agora eu
estava sendo levado a crer que existiam todos os tipos de
comportamentos horrendos que ele não tinha. Ele não era malvado. Ele
não latia muito. Ele não mordia. Ele não atacava outros cães, a não ser
que estivesse apaixonado. Ele considerava qualquer pessoa seu melhor
amigo. O melhor de tudo, ele não comia e nem chafurdava em sujeira.
Além disso, eu percebi, não há cães maus, apenas donos ineptos e
desavisados como Jenny e eu. Era nossa culpa que Marley tivesse se
tornado o que se tornou.
Então, cheguei ao capítulo 24, “Vivendo com um cão
mentalmente instável”. A medida que ia lendo, eu engolia em seco. A
autora descrevia Marley compreendendo-o tão intimamente que eu
poderia jurar que ela estivera com ele dentro de sua gaiola despedaçada.
Ela pormenorizava os padrões de comportamento bizarros e maníacos, o
impulso de destruição quando ficava sozinho, as paredes rompidas e os
tapetes mordidos. Ela descrevia as tentativas dos donos desses animais
“de construir algum lugar dentro da casa ou no quintal que fosse à prova
de cachorro”. Ela também mencionou o uso de tranqüilizantes como
medida última e desesperada (e enormemente ineficaz) para tentar
devolver esses seres mentalmente adoecidos à sua sanidade.
“Alguns nascem instáveis, alguns se tornam instáveis devido às
condições em que vivem, mas o resultado é o mesmo: os cães, em vez
de se tornarem uma alegria para os donos, são uma preocupação, uma
despesa e, em geral, deixam a família toda desesperada”, Barbara
Woodhouse escreveu. Olhei para Marley dormindo aos meus pés e
disse:
— Lembra alguém?
Em um capítulo depois, intitulado “Cães anormais”, Barbara
Woodhouse dizia, resignadamente: “Não há como deixar de dizer que se
desejar manter um cão que fuja ao padrão de normalidade, deverá
também aceitar viver uma existência bastante restringida”. Quer dizer,
como morrer de medo de sair para comprar dois litros de leite? “Embora
você possa amar um cão sub-normal”, ela continuava, “ele poderá se
tornar inconveniente para outras pessoas”. Outras pessoas, como, por
exemplo, em um restaurante ao ar livre em um domingo, em Boca Raton,
na Flórida?
Barbara Woodhouse acertara em nosso cão e em nossa existência
patética e dependente. Tínhamos todos os sintomas: os donos fracos e
infelizes; o cão mentalmente instável e fora de controle; a trilha de
objetos e bens destruídos; os estranhos e vizinhos aborrecidos e
incomodados. Éramos um caso médico citado em livro.
— Parabéns, Marley — eu disse a ele. — Você está classificado
como subnormal.
Ele abriu os olhos ao ouvir seu nome, espreguiçou-se, e virou de
costas, levantando as patas no ar.
Eu esperava que a autora nos brindasse com uma solução feliz
para os donos de cães tão problemáticos, algumas dicas de orientação
que, bem executadas, poderiam transformar mesmo o mais maníaco dos
animais de estimação em um cão de exposição de Westminster. Mas ela
terminou o livro de forma sombria: “Apenas os donos de cães
desequilibrados poderão realmente determinar quando seu cão é
mentalmente saudável ou doente. Ninguém poderá convencer o dono o
que ele deverá fazer com um cão que não seja saudável. Eu, como uma
grande amante de cães, creio que seja mais gentil fazê-los adormecer”.
Fazê-los adormecer? Nossa. No caso de não estar sendo
suficientemente clara, ela acrescentou: “Certamente, quando toda a
ajuda por meio do adestramento e de atendimento veterinário se
exauriu, e não há mais esperança de que o cão tenha uma existência
normal razoável, é mais gentil para o animal e seu dono que sua vida
seja abreviada”.
Até Barbara Woodhouse, amante dos animais, treinadora bemsucedida
de milhares de cães que seus donos consideraram sem
esperança, entendia que alguns cães não tinham futuro. Se dependesse
dela, eles seriam humanamente despachados para aquele grande asilo
canino no meio dos céus.
— Não se preocupe, camarada — eu disse, abaixando-me para
fazer um carinho em sua barriga. — O único sono que vamos fazer nesta
casa é do qual poderemos acordar depois.
Ele suspirou fundo e voltou a sonhar com poodles franceses
tomando a fresca.
Mais ou menos na mesma época descobrimos que nem todos os
labradores são iguais. A raça tem dois subgrupos distintos: os ingleses e
os americanos. A descendência inglesa tende a ser menor e mais
atarracada do que a americana, com cabeças mais quadradas e
personalidade mais calma e afável. São os favoritos para as exposições.
Os labradores que pertencem à linhagem americana são visivelmente
maiores e mais fortes, com aspecto mais liso e mais altos. São
conhecidos por sua energia inesgotável e bom humor, e preferidos no
campo como cães esportivos e de caça. As mesmas qualidades que fazem
com que a linhagem de labradores americanos seja insuperável na
floresta, torna-os grandes desafios em casa. Seu grau de energia
exuberante, alertam os livros, não deve ser subestimada.
Como a publicação de um criador de labradores da Pensilvânia,
Endless Mountain Labradors, explica: “Muitas pessoas nos perguntam qual
a diferença entre os labradores (de campo) ingleses e americanos. Há
tantas diferenças que a AKC está estudando dividir a raça. Há uma
variação de constituição física, bem como de temperamento. Se você
está procurando apenas por um cão de campo para competições de
campo, escolha o labrador de campo americano. Eles são atléticos, alto,
esbeltos, mas têm personalidades muito hiperativas, que não os
transformam nos melhores ‘cães familiares’. Por outro lado, os labradores
ingleses são mais atarracados, mais baixos em sua constituição. Cães
muito doces, calmos, suaves e adoráveis”.
Não demorei muito para descobrir de que linhagem Marley
descendia. Tudo começou a fazer sentido. Havíamos escolhido ao acaso
um tipo de labrador que estaria mais adequado a correr pelos campos o
dia inteiro. Como se isso não bastasse, acabamos por escolher um que
era mentalmente desequilibrado, destrambelhado, sem qualquer
possibilidade de adestramento, de uso de tranqüilizantes, ou psiquiatria
canina. O tipo de espécime subnormal que uma treinadora de cães
experiente como Barbara Woodhouse simplesmente consideraria que
seria melhor que estivesse morto. Muito bem, eu pensei. Vamos ver se
isso é verdade.
Pouco depois de o livro de Barbara Woodhouse ter-nos alertado
para a mente debilitada de Marley, um casal de vizinhos pediu-nos que
tomássemos conta de seu gato por uma semana, enquanto viajariam de
férias. Certamente, dissemos, pode trazê-lo. Comparados com um cão,
gatos eram fáceis. Gatos têm piloto-automático, e esse gato em
especial era tímido e introvertido, especialmente perto de Marley. Ele
se escondia debaixo do sofá o dia inteiro e saía apenas depois que íamos
dormir para comer, manter-se longe do alcance de Marley, e usar sua
caixa para fazer necessidades, que de tão pequena quantidade,
jogávamos discretamente em um canto do pátio cercado em volta da
piscina. E ninguém notava. Marley nem percebeu que o gato estivesse
em casa.
Na metade do tempo em que o gato estaria conosco, acordei um
dia de manhã com a batida alta reverberando pelo colchão. Era Marley,
sacudindo-se de felicidade do lado da cama, o rabo batendo furiosamente
do lado. Whomp! Whomp! Whomp! Estendi a mão para tocá-lo, e ele se
esquivou. Ele se sacudia efusivamente ao lado da cama. O Marley
Mambo.
— Muito bem, o que você tem aí? — perguntei a ele, com os
olhos ainda fechados.
Em resposta, Marley orgulhosamente jogou o seu prêmio sobre os
lençóis, a poucos centímetros do meu rosto. Ainda grogue de sono, levei
um minuto para processar o que aquilo era exatamente. O objeto era
pequeno, escuro, de forma indefinida, envolto em uma camada de areia
grossa. Então o cheiro atingiu o meu nariz. Um odor acre, forte e pútrido.
Eu sentei imediatamente e recuei até Jenny ao meu lado, acordando-a.
Apontei para o presente deixado por Marley, reluzindo sobre os lençóis.
—Isso não é...? — perguntou Jenny, com ar de nojo.
— Sim, é — respondi. — Ele atacou a caixa de excrementos do
gato.
Marley não estaria mais orgulhoso se ele tivesse nos dado o
Diamante Cor-de-Rosa. Como Barbara Woodhouse sabiamente havia
previsto, nosso animal anormal e mentalmente instável entrara na fase
de se interessar por excrementos.
Capítulo 19
Tempestade de raios
Depois que Conor nasceu, todo mundo sabia — com exceção dos
meus pais muito católicos, que estavam rezando por dúzias de netos —
que não pretendíamos ter mais filhos. No meio profissional onde era
comum ter dois empregos para sustentar a casa, um filho era normal,
dois era considerado uma ligeira extravagância, e três era simplesmente
impensável. Especialmente depois da dificuldade de gravidez que
tínhamos passado com Conor, ninguém entenderia por que iríamos
querer nos submeter ao mesmo processo confuso novamente. Mas já
havíamos deixado nossa inexperiência de recém-casados para trás há
muito tempo, quando ainda matávamos plantas por excesso de água. A
paternidade nos caía bem. Nossos filhos nos trouxeram mais alegria do
que qualquer coisa ou pessoa poderia nos trazer. Eles definiam hoje a
nossa vida. Enquanto sentíamos falta de férias para descansar, sábados
preguiçosos lendo romances, e jantares românticos que entravam noite
adentro, passamos a descobrir prazeres em novas formas — em suco de
maçã espirrado e pequenas marcas de nariz nas cortinas da janela ou as
pisadas abafadas de pezinhos descalços aproximando-se pelo corredor ao
amanhecer. Mesmo nos piores dias, em geral conseguíamos encontrar
motivos para sorrir, sabendo agora o que todos os pais, mais cedo ou
mais tarde, descobrem: que estes maravilhosos, breves e brilhantes dias
do início da paternidade — de fraldas, primeiros dentes e palavras
incompreensíveis — não são outra coisa senão um relâmpago na
vastidão de uma vida simples e comum.
Sempre desconversávamos quando minha mãe nos abordava:
— Aproveitem os filhos pequenos enquanto podem, porque antes
que percebam, já terão crescido.
Agora, mesmo passados poucos anos, percebíamos que ela tinha
razão. O que ela dizia era um clichê bem batido, mas um que logo podíamos
ver que estava fundamentado na realidade. Os meninos estavam crescendo
rápido, e a cada semana encerrava um pequeno capítulo que
possivelmente nunca mais se repetiria. Numa semana, Patrick estava
chupando o dedo, na seguinte, ele já havia largado o mau hábito. Numa
semana, Conor era nosso bebê dentro do bercinho; na seguinte, ele era
um menininho usando uma cama infantil como trampolim. Patrick não
conseguia pronunciar o erre corretamente, e quando as mulheres vinham
fazer festa com ele por causa disso, como geralmente faziam, ele colocava
as mãos na cintura, fazia bico e dizia:
— Essas mulheles estão lindo de mim.
Sempre quis gravar em vídeo ele falando assim, mas um dia os
erres saíram perfeitamente, e nunca mais isso se repetiu. Por meses, não
conseguíamos que Conor trocasse seu pijama de Super-Homem. Ele
corria pela casa, com a capa voando atrás dele, gritando:
—Mim Supe-Homin!
E quando ele deixou de fazer isso, eu perdi a chance de tê-lo
filmado para sempre.
Filhos servem de marcadores de tempo escancarados, impossíveis
de ignorar, indicando a marcha incessante da vida que de outro modo
pareceria um infinito mar de minutos, horas, dias e anos. Nossos bebês
estavam crescendo ainda mais rápido do que desejávamos, o que em
parte explica por que, um ano após termos mudado para nossa nova casa
em Boca, começados a tentar engravidar do terceiro filho. Como eu disse
a Jenny:
— Temos quatro quartos agora, por que não?
Bastaram duas tentativas. Não admitíamos que gostaríamos de ter
uma menina, mas claro que queríamos, desesperadamente, apesar de
nossas diversas declarações durante a gravidez de que ter três meninos
seria simplesmente ótimo. Quando o ultra-som finalmente confirmou
nosso desejo secreto, Jenny me abraçou e sussurrou:
— Estou feliz de poder lhe dar uma menininha.
Eu também fiquei muito feliz.
Nem todos os nossos amigos compartilharam nosso entusiasmo. A
maioria recebeu a notícia da nova gravidez com a mesma pergunta
direta:
— Vocês planejaram a gravidez?
Eles simplesmente não conseguiam acreditar que uma terceira
gravidez não fosse senão acidental. Se na verdade não era, como
insistíamos em dizer, então, eles tinham de questionar a nossa decisão.
Uma conhecida foi ao ponto de criticar Jenny por ter me permitido
engravidá-la novamente perguntando, num tom como se estivesse
falando com alguém que tivesse doado todos os seus bens a alguma
seita perdida nas Guianas:
— O que você estava pensando?
Não nos importamos. Em nove de janeiro de 1997, Jenny me deu
um presente de Natal atrasado: uma menininha de três quilos e
dezessete gramas, de bochechas rosadas, a quem demos o nome de
Colleen. Somente agora nossa família parecia completa. Se a gravidez de
Conor foi uma série de estresses e preocupações, esta foi o exemplo da
perfeição, e o parto no Hospital Comunitário de Boca Raton
apresentou-nos a um novo tipo de satisfação do cliente preferencial.
No final do corredor do andar onde ficava o quarto havia uma sala com
serviço gratuito de cappuccino — tão Boca. Quando o bebê finalmente
nasceu, eu estava tão grogue de cafeína que mal conseguia firmar
minhas mãos para cortar o cordão umbilical.
Quando Colleen estava com uma semana de idade, Jenny trouxe-a
para o ar livre pela primeira vez. O dia estava fresco e claro. Os meninos e
eu estávamos no jardim da frente plantando flores. Marley estava preso
por uma corrente a uma árvore do lado, feliz por estar deitado à sombra,
vendo o mundo passar à sua volta. Jenny se sentou na grama ao lado dele
e colocou uma Colleen adormecida em um moisés no chão entre eles.
Depois de alguns minutos, os meninos pediram à mãe que se aproximasse
deles para ver o que eles haviam feito, e nos puxaram pelo jardim,
enquanto Colleen tirava sua soneca na sombra ao lado de Marley.
Passamos por trás de alguns arbustos altos de onde avistávamos o bebê,
mas quem passasse pela rua não conseguiria nos ver. Antes de voltar,
parei e pedi a Jenny que olhasse entre as folhagens. Na calçada, um casal
idoso, que passara em frente à nossa casa, havia parado e estavam
estupefatos com a cena que viam em nosso jardim. A princípio, eu não
tinha certeza o que os fizera parar e ficar olhando. Então, me ocorreu: de
onde estavam, só conseguiam ver um frágil bebê recém-nascido com um
imenso cão amarelo, que parecia estar tomando conta dele sozinho.
Continuamos em silêncio, segurando o riso. Ali estava Marley,
como esfinge, deitado com as patas dianteiras cruzadas, a cabeça erguida,
arfando feliz da vida, virando-se de vez em quando para farejar a cabeça do
bebê. O pobre casal deve ter pensado que estavam diante de um caso de
negligência infantil. Sem dúvida os pais estariam bebendo em algum bar em
algum lugar por perto, deixando seu filho desamparado sob os cuidados do
labrador da vizinhança, que poderia tentar amamentar o bebê a qualquer
momento. Como se ele estivesse sob ataque, Marley, sem mudar de
posição, deitou o queixo sobre o estômago do bebê, sua cabeça maior do
que todo o seu corpo, e soltou um longo suspiro, como se dissesse: “Quando
será que esses dois voltam para casa?”. Ele parecia estar protegendo-a, e
talvez estivesse, embora eu tenha certeza de que ele estivesse apenas
aspirando o odor de suas fraldas.
Jenny e eu ficamos entre os arbustos e sorrimos. O pensamento de
Marley como babá de crianças — Berçário Um Dia de Cão — era engraçado
demais para não aproveitar a piada. Senti-me tentado a esperar e ver
como a cena se desenrolaria, mas então me ocorreu que eles poderiam
acabar chamando a polícia. Havíamos nos livrado de ter armado o berço de
Conor num corredor, mas como iríamos explicar esta cena? (“Bem, policial,
eu sei como parece, mas, na verdade, ele é altamente responsável...”)
Saímos de detrás dos arbustos e acenamos para o casal — e vimos a
expressão de alívio em seus rostos. Graças a Deus, esse bebê não havia sido
abandonado junto ao cachorro, afinal.
— Vocês realmente devem confiar no seu cão — disse a senhora,
com cautela, revelando acreditar que cães sejam ferozes e imprevisíveis,
e jamais deveriam ser deixados tão perto de um recém-nascido.
— Ele ainda não comeu nenhum deles — respondi.
Dois meses depois de Colleen ter nascido, comemorei meu
quadragésimo aniversário do modo mais inóspito, especialmente, por
mim mesmo. A grande data é considerada um momento de virada
importante, quando nos despedimos da juventude incansável e
abraçamos os confortos previsíveis da meia-idade. Se alguma
comemoração de aniversário deveria ser estonteante, eram os quarenta
anos de idade, mas não para mim. Éramos pais responsáveis com três
filhos; Jenny tinha um bebê novo junto ao peito. Havia coisas mais
importantes para nos importarmos agora. Eu chegava em casa do
trabalho, e Jenny estava exausta. Depois de uma rápida refeição com
que tivesse sobrado da véspera, eu dava banho nos meninos e colocavaos
na cama, enquanto Jenny dava de mamar a Colleen. Por volta das
oito e meia da noite, os três estavam dormindo, bem como minha
mulher. Eu abria uma cerveja e sentava-me no pátio, olhando para as
águas azuis iridescentes da piscina acesa. Como sempre, Marley estava
rente ao meu lado, e enquanto eu coçava as orelhas dele, ocorreu-me
que ele estivesse passando pelo mesmo momento de virada em sua
vida. Trouxéramos Marley para casa havia seis anos. Em anos caninos,
isso lhe dava em torno de quarenta e poucos anos de idade humana.
Ele havia passado despercebidamente para a meia-idade, mas ainda
agia como se fosse um filhote. Exceto por algumas infecções de ouvido
insistentes que exigiam a intervenção constante do Dr. Jay, Marley era
saudável. Ele não demonstrava quaisquer sinais de envelhecimento.
Nunca imaginei Marley como um modelo de perfeição, mas sentado ali,
bebericando minha cerveja, dei-me conta de que talvez ele detivesse o
segredo da boa vida. Nunca se deter, nunca olhar para trás, viver cada
dia com impulso, vivacidade, curiosidade e disposição adolescente. Se
pensarmos que somos jovens, então talvez o sejamos, não importa o que
diga o passar dos anos. Não é uma filosofia de vida reprovável, embora
eu não apoiasse destruir sofás e lavanderias.
— Bem, garotão — eu disse, colocando a minha garrafa de
cerveja junto de sua bochecha numa forma de brinde entre espécies. —
Somos só nós dois hoje à noite. Um brinde aos meus quarenta anos!
Um brinde à meia-idade! Um brinde a ser como os grandes cães até o
final da vida!
Em seguida, foi a vez de ele ir dormir também.
Eu ainda estava me lamentando sobre meu aniversário solitário
alguns dias mais tarde quando Jim Tolpin, meu velho colega que
ensinara a Marley a não saltar sobre as pessoas, me ligou
inesperadamente e me perguntou se eu queria beber umas cervejas no
sábado à noite. Jim abandonara o jornalismo para estudar direito mais
ou menos na mesma época em que nos mudamos para Boca Raton, e
não nos falávamos há alguns meses.
— Claro — respondi, sem parar para me perguntar por quê.
Jim foi me buscar às seis horas e me levou até um pub inglês,
onde tragamos algumas cervejas e começamos a colocar nossa vida em
dia. Estávamos nos divertindo muito até o barman nos chamar:
— Tem algum John Grogan aqui? Telefone para John Grogan.
Era Jenny e ela parecia um bocado chateada.
— O bebê está chorando, os meninos estão fazendo a maior
bagunça, e eu acabei de romper a minha lente de contato! — ela
reclamou ao telefone. — Você pode voltar para casa agora?
— Procure se acalmar — respondi. — Fique fria. Já estou
chegando em casa.
Desliguei o telefone e o barman me olhou, solidário, e
simplesmente disse:
— Minhas condolências, parceiro.
— Vamos lá — disse Jim. — Levo você em casa. Quando viramos
no meu quarteirão, havia carros estacionados dos dois lados da rua.
—Alguém está dando uma festa — comentei.
—Parece que sim — respondeu Jim.
—Pelo amor de Deus! — exclamei quando chegamos em frente
de casa. — Veja só isso! Alguém ainda parou na frente da minha
garagem! Não é um absurdo?
Bloqueamos a saída do carro dele, e eu convidei Jim para entrar.
Eu ainda estava resmungando sobre o idiota que havia parado na frente
da minha casa quando a porta da frente se abriu. Era Jenny segurando
Colleen em seu colo. Ela não parecia estar aborrecida. Na verdade, ela
estava com um sorriso de ponta a ponta. Por trás dela, havia um tocador
de gaita de fole usando uma saia kilt. Deus meu! Para onde me
trouxeram? Então, olhei atrás do tocador de gaita de fole e vi que
alguém havia retirado a cerca em torno da piscina e colocado velas
acesas boiando sobre a água. O deque estava lotado com dezenas de
amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Exatamente quando me dei
conta que os carros estacionados na rua pertenciam às pessoas dentro
da minha casa, eles gritaram, em uníssono:
— FELIZ ANIVERSÁRIO, VELHÃO!
Minha mulher não havia se esquecido, no final das contas.
Quando finalmente consegui segurar meu queixo caído, tomei Jenny
em meus braços, beijei o seu rosto, e sussurrei em seu ouvido:
— Mais tarde acerto as contas com você.
Alguém abriu a porta da lavanderia procurando a lata de lixo e
imediatamente Marley escapuliu em modo de festa. Ele atravessou a
multidão roubou um tira-gosto de mussarela com manjericão de uma
travessa, levantou as minissaias de duas mulheres com seu focinho, e
partiu para cima da piscina sem a cerca. Agarrei-o no exato momento em
que ele se preparava para seu mergulho de barriga e arrastei-o de volta
para sua solitária:
— Não se preocupe — eu disse. — Vou guardar o que sobrar para
você.
Não muito depois da festa surpresa — que foi tão boa que a
polícia precisou aparecer à meia-noite para pedir que baixássemos o
volume —, Marley finalmente conseguiu justificar seu imenso medo de
trovões. Eu estava no quintal num domingo à tarde sob um céu escuro
ameaçador, cavando um retângulo de grama para plantar mais legumes.
Jardinagem havia se tornado um hobby sério para mim, e quanto mais
eu melhorava, mais eu queria plantar. Aos poucos, eu estava ocupando
toda a área do quintal. Enquanto eu trabalhava, Marley andava
nervosamente à minha volta, com seu barômetro interno alertando uma
tempestade que se aproximava. Eu também percebi, mas queria
terminar o que eu estava fazendo e imaginei que poderia continuar
trabalhando até sentir as primeiras gotas de chuva. Enquanto eu cavava,
continuava olhando para cima, observando uma incrível e escura
nuvem de raios se formando a quilômetros na direção leste, sobre o
mar. Marley estava ganindo de leve, pedindo-me para largar a pá e
entrar em casa:
— Relaxe — eu disse a ele. — Ainda está longe.
Eu mal havia pronunciado essas palavras quando tive uma estranha
sensação, feito um tremor na nuca. O céu adquiriu um tom verdeacinzentado,
e o ar parecia parado. Que esquisito, pensei, parando o que
estava fazendo, apoiando-me na pá para observar o céu. Foi quando eu
ouvi: um chiado, um estalo, um crepitar de energia, como às vezes se
ouve debaixo de linhas de força de alta tensão. O som de uma faísca me
envolveu, seguido de um breve silêncio. Nesse momento, percebi que
algo de errado iria acontecer, mas eu não tive tempo para reagir. Na
fração de segundo seguinte, o céu ficou branco, ofuscante, e uma
explosão, como nunca ouvira antes, nem em nenhuma outra tempestade,
nem de fogos de artifício, ou em demolição de prédios, estourou em meus
ouvidos. Uma parede de energia me atingiu no peito como um atacante
de rúgbi invisível. Quando reabri os olhos, nem sei quantos segundos
depois, eu estava de bruços no chão, com areia na boca, minha pá jogada
a metros de distância, e a chuva me encharcando. Marley também estava
abaixado, grudado no chão, e quando ele me viu levantar a cabeça, ele se
sacudiu desesperado na minha direção, arrastando-se sobre a barriga,
como um soldado tentando passar por baixo de uma cerca de arame
farpado. Quando chegou perto de mim, subiu em cima de mim, e
enterrou o focinho no meu pescoço, lambendo-me freneticamente. Olhei
em torno por um segundo, tentando me achar, e pude ver onde o
relâmpago atingira o pára-raios no canto do quintal e descarregou sua
energia pelo cabo até a casa a cerca de seis metros de onde eu estava. O
medidor elétrico na parede ficou totalmente chamuscado.
— Vamos! — eu gritei.
Então Marley e eu nos levantamos, correndo pela chuva em
direção da porta dos fundos, enquanto novos relâmpagos caíam à
nossa volta. Não paramos até estar em segurança dentro de casa.
Ajoelhei-me no chão, ensopado, retomando o fôlego, e Marley se atirou
sobre mim, lambendo meu rosto, mordiscando minhas orelhas, atirando
baba e pêlo em tudo à sua volta. Ele estava lívido de medo, tremendo
sem parar, a saliva escorrendo pelo seu queixo. Eu o abracei, tentando
acalmá-lo.
— Minha nossa, essa passou perto! — eu exclamei, percebendo
que estava tremendo também.
Ele olhou para mim com aqueles olhos grandes e empáticos que eu
jurava que quase falavam. Eu podia jurar que entendia o que ele estava
tentando me dizer: “Eu tenho tentado alertá-lo por vários anos que esse
negócio pode matá-lo. Mas quem me dava ouvidos? Agora você vai me
levar a sério?”.
O cão tinha razão. Talvez o seu medo de trovões não fosse tão
irracional assim, no final das contas. Talvez os seus ataques de pânico
aos primeiros sinais de aproximação de uma tempestade fosse sua
forma de nos dizer que as violentas tempestades de raios da Flórida, as
mais mortais no país, não deveriam ser ignoradas. Talvez todas aquelas
paredes depredadas, portas arrebentadas e tapetes rasgados fosse seu
modo de tentar construir um abrigo anti-raio onde todos nós
pudéssemos entrar. E como nós lhe havíamos recompensado? Com
reprimendas e tranqüilizantes.
Nossa casa estava às escuras, o ar-condicionado, os ventiladores de
teto, as televisões e todos os aparelhos elétricos estavam desligados. O
circuito de segurança fundira-se completamente. Logo seríamos a
felicidade de qualquer eletricista. Mas eu estava vivo bem como meu
companheiro de tempestades. Jenny e as crianças, protegidos dentro do
quarto de brincar nem tinham se dado conta de que a casa havia sido
atingida. Estávamos todos bem e vivos. Que mais importava? Eu peguei
Marley no colo, todos os seus 44 kg de peso nervoso, e fiz-lhe uma
promessa naquele momento: nunca mais eu iria desprezar seu medo
desta força mortal da natureza.
Capítulo 20
A praia dos cães
Como colunista de jornal, eu sempre estava à cata de histórias
interessantes ou instigantes sobre as quais pudesse escrever. Eu
escrevia três colunas por semana, o que significava que um dos maiores
desafios do meu trabalho era manter um constante fluxo de assuntos
novos. Toda manhã eu começava destrinchando os quatro jornais
diários do Sul da Flórida, circulando e recortando tudo que valesse a
pena destacar. Depois, bastava encontrar meu ponto de vista ou meu
ângulo sobre a questão. Minha primeira crônica veio direto das
manchetes. Um carro em alta velocidade com oito adolescentes a bordo
havia capotado em um canal ao lado do pântano. Apenas a motorista de
dezesseis anos, sua irmã gêmea e outra garota escaparam do desastre
depois que o carro submergiu. Era uma grande história que eu queria
abordar, mas qual seria meu ponto de vista? Fui dirigindo até o local do
acidente esperando encontrar inspiração, e antes mesmo de estacionar
o carro me ocorreu uma idéia. Os colegas dos cinco adolescentes
mortos haviam transformado o asfalto em um emaranhado de
mensagens escritas com tinta spray. O local estava coberto de um lado a
outro por mais de um quilômetro, e a emoção dessas manifestações era
palpável. Com o caderninho em punho, comecei a copiar as palavras.
“Juventude desperdiçada”, dizia uma mensagem, com uma seta pintada
em direção à água. Então, no meio da catarse comunitária, encontrei:
um pedido público de desculpas da jovem motorista, Jamie Bardol. Ela
escreveu em letras redondas garrafais, num garrancho de criança:
“Queria ter morrido no lugar deles. Me perdoem”. Eu havia encontrado
o gancho para minha coluna.
Nem todos os assuntos eram assim tão trágicos. Quando uma
aposentada recebia uma ordem de despejo de seu condomínio porque
seu cãozinho havia excedido o peso limite para animais de estimação,
eu corria para contar a história do peso-pesado. Quando uma senhora
confusa batia com o carro em uma loja enquanto tentava estacionar,
felizmente sem ferir ninguém, eu estava logo atrás, falando com as
testemunhas. Meu trabalho me levou, certa vez, a um acampamento de
imigrantes; à mansão de um milionário; e a uma esquina perdida no
meio da cidade. Eu amava a variedade dos temas, eu amava as pessoas
que encontrava e, mais do que qualquer outra coisa, eu amava a quase
total liberdade que me era permitida para ir onde e quando quisesse em
busca de qualquer assunto que atiçasse minha curiosidade.
O que meus chefes não sabiam era que, por trás de minhas
excursões jornalísticas, havia um propósito secreto: usar minha posição
como colunista para engendrar tantos “feriados a trabalho” sem culpa
quanto fossem possíveis. Meu lema era “quando o colunista se diverte, o
leitor se diverte”. Por que se esfalfar em uma audiência sobre reajuste de
impostos, em busca de um furo jornalístico, quando se poderia estar
sentado, digamos, ao ar livre em um bar em Key West, com uma
bebida na mão? Alguém tinha de padecer para contar a história dos
saleiros perdidos em Margaritaville; claro que poderia ser eu. Eu
ansiava por qualquer desculpa para passar o dia à toa, de preferência
de shorts e camiseta, atrás de vários assuntos divertidos e recreacionais
que eu me convencia de que o público precisava que alguém fosse
investigar. Toda profissão tem seus instrumentos de ofício, e os meus
incluíam um caderno de anotações, um punhado de canetas e uma
toalha de praia. Comecei a carregar bloqueadores solares e uma sunga
de banho no carro como equipamento de trabalho.
Gastei um dia zunindo pelos Everglades em um barco aéreo e
outro fazendo trilha à beira do Lago Okeechobee. Gastei outro dia
andando de bicicleta pela Estrada Estadual A1A, à margem do Oceano
Atlântico, para poder relatar, em primeira mão, sobre a proposta pavorosa
de partilhar o asfalto com peixes confusos e turistas distraídos. Passei um
dia inteiro mergulhando acima dos perigosos recifes na costa de Key Largo
e mais um em um campo de tiro experimentando várias munições, com
uma vítima por duas vezes de assalto que jurava que jamais seria
assaltada novamente. Passei mais um dia boiando em um barco de pesca
comercial e outro tocando com uma banda de roqueiros cinqüentões. Um
dia, simplesmente subi em uma árvore e fiquei sentado por horas
desfrutando da solidão; um incorporador tencionava arrancá-la para
construir um condomínio de edifícios, e eu imaginei que o mínimo que eu
poderia fazer era conceder a este último remanescente da natureza no
meio da selva de concreto um enterro adequado. Meu maior golpe foi
quando convenci meus editores a me enviar para as Bahamas, para que
eu pudesse estar no limiar de um ciclone em formação que abria
caminho em direção ao Sul da Flórida. O ciclone desviou para o mar sem
causar nenhum dano, e eu passei três dias na praia em um hotel de luxo,
bebericando pina colada, debaixo do mais perfeito céu azul.
Foi nesse veio de pesquisa jornalística que tive a idéia de levar
Marley para passar um dia na praia. Ao longo de toda a costa do Sul da
Flórida, onde há uma alta densidade demográfica, várias cidades
haviam abolido a presença de animais, e por justo motivo. A última
coisa que os freqüentadores de praia queriam era cocô de cachorro
revolvido no meio da areia e cães sacudindo-se perto deles, enquanto
tentavam pegar um bronzeado. Avisos de PROIBIDO CACHORROS
espalhavam-se por quase todas as praias.
Havia um lugar, no entanto, uma pequena nesga de areia pouco
conhecida, sem avisos ou cartazes, sem proibições ou restrições em
relação a quadrúpedes amantes de água. A praia estava escondida em
um bolsão não-incorporado do Condado de Palm Beach entre West
Palm Beach e Boca Raton, estendendo-se por uma centena de metros,
por trás de uma duna coberta de relva ao final de uma rua sem saída.
Não havia estacionamento, banheiros, salva-vidas, apenas um pedaço
inexplorado de areia branca displicente estendida diante do mar semfim.
Ao longo dos anos, ganhou fama por boca-a-boca entre os donos de
animais de estimação como um dos últimos refúgios seguros para seus
cães virem se esbaldar à beira d’água no Sul da Flórida, sem correr o
risco de serem multados. O lugar não tinha um nome oficial; extraoficialmente,
todo mundo conhecia como Praia dos Cães.
A Praia dos Cães era usada de acordo com um punhado de regras
estabelecidas implicitamente ao longo do tempo, postas em prática pelo
consenso geral entre os donos de cães que a freqüentavam, e impostas
pela pressão solidária e um código moral tácito. Os donos de cães
policiavam-se uns aos outros para que os novatos não se sentissem
tentados a violá-lo, punindo os infratores com olhares de reprovação e, se
necessário, algumas palavras bem escolhidas. As regras eram poucas e
simples: cães ferozes deveriam caminhar com uma guia na coleira; todos
os demais poderiam correr soltos. Os donos deveriam trazer sacos
plásticos para recolher quaisquer dejetos que seu cão produzisse. Todo
lixo, incluindo as fezes recolhidas nos sacos plásticos, deveria ser
descartado em lugar apropriado. Cada cão deveria ter um suprimento de
água potável. Principalmente, a água do mar não poderia ser poluída. A
etiqueta recomendava que os donos, ao chegar, caminhassem com seus
cães ao longo das dunas, longe da beira d’água, até que seus animais se
aliviassem. Então, poderiam ensacar os dejetos e seguir em segurança para
o mar.
Eu havia ouvido falar da Praia dos Cães, mas nunca a visitara.
Agora eu tinha a minha desculpa. Este resquício esquecido da antiga
Flórida que desaparecia rapidamente, aquela que existira antes da
chegada dos altos edifícios de condomínios à beira-mar, parquímetros
ao longo da praia, e valores imobiliários astronômicos, estava no
noticiário. Uma comissária do condado favorável ao desenvolvimento da
região começara a reclamar sobre este trecho de praia nãoregulamentado
e perguntar por que as regras que se aplicavam a outras
praias do condado não se aplicavam a esta. Ela deixou bem clara a sua
intenção: banir as criaturas peludas, melhorar o acesso público e abrir
este valioso refúgio à população em geral.
Imediatamente me prendi à história pelo que ela era: uma perfeita
desculpa para passar um dia na praia durante o expediente. Em uma
perfeita manhã de junho, troquei minha gravata e pasta de trabalho por
sunga e sandálias de dedo, e segui com Marley pela Intracoastal
Waterway. Enchi o carro com todas as toalhas de praia que pude
encontrar — que serviram apenas para a viagem de ida. Como sempre,
a língua de Marley estava pendurada do lado de fora, lançando saliva
para todo o lado. Parecia que eu estava viajando com uma cachoeira.
Eu lamentava que não houvesse um limpador de pára-brisas do lado de
dentro.
Seguindo o código da Praia dos Cães, estacionei a vários
quarteirões de distância, onde eu não seria multado, e comecei a longa
caminhada pela sonolenta vizinhança de casas da década de 1960, com
Marley andando à frente. No meio do caminho, uma voz mal-humorada
exclamou:
— Ei, você aí com o cachorro!
Gelei, achando que seria execrado por um vizinho enfezado que
queria que eu levasse meu cachorro para longe da praia dele. Mas era
outro dono de cachorro, que se aproximou de mim com seu imenso cão
preso à guia e me estendeu um abaixo-assinado para que os comissários do
condado preservassem a Praia dos Cães. A propósito, nós poderíamos ter
parado para conversar, mas do modo como Marley e o outro cão estavam
se cercando, eu sabia que seria uma questão de segundos antes que, das
duas uma: (a) eles se atracassem em combate mortal, ou (b) se unissem em
casamento. Puxei Marley para trás e continuei caminhando. Ao chegarmos
na entrada da praia, Marley se abaixou na grama e esvaziou o intestino.
Perfeito. Pelo menos, esta pequena gentileza já estaria cumprida. Ensaquei
a prova e disse a ele:
— Agora, vamos para a praia!
Ao atingirmos o alto da duna, surpreendi-me de ver diversas
pessoas passeando à beira d’água como seus cães presos nas guias. O
que significava aquilo? Eu esperava ver os cães correndo livremente em
harmonia.
— Um assistente do xerife acabou de passar por aqui — explicoume
um sorumbático dono de cachorro. — Ele disse que a partir de
agora eles vão estar obrigando o uso da guia e irão multar se
encontrarem os cães correndo soltos.
Parecia que eu havia chegado muito tarde para desfrutar
inteiramente dos simples prazeres da Praia dos Cães. A polícia, sem
dúvida, cedendo às forças políticas ligadas à pressão contrária à Praia
dos Cães, estava apertando o laço. Andei, como esperado, com Marley
pela beira d’água com os outros cães e seus donos, sentindo-me mais
como se estivesse em um exercício no pátio da prisão do que na última
praia livre do Sul da Flórida.
Retornei com ele até a toalha e estava servindo uma tigela de
água para Marley, de um cantil que trouxera comigo, quando sobre a
duna surgiu um homem tatuado, sem camisa, trajando uma calça jeans
bem cortada e botas de trabalho, e um pit bull musculoso com cara de
bravo na ponta de uma corrente pesada ao seu lado. Pit bulls são
conhecidos por serem agressivos, sendo pública e notória sua presença
nesta época do ano no Sul da Flórida. Eles eram a raça de cães preferida
de membros de gangues, rudes e grosseiros, em geral, treinados para
serem malvados. Os jornais estavam cheios de relatos de ataques
despropositais de pit bulls por vezes, fatais, tanto contra animais
quanto contra pessoas. O dono do cão deve ter notado que eu me
encolhi, porque ele logo exclamou:
— Não se preocupe. Matador é amigável. Ele não se bate com outros
cães.
Eu estava começando a suspirar de alívio quando ele acrescentou
com visível orgulho:
— Mas você deveria vê-lo dilacerar um porco selvagem. Vou te
contar ele consegue abatê-lo em apenas quinze segundos!
Marley e o pit bull Matador de Porcos puxaram as guias,
circulando, farejando-se furiosamente. Marley nunca entrara em uma
briga em sua vida, e era tão maior que os outros cães que jamais fora
desafiado por nenhum deles. Mesmo quando um cão tentava começar
uma briga, ele nem ligava. Respondia, simplesmente, com um olhar
divertido, virava-se, balançava o rabo com um sorriso feliz e idiota na
cara. Nunca havia sido confrontado por um matador profissional, por
um malandro de rua. Imaginei Matador avançando sem prévio aviso na
garganta de Marley sem querer soltar. Seu dono não estava preocupado
com isso.
— A menos que seja um porco selvagem, ele só irá lambê-lo — ele
disse.
Eu disse a ele que os policiais tinham acabado de passar por ali e
iriam multar quem deixasse de usar a guia na coleira de seus cachorros.
— Creio que estejam fechando o cerco — comentei.
— Isso é besteira! — ele exclamou, cuspindo na areia. — Tenho
trazido meus cães nesta praia há anos. Não precisamos usar guias na
Praia dos Cães. Que besteira!
Ao dizer isso, soltou a pesada corrente e Matador trotou pela praia
e mergulhou na água. Marley sentou-se sobre as patas traseiras, ansioso.
Ele olhava para Matador e depois para mim. Ele olhava de novo para
Matador e de volta para mim. Suas patas batiam nervosamente sobre a
areia, ganindo baixinho sem parar. Se pudesse falar, eu sabia o que ele
estaria me perguntando. Olhei para o alto das dunas; nem um policial à
vista. Olhei para Marley. “Por favor! Por favor! Por favorzinho! Serei
bonzinho! Eu prometo!”
— Vamos, solte-o! — disse o dono de Matador. — Um cão não
nasceu para passar a vida na ponta de uma corda!
— Ora, que se dane! — eu exclamei, e soltei a guia da coleira.
Marley disparou até a água, lançando areia em cima de nós. Ele se jogou
sobre a onda assim que ela arrebentou, derrubando-o debaixo d’água.
Um segundo depois, levantou a cabeça para fora da rebentação, e assim
que se pôs de pé, jogou-se sobre o pit bull Matador de Porcos, caindo com
ele. Eles rolaram debaixo d’água e eu prendi a respiração, imaginando se
Marley teria ultrapassado o limite que incitaria a fúria homicida
antilabrador do pit bull. Mas quando emergiram novamente, balançavam
o rabo, com um sorriso estampado na cara. Matador se jogava sobre as
costas de Marley e Marley sobre as costas de Matador, mordiscando a
garganta um do outro. Correram e brincaram de pique por toda a praia,
jogando água para todo o lado. Eles correram, dançaram, lutaram,
mergulharam. Acho que nunca, jamais testemunhei, nem antes, nem
depois, urna alegria mais autêntica.
Os outros donos de cachorro seguiram nosso exemplo e logo
todos os cães, cerca de doze, estavam correndo soltos. Todos os cães se
deram muito bem; todos os donos estavam seguindo as regras. Era a
Praia dos Cães como ela deveria ser. Esta era a verdadeira Flórida,
imaculada e livre, a Flórida de tempos remotos e esquecidos, uma época
de um lugar mais simples, imune à marcha do progresso.
Houve apenas um pequeno problema. A medida que a manhã
avançava, Marley continuou bebendo água salgada. Eu o seguia de
perto com a tigela de água potável, mas ele estava muito distraído para
beber. Várias vezes eu o forçava a beber e enfiava seu nariz dentro da
tigela, mas ele rejeitava a água fresca como se fosse vinagre, apenas
preocupado em se juntar ao seu novo melhor amigo, Matador e os
outros cachorros.
A beira d’água, ele parava de brincar para beber mais água
salgada.
— Pare com isso, seu tonto! — eu gritei. — Você vai acabar...
Antes que eu terminasse de falar, aconteceu. Seus olhos se
vidraram e um som horrível emergiu de sua garganta. Ele arqueou as
costas e começou a abrir e fechar a boca várias vezes, como se estivesse
tentando cuspir algo do estômago. Seus ombros se levantaram, seu
abdômen se contorceu. Eu me apressei em terminar minha frase:
— ...vomitando!
Quando eu disse esta palavra, Marley cumpriu minha profecia,
cometendo a mais terrível heresia da Praia dos Cães.
GAAAAAAAAACK!
Corri para puxá-lo para fora da água, mas era tarde demais. Ele
começou a colocar tudo para fora. GAAAAAAAAACK! Pude ver a
comida de cachorro da véspera flutuando nas águas,
surpreendentemente muito parecida com o que era antes de ser
deglutida à noite. Entre as bolinhas de ração havia grãos de milho não
digeridos que ele roubara do prato das crianças, uma tampa de galão
de leite e a cabeça decepada de um. minúsculo soldadinho de plástico.
O vômito não durou mais do que três segundos, e assim que seu
estômago ficou vazio, levantou a cabeça alegremente, parecendo
totalmente recuperado, sem nenhum efeito colateral, como se dissesse:
“Agora que me livrei disso, quem quer pegar um jacaré?”. Olhei nervoso
em volta, mas ninguém pareceu notar. Os outros donos de cachorro
estavam ocupados com seus próprios cães mais abaixo na praia, uma
mãe mais próxima estava concentrada em ajudar sua filha de dois anos
a construir um castelo de areia, e os poucos banhistas espalhados
estavam deitados de costas, tomando sol, com os olhos fechados.
Graças a Deus, pensei, enquanto eu dispersava os restos de vômito de
Marley, jogando água discretamente com os pés, para apagar a prova do
crime. Que vergonha eu teria passado! De qualquer forma, pensei,
apesar da violação técnica da Regra N° 1 da Praia dos Cães, na
realidade, não causamos nenhum mal. Afinal, era apenas comida mal
digerida; os peixes iriam agradecer a refeição, não? Eu até peguei a
tampinha do galão de leite e a cabeça do soldadinho e guardei-as no
bolso para não sujar a praia.
— Ouça bem, você — eu disse num tom sério, agarrando Marley
pelo nariz e forçando-o a me olhar diretamente. — Pare de beber água
salgada. Que tipo de cachorro é você que não sabe que não pode beber
água salgada?
Pensei em arrastá-lo da praia e encurtar nossa aventura, mas ele
parecia estar se comportando agora. Não poderia haver mais nada em
seu estômago. O estrago estava feito, e saímos impunes- Eu o soltei e ele
correu pela praia para se juntar a Matador.
O que eu deixei de levar em conta foi que, enquanto o estômago
de Marley tinha sido totalmente esvaziado, seu intestino, não. O sol
estava refletindo sobre a água e me cegando, e eu apertei os olhos para
observar Marley brincando com os outros cachorros. Enquanto eu o
olhava, de repente, ele se afastou e começou a andar em círculos no
raso. Eu conhecia muito bem a manobra circular. Era o que ele fazia
todas as manhãs no quintal de casa ao se preparar para evacuar. Era
como um ritual para ele, embora nem todo lugar servisse para ele
entregar o presente que estava a ponto de ofertar ao mundo. Às vezes, a
caminhada em círculos se prolongaria por mais de um minuto enquanto
procurava pelo lugar perfeito. E agora ele estava andando em círculos
no raso na Praia dos Cães, naquela histórica fronteira onde nenhum
cachorro havia ousado evacuar antes. Ele estava começando a se
abaixar. E desta vez ele tinha uma platéia. O papai de Matador e vários
outros donos de cachorro estavam de pé a poucos metros dele. A mãe e
sua filha desviaram a atenção de seu castelo de areia para olhar para o
mar. Um casal se aproximou, caminhando de mãos dadas pela beira
d’água.
— Não! — eu sussurrei. — Por favor, Deus, não!
—Ei! — alguém gritou. — Segure seu cachorro!
—Não o deixe evacuar! — alguém mais gritou.
Enquanto as vozes gritavam alarmadas, os banhistas se
levantavam para ver do que se tratava toda aquela comoção.
Disparei, correndo para agarrá-lo antes que fosse tarde demais. Se
eu pudesse alcançá-lo e tirá-lo daquela posição agachada antes que seu
intestino começasse a funcionar, eu seria capaz de interromper toda
aquela humilhação, pelo menos o suficiente para carregá-lo a salvo para
o outro lado da duna de areia. Ao correr na direção dele, aconteceu o que
somente poderia ser descrito como uma experiência extracorpórea.
Enquanto corria, eu me via de cima, a cena se desenrolando embaixo,
quadro a quadro. Cada passo parecia durar uma eternidade. Cada
passada batia na areia provocando um estampido surdo. Meus braços
elevaram-se no ar; meu rosto se contorceu numa expressão de agonia.
Enquanto corria, eu percebia os quadros se sucedendo em câmera lenta à
minha volta: uma jovem banhista, segurando o sutiã de seu biquíni sobre
os seios com uma das mãos e a outra sobre a boca; a mãe levantando sua
filha do chão e afastando-se da beira d’água; a expressão de desgosto dos
donos dos cachorros, apontando para Marley; o dono de Matador, com
seu pescoço túrgido, inflado, gritando. Marley terminara de andar em
círculos e se agachara, olhando para cima como se estivesse orando. E
ouvi minha própria voz se elevar acima do alarido, desenrolando-se em
um estranho, gutural e distorcido urro:
— Nãããàãããããããããããooooo!
Eu quase o peguei, estando a poucos passos dele:
— Marley, não! — exclamei. — Não, Marley, não! Não! Não!
Não!
Não adiantou. Ao alcançá-lo, ele explodiu em uma diarréia
aquosa. Todo mundo deu um passo para trás, recolhendo-se, refugiandose
em um lugar mais alto. Os donos agarraram seus cachorros. Os
banhistas ergueram suas toalhas. Então, tudo acabou. Marley deixou a
água e passou para a areia, sacudiu-se com prazer, e virou-se para olhar
para mim, arfando de felicidade. Tirei um saco plástico do meu bolso e
segurei-o no ar, sem poder fazer nada. Logo vi que não ajudaria muito. As
ondas continuaram batendo espalhando os dejetos de Marley pela água e
deixando-os sobre o raso.
— Cara — disse o dono de Matador num tom de voz que me fez
perceber como os porcos selvagens devem se sentir no momento do
golpe final e fatal de Matador —, isso não foi legal.
Não, não fora nada legal. Marley e eu havíamos violado a regra
sagrada da Praia dos Cães. Havíamos sujado a água, não apenas uma,
mas duas vezes, e estragado a manhã de todo o mundo. Era o momento
de bater em rápida retirada.
— Desculpe! — murmurei para o dono de Matador, enquanto
prendia a guia na coleira de Marley. — Ele bebeu muita água salgada.
Ao entrar de volta no carro, joguei uma toalha sobre Marley e
esfreguei-o com vigor. Quanto mais eu esfregava, mais ele se sacudia, e
logo fiquei coberto de areia, água e pêlos. Eu queria zangar com ele.
Queria esganá-lo. Mas agora era tarde. Além disso, quem não teria
passado mal depois de beber meio litro de água salgada? Como em
muitos de seus infortúnios, este não acontecera por mal nem fora
premeditado. Não aconteceu como se ele tivesse desobedecido a uma
ordem ou se comportado assim para me humilhar. Ele não conseguiu
evitar o que aconteceu. E verdade que acontecera no lugar e na hora
errados, e na frente de todas as pessoas erradas. Eu sabia que ele era
uma vítima de sua capacidade mental reduzida. Ele foi o único cão em
toda a praia suficientemente burro para beber água salgada. Meu cão
sofria de deficiência mental. Como poderia condená-lo por isso?
— Pode ir desfazendo essa cara de alegria — eu disse, colocando-o
no banco de trás do carro.
Mas ele se sentia satisfeito. Ele não iria se sentir mais feliz se eu
tivesse comprado uma ilha do Caribe para ele. Mas ele não sabia que
esta seria a última vez que iria colocar suas patas no mar. Seus dias — ou
melhor, suas horas — como vagabundo de praia estavam contadas.
— Bem, Cão do Mar — eu disse, dirigindo de volta para casa, —
você conseguiu desta vez. Se os cachorros forem banidos da Praia dos
Cães, saberemos por quê.
Isso levaria mais alguns anos para ocorrer, mas, no fim, foi
exatamente o que aconteceu.
Capítulo 21
Vôo para o Norte
Pouco depois de Colleen ter completado dois anos de idade, sem
querer desencadeei uma série de fatos que nos levariam a deixar a
Flórida. E fiz isso com um clique de mouse. Depois de ter acabado de
escrever minha coluna do dia mais cedo, eu teria meia hora de tempo
livre enquanto esperava pelo meu editor. De súbito, resolvi dar uma
olhada na página de uma revista que eu tinha começado a assinar
praticamente desde que compramos nossa casa em West Palm Beach. A
revista se chamava Organic Gardening, e fora lançada em 1942 pelo
excêntrico J. I. Rodale; ela acabou se tornando a bíblia do movimento
de volta às origens que floresceu nos anos 1960 e 1970.
Rodale tinha sido um comerciante da cidade de Nova Iorque
especializado em interruptores elétricos, até que ficou doente. Em vez
de procurar a medicina moderna para solucionar seus problemas, ele
deixou a cidade e se mudou para uma pequena fazenda perto do
pequeno município de Emmaus, na Pensilvânia, e começou a arar a
terra. Ele sentia uma profunda desconfiança em relação à tecnologia, e
acreditava que os métodos modernos de cultivo e plantio que
predominavam no país, praticamente todos baseados no uso de
pesticidas e fertilizantes químicos, não seriam os salvadores da
agricultura americana como se proclamava. A teoria de Rodale era de
que os produtos químicos estavam lentamente envenenando a terra e
seus habitantes. Ele começou a fazer experiências com técnicas de
agricultura que imitavam a natureza. Em sua fazenda, construiu grandes
depósitos de adubo feito a partir do material produzido por plantas em
decomposição, que usava como fertilizante e nutriente natural para o
solo depois que esse material havia se transformado em um riquíssimo
húmus escuro. Ele cobria a terra dos canteiros de sua plantação com
uma grossa camada de palha para cobrir as sementes e manter a
umidade. Ele plantava trevos e alfafa na entressafra e depois os cobria
arando a terra para que devolvessem seus nutrientes ao solo. Em vez de
pulverizar para matar insetos, soltava milhares de joaninhas e outros
insetos benéficos, que devoravam os predadores. Ele era meio doido,
mas suas teorias falavam por si só. Sua plantação floresceu assim como
sua saúde, e ele alardeava seus sucessos nas páginas de sua revista.
Na época em que comecei a ler Organic Gardening, J. I. Rodale
já morrera havia muito tempo, bem como seu filho, Robert, que
transformou o negócio de seu pai, a Rodale Press, em uma companhia
editora de vários milhões de dólares. A revista não era bem escrita nem
editada com esmero; dava a impressão de ser feita por um grupo de
seguidores da filosofia de Rodale, agricultores sérios e dedicados, porém
ainda amadores, sem qualquer formação profissional em jornalismo;
mais tarde, descobri que isso era verdade. De qualquer forma, a
filosofia orgânica fazia cada vez mais sentido para mim, principalmente
depois que Jenny perdera um bebê, e suspeitávamos que poderia ter
algo a ver com os pesticidas que havíamos usado. Na época em que
Colleen nasceu, nosso quintal era um pequeno oásis orgânico em um
mar suburbano de plantações cobertas por pesticidas químicos. As
pessoas que passavam sempre paravam para admirar nossa próspera
plantação na frente da casa, que eu cuidava cada vez com mais paixão,
e sempre eles faziam a mesma pergunta:
— O que você coloca para que elas fiquem tão bonitas?
Quando eu respondia “nada”, olhavam estupefatos, como se
tivessem se deparado com algo inexplicavelmente subversivo na
passiva, homogênea e conformista Boca Raton.
Naquela tarde em meu escritório, passeei pelas telas no site
organicgardening.com e acabei achando um botão que dizia
“Oportunidades de Carreira”. Cliquei, mas ainda não sei por quê. Eu
adorava meu trabalho como colunista; adorava a interação diária que
tinha com os leitores; adorava a liberdade que tinha para escolher meus
próprios assuntos e ser tão sério ou tão frívolo quanto bem entendesse.
Adorava a redação e as pessoas idealistas, neuróticas, informais e
cerebrais que ela atraía. Adorava estar no meio da história mais
importante do dia. Eu não tinha a menor vontade de trocar os jornais
diários por uma editora sonolenta no meio do nada. Ainda assim,
comecei a xeretar os postos de trabalho da Rodale, por pura
curiosidade, mas no meio do caminho congelei. A Organic Gardening,
a revista carro-chefe da empresa, estava procurando um novo editorchefe.
Meu coração descompassou. Eu sempre sonhara com a enorme
diferença que um jornalista decente poderia fazer em uma revista, e ali
estaria a minha chance. Era loucura; era ridículo. Uma carreira
editando matérias sobre couve-flor e matéria composta? Por que eu iria
querer fazer isso?
A noite, contei a Jenny sobre a vaga, esperando que ela me dissesse
que eu estava louco só de pensar no assunto. Em vez disso, ela me
surpreendeu, encorajando-me a mandar um currículo. A idéia de trocar
o calor e a umidade e o congestionamento e o crime do Sul da Flórida
por uma vida mais simples no campo a atraía. Ela sentia falta das quatro
estações e das colinas. Sentia falta das folhas caindo e dos narcisos da
primavera. Sentia falta dos pingentes de gelo e da cidra de maçã. Ela
queria que nossos filhos e, por mais ridículo que parecesse, nosso
cachorro, vivenciassem as maravilhas de uma tempestade de neve.
—Marley jamais correu atrás de uma bola de neve — ela disse,
alisando o pêlo dele com o pé descalço.
—Agora sim, temos um bom motivo para uma mudança na
carreira — eu disse.
—Você deveria fazer isso só para satisfazer sua curiosidade —
ela acrescentou. — Para ver o que acontece. Se eles a oferecerem a
você, ainda poderá rejeitar a proposta.
Eu tinha de admitir que compartilhava de seu sonho de retornar
para o norte. Por mais que tivesse aproveitado nossos doze anos no Sul
da Flórida, eu tinha nascido no norte e nunca deixara de sentir falta de
três coisas: a ondulação das colinas, as mudanças de estação e o
descampado. Mesmo depois de ter-me apaixonado pela Flórida, com
seus invernos suaves, sua comida picante e sua cômica mistura de
gente irascível, nunca deixara de sonhar em um dia voltar ao meu
paraíso particular — não um lote minúsculo no coração da
hiperpreciosa Boca Raton, mas um verdadeiro terreno onde poderia
cavar a terra, cortar minha lenha e caminhar pela floresta com o cão ao
meu lado.
Ofereci-me para a vaga, convencendo-me de que seria apenas um
furo n’água. Duas semanas depois, o telefone tocou e era Maria Rodale,
neta de J. I. Rodale. Eu havia enviado minha carta para o “Prezado
Departamento Pessoal” e fiquei tão surpreso por estar recebendo um
telefonema da dona da empresa, que lhe pedi que repetisse seu
sobrenome. Maria adquirira um interesse pessoal pela revista que seu
avô criara, e estava decidida a fazê-la recuperar a antiga fama. Ela
acreditava que precisaria de um jornalista profissional e não de mais um
honesto agricultor orgânico para fazer isso e queria publicar artigos mais
importantes, mais polêmicos sobre meio-ambiente, engenharia genética,
agricultura industrial, e o fervilhante movimento dos produtos
orgânicos.
Cheguei para a entrevista de emprego com a intenção de jogar
duro, mas fui fisgado assim que saí do aeroporto e entrei na primeira
estrada sinuosa de mão dupla. A cada curva, via um cartão postal: uma
casa de fazenda com paredes de pedra deste lado, uma ponte coberta ali.
Riachos de águas geladas enveredavam-se pelas colinas, e a terra
cultivada se estendia até o horizonte como uma túnica dourada de
Deus. Também não ajudou o fato de ser primavera e todas as árvores do
Lehigh Valley estarem inteiramente floridas. Ao ver um solitário sinal de
PARE no meio do campo, saí do carro alugado e fiquei de pé no meio do
asfalto da estrada. Até onde via em qualquer direção, não havia nada
além de florestas e prados. Nenhum carro, nenhuma pessoa, nenhum
edifício. Assim que achei o primeiro telefone público, liguei para Jenny:
— Você não vai acreditar neste lugar — eu disse.
Dois meses depois, os funcionários da empresa de mudança
estavam colocando tudo o que tínhamos em nossa casa de Boca Raton
em um caminhão gigantesco. Outra empresa veio buscar nosso carro e
a minivan. Entregamos as chaves da casa aos novos proprietários e
passamos nossa última noite na Flórida dormindo no chão da casa de
um vizinho, Marley esparramado entre nós.
— Acampando em casa! — Patrick gritou.
Na manhã seguinte, acordei cedo e levei Marley para o que seria
seu último passeio em solo da Flórida. Ele fungou, puxou e saracoteou,
enquanto contornávamos o quarteirão, parando para erguer a pata em
todos os arbustos e caixas de correio do caminho, todo feliz, sem saber da
abrupta mudança que estava a ponto de se abater sobre ele. Eu havia
comprado uma caixa de plástico rijo para viagem para transportá-lo no
avião e, seguindo o conselho do Dr. Jay, abri a mandíbula de Marley
após nosso passeio, e o fiz engolir uma dose dupla de tranqüilizantes.
Quando nosso vizinho nos deixou no Aeroporto Internacional de Palm
Beach, Marley tinha os olhos vermelhos e estava excepcionalmente
calmo. Poderíamos tê-lo amarrado a um foguete que ele não iria se
importar.
No terminal, o clã dos Grogan se apresentou em plena forma:
dois meninos correndo em círculos, um bebê faminto no carrinho, dois
pais estressados, e um cão totalmente dopado. A nossa volta, na fila,
estava o restante de nossa coleção de bichos: dois sapos, três peixes
dourados, um caranguejo, nosso caracol Sluggy e uma caixa de grilos in
natura para alimentar os sapos. Enquanto esperávamos na fila para o
check-in, montei a caixa de plástico rijo. Era a maior que conseguira
encontrar, mas ao chegar ao balcão, a atendente de uniforme olhou para
Marley, depois para a caixa e de novo para Marley, e disse:
— Não podemos permitir que esse cachorro vá nessa caixa. Ele é
grande demais para ela.
— A loja de animais me informou que esta era a caixa para “cães
grandes” — tentei apelar.
— O DAC exige que o cão possa ficar de pé dentro da caixa e
consiga se mover — ela explicou.
E acrescentou, cética:
— Vamos, tente colocá-lo de pé.
Abri a porta e chamei Marley, mas ele não estava com disposição
para caminhar por conta própria até aquela cela móvel. Empurrei-o,
cutuquei-o, acariciei-o e tentei convencê-lo, mas nada adiantou. Onde
estavam os biscoitos para cachorro quando se precisava deles? Procurei
em meus bolsos algo para poder atraí-lo, e encontrei uma caixinha de
balas de hortelã. Melhor seria impossível. Peguei uma e coloquei na
frente do nariz dele.
— Quer uma balinha, Marley? Vá pegar a bala! — e a atirei dentro
da caixa.
Como era de se esperar, ele mordeu a isca e entrou na caixa
alegremente.
A moça tinha razão: ele não cabia. Ele teve de se abaixar para a
cabeça não bater no teto; mesmo com o nariz tocando o fundo, seu
traseiro ficava para fora da porta. Abaixei seu rabo e fechei a porta,
forçando-o para dentro.
—O que foi que eu disse? — eu disse, esperando que ela
achasse adequado.
—Ele tem de conseguir se mover — ela respondeu.
—Dê meia-volta, garoto — pedi a ele, assobiando de leve. —
Vamos lá, dê meia-volta.
Ele me olhou por cima do ombro, com os olhos dopados, a cabeça
batendo no teto, como se esperasse instruções de como realizar tal
proeza.
Se ele não conseguisse dar meia-volta, a companhia aérea não iria
permitir que ele embarcasse no avião. Olhei para o relógio. Tínhamos
apenas doze minutos para passar pela segurança, atravessar o terminal
e embarcar.
—Venha cá, Marley! — eu disse, desesperado. — Vamos lá!
Estalei os dedos, bati na porta de metal, emiti sons com a boca.
—Vamos lá! — supliquei. — Dê meia-volta.
Eu estava a ponto de me ajoelhar e implorar quando ouvi um
barulho, quase imediatamente seguido pela voz de Patrick.
—Opa! — ele disse.
—Os sapos estão soltos! — Jenny exclamou, saltando para cima
deles.
— Froggy! Croaky! Voltem aqui! — os meninos gritavam um
uníssono.
Minha mulher estava no chão, de quatro, andando pelo terminal,
enquanto os sapos pulavam à frente dela. Quem passava parava para olhar.
De longe, não dava para ver os sapos, só aquela louca com uma sacola de
fraldas descartáveis dependurada no pescoço, engatinhando por toda
parte como se ela tivesse começado o dia já meio grogue. Pela sua
expressão, eu diria que eles estariam esperando que ela começasse a uivar
a qualquer momento.
— Me dê licença um minutinho — eu pedi a ela, o mais calmo
possível, à atendente da companhia aérea, e me juntei a Jenny, também
de quatro.
Depois de nos empenharmos para entreter a multidão de
passageiros da manhã, finalmente capturamos Froggy e Croaky no
momento em que eles estavam prontos para dar seu salto final para a
liberdade para fora das portas automáticas. Ao nos virarmos de volta,
ouvi um barulhão saindo de dentro do engradado de cachorro. A caixa
toda se sacudiu e saltou pelo saguão, e quando olhei dentro, vi que
Marley havia conseguido se virar de alguma forma.
—Vê? — perguntei à supervisora de bagagem. — Ele consegue
dar a meia-volta, não há problema.
—Está certo — ela respondeu, franzindo a testa. — Mas você
está forçando a barra.
Dois funcionários colocaram Marley dentro do engradado sobre
um carrinho e o levaram embora. Corremos para o avião e conseguimos
alcançá-lo na hora em que as aeromoças começavam a fechar a porta.
Nesse momento, me ocorreu que, se tivéssemos perdido o avião, Marley
iria chegar sozinho à Pensilvânia, protagonizando um pandemônio em
potencial que eu nem gostaria de imaginar.
— Esperem! Estamos aqui! — exclamei, empurrando Colleen à
minha frente, os meninos e Jenny vindo logo atrás de mim.
Assim que nos acomodamos nos assentos, eu finalmente me
permiti suspirar aliviado. Havíamos conseguido despachar Marley.
Havíamos recapturado os sapos. Havíamos conseguido pegar o avião.
Próxima parada: Allentown, Pennsylvania. Agora eu poderia relaxar.
Pela janela, vi quando uma carreta se aproximou carregando um
engradado de cachorro.
—Olhem — eu disse para os meninos. — Lá está Marley.
Eles acenaram pela janela e gritaram:
—Oi, Waddy!
Assim que os motores foram acionados e a aeromoça começou a
dar as instruções de segurança a bordo, peguei uma revista. Foi quando
percebi que Jenny ficara imóvel na fileira à minha frente. Então,
também ouvi. Sob os nossos pés, saindo de dentro das entranhas do
avião, dava para ouvir um som, abafado, porém inconfundível. Era um
som choroso, um chamado primitivo que começou baixinho e foi
aumentando. Ai, meu Deus, ele está uivando. Só para que fique
registrado, os labradores não uivam. Beagles uivam. Lobos uivam.
Labradores não, pelo menos, não muito bem. Marley tinha tentado
uivar duas vezes, ambas em resposta ao barulho de uma sirene de
polícia, jogando a cabeça para trás, formando um “O” com os lábios, e
emitindo o som mais patético que eu já ouvira, mais parecido com um
gargarejo do que um chamado selvagem. Mas agora, sem dúvida
alguma, ele estava uivando.
Os passageiros pararam de ler seus jornais e revistas, ergueram a
cabeça. Uma aeromoça que estava distribuindo os travesseiros parou e
mexeu a cabeça, curiosa. Uma mulher do outro lado do corredor, olhou
para o marido e disse:
— Ouça! Você está ouvindo isso? Acho que é um cachorro.
Jenny olhou fixamente para a frente. Eu afundei os olhos na
revista. Se alguém nos perguntasse, negaríamos qualquer propriedade.
— Waddy está triste — Patrick observou.
Não, filho, eu quis corrigi-lo, um cachorro desconhecido que
nunca vimos nem sabemos que existe está triste. Mas eu apenas afundei
meu rosto ainda mais dentro da revista, seguindo o conselho do imortal
Richard Milhous Nixon: negação plausível. Os motores a jato aceleraram
e o avião taxiou pela pista, abafando o lamento triste de Marley. Eu podia
imaginá-lo lá embaixo, preso, no escuro, sozinho, assustado, confuso,
dopado, sem conseguir sequer ficar em pé. Pensei no barulho dos motores
que, na mente torturada de Marley, poderia apenas parecer mais um
ataque de raios e trovões prontos para exterminá-lo. Pobre rapaz. Não
queria admitir que ele fosse meu, mas eu sabia que iria passar o vôo
inteiro preocupado com ele.
O avião mal decolara quando ouvi outro barulho e, desta vez, foi
Conor quem disse:
— Opa!
Olhei para baixo e depois, novamente, grudei os olhos na revista.
Negação plausível. Após vários segundos, olhei em volta, furtivamente.
Quando tive certeza de que ninguém estava me olhando, inclinei-me
para a frente e sussurrei no ouvido de Jenny:
— Não olhe agora, mas os grilos escaparam.
Capítulo 22
Na terra do lápis
Nós nos estabelecemos em uma casa térrea situada em um
terreno de oito mil metros quadrados esparramados ao lado de uma
colina bem íngreme. Ou talvez fosse uma pequena montanha; os
habitantes da região pareciam discordar nessa questão. Nossa
propriedade tinha uma campina onde podíamos colher framboesas, um
bosque onde eu podia cortar lenha para alegrar meu coração, e um
pequeno riacho com uma nascente onde os meninos e Marley logo
descobriram que poderiam ficar totalmente sujos de lama. Havia uma
lareira e infinitas possibilidades de plantar, e uma igrejinha branca com
uma torre na outra colina, visível da janela da nossa cozinha quando as
folhas caíam da árvore no outono. Nosso novo lar veio até com um
vizinho saído de uma agência de atores, um homem que parecia um
urso com barba cor de laranja, que morava em uma casa de campo de
pedra construída por volta de 1790 e que, aos domingos, gostava de se
sentar na varanda e atirar com seu rifle contra os arbustos por
diversão, para desespero de Marley. No primeiro dia em nossa nova
casa, ele apareceu com uma garrafa de vinho caseiro de cereja silvestre e
uma cesta com as maiores amoras pretas que eu já vira. Ele se
apresentou e disse que se chamava Digger. Pelo apelido, presumimos
que Digger ganhava a vida como escavador. Se precisássemos fazer
algum buraco ou tirar terra de algum lugar, ele explicou, era só gritar,
que ele apareceria com uma de suas máquinas enormes.
— E se acertarem algum veado com seu carro, venham me
buscar — ele disse piscando o olho. — Vamos cortá-lo e dividir a carne
antes que algum guarda florestal saiba o que aconteceu.
Sem dúvida, não estávamos mais em Boca.
Havia apenas uma coisa faltando em nossa nova existência
bucólica. Minutos depois de chegarmos na entrada de carro da nova
casa, Conor olhou para mim, com os olhos cheios de lágrimas e disse:
— Pensei que iríamos encontrar um monte de lápis na
“Pencilvania”!
Para nossos meninos, agora com sete e cinco anos, isso era quase
um rompimento de acordo. Por causa do nome do estado que estávamos
adotando — Pensilvânia — os dois pensaram que encontrariam vários
lápis — de pencil, em inglês — brilhantes pendurados em árvores e
arbustos, como se fossem frutas prontas para serem colhidas. Ficaram
desapontados ao descobrir que não era nada disso.
O que faltava em material escolar em nossa propriedade, seria
compensado por gambás, doninhas fedidas, marmotas e hera daninha,
que florescia à beira do bosque, e subia pelas árvores, dando-me urticária
só de ver. Certa manhã, olhei pela janela da cozinha, enquanto preparava
a cafeteira, e dei de cara com um magnífico cervo de oito chifres olhando
pra mim. Em outra manhã, uma família de perus selvagens passou
fazendo barulho pelo quintal. Houve um sábado em que Marley e eu
estávamos andando pelos bosques da colina ao lado de casa quando
demos com um caçador de martas colocando armadilhas. Um caçador de
martas! Quase no meu quintal! O que o pessoal de Bocahontas não daria
por esse conhecimento.
A vida no campo era ao mesmo tempo tranqüila, charmosa, e
apenas um pouco solitária. Os germânicos da Pensilvânia eram
educados, mas cautelosos com estranhos. E nós, definitivamente,
éramos estranhos. Depois de todas as filas e aglomerações do Sul da
Flórida, era de se esperar que eu adorasse aquela solidão. Em vez disso,
pelo menos nos primeiros meses, fiquei ruminando sobre nossa decisão
de nos mudarmos para um lugar onde aparentemente tão poucos
queriam viver.
Marley, por outro lado, não tinha qualquer dúvida. Com exceção
dos disparos da arma de Digger, o novo estilo de vida no campo
ajustava-se para ele de forma esplêndida. Para um cachorro com mais
energia do que bom-senso, o que é que poderia ser ruim? Ele corria pelo
gramado, atirava-se contra as amoreiras, pulava no riacho, A missão de
sua vida era pegar um dos inúmeros coelhos que faziam da minha horta
seu prato de salada particular. Ele descobria um coelho mordendo uma
hortaliça e disparava pela colina para persegui-lo em desatino, as orelhas
ao vento, as patas batendo no chão, a respiração resfolegante. Ele era tão
discreto quanto uma fanfarra, e nunca conseguia se aproximar menos do
que três metros sem que sua presa se refugiasse no mato em segurança.
Fiel à sua marca registrada, ele continuava um otimista incorrigível,
acreditando que o sucesso estaria à sua espera na tentativa seguinte.
Ele dava meia-volta balançando o rabo, sem desanimar e, cinco minutos
depois, fazia tudo de novo. Felizmente, ele também não tinha muita sorte
na perseguição às doninhas fedidas.
O outono chegou e, com ele, uma travessura completamente nova:
atacar o monte de folhas. Na Flórida, as árvores não perdiam as folhas
no outono, e Marley se convencera de que as folhas que caíam agora do
céu eram um presente especial para ele. Enquanto eu juntava as folhas
amarelas e alaranjadas com um ancinho, em montes gigantescos,
Marley ficava sentado e assistia pacientemente, aguardando sua vez,
esperando o momento certo para atacar. Só depois que eu tivesse feito
um monte realmente grande, ele viria furtivamente para a frente, todo
agachado. Dava alguns passos e parava, erguia as patas da frente,
sentindo o ar como um leão na savana africana preparando-se para
emboscar uma gazela imprudente. Então, quando eu abaixava o ancinho
para admirar minha obra, ele avançava, saltando pelo gramado, atirandose
nos últimos centímetros e pousava de barriga no meio do monte,
rosnando, rolando, agitando-se, coçando-se e mordendo e, por razões
que eu desconhecia, tentava caçar o rabo, e não sossegava até que o
monte que eu juntara com tanto cuidado estivesse totalmente
esparramado de novo. Então, ficava sentado no meio da sua obra, com
pedaços de folhas pendurados no pêlo, olhando para mim com uma
expressão satisfeita, como se sua contribuição fizesse parte do processo
de recolher as folhas.
Esperávamos que nosso primeiro Natal na Pensilvânia fosse
branco. Jenny e eu tivemos de usar uma série de razões para convencer
Patrick e Conor de que estariam deixando sua casa e seus amigos na
Flórida em troca de algo melhor, e uma das maiores delas fora a promessa
de que teriam neve. E não era qualquer tipo de neve, mas uma grande
quantidade, fofinha, corno em um cartão postal, que caía do céu em
flocos grandes e silenciosos, formando montanhas, com a consistência
perfeita para se fazer bonecos de neve. E a neve do dia de Natal, bem,
essa era a melhor de todas, o Santo Graal da vida no inverno no norte.
Nós até fizemos uma montagem com uma fotografia para mostrar a eles
o que seria acordar na manhã de Natal com uma paisagem
completamente branca, imaculada, exceto pelas marcas solitárias do
trenó do Papai Noel do lado de fora de casa.
Na semana que iria culminar com o grande dia, os três se
sentaram diante da janela por várias horas, olhando fixamente o céu
carregado, como se assim pudessem fazer que ele se abrisse e soltasse
sua carga.
— Vamos lá, neve! — exclamavam as crianças.
Eles nunca haviam visto; Jenny e eu há anos não víamos.
Queríamos neve, mas as nuvens não estavam dispostas a ceder. Poucos
dias antes do Natal, a família inteira se apertou na minivan e fomos até
uma fazenda há menos de um quilômetro, onde cortamos um
pinheirinho e ganhamos uma volta de charrete e cidra quente de maçã
em volta de uma fogueira. Era o momento clássico durante a época de
festas de final de ano do norte que tanto sentíamos falta enquanto
vivíamos na Flórida, mas ainda faltava uma coisa. Onde estava a
maldita neve? Jenny e eu estávamos começando a nos arrepender de
termos valorizado tanto a primeira nevasca. Enquanto levávamos para
casa a árvore que havíamos acabado de cortar, com o doce aroma de sua
seiva impregnando o interior do carro, as crianças começaram a
reclamar de que tinham sido enganadas. Primeiro não encontraram os
lápis, e agora não viam neve; que outras mentiras seus pais não teriam
contado a eles?
Na manhã de Natal havia um tobogã novinho em folha debaixo
da árvore e equipamentos de neve suficientes para uma excursão até a
Antártica, mas a vista que tínhamos da janela ainda era de galhos sem
folhas, gramados dormentes e campos de milho amarronzados. Acendi a
lareira, deixando o ambiente agradavelmente aquecido, e disse às
crianças que fossem pacientes. A neve viria quando tivesse de vir.
Chegou o ano-novo e ela ainda não tinha caído. Até Marley
parecia apreensivo, andando inquieto e olhando pela janela,
suspirando suavemente, como se ele também achasse que havia caído
no conto do vigário. Os meninos voltaram para a escola depois dos
feriados, e nada ainda. Na mesa do café da manhã, olharam para mim
contrariados, mostrando que achavam que haviam sido traídos pelo
próprio pai. Comecei a dar desculpas esfarrapadas, dizendo coisas do
tipo:
—Talvez haja meninos e meninas em algum outro lugar precisando
de neve mais do que a gente.
— É, é claro, pai — respondeu Patrick.
Três semanas depois do início do ano, a neve finalmente veio me
salvar do meu purgatório de culpa. Chegou à noite, depois que todos
haviam ido dormir e Patrick foi o primeiro a soar o alarme, correndo
para nosso quarto ao amanhecer e abrindo totalmente as cortinas.
— Olhem! Olhem! — ele exclamou. — Ela veio!
Jenny e eu sentamos na cama para admirar nossa absolvição.
Uma cobertura branca se espalhava pelas colinas, pelos campos de
milho, pelos pinheiros e pelos telhados estendendo-se até o horizonte.
— É claro que veio — respondi, sem querer dar muita
importância. — O que eu disse a vocês ?
A neve tinha quase um metro de altura e continuava caindo.
Conor e Colleen não demoraram a aparecer, o dedão enfiado na boca,
arrastando seus cobertores pelo corredor. Marley acordou e se
espreguiçou, batendo o rabo em tudo, sentindo a excitação. Eu me virei
para Jenny e disse:
— Acho que pensar em voltar a dormir, nem pensar.
E quando Jenny assentiu com a cabeça, então eu me virei para as
crianças e gritei:
— Está certo, coelhinhos da neve, vamos nos vestir.
Pela meia hora seguinte, colocamos roupas, fechamos zíperes,
calçamos botas, enfiamos gorros e luvas. Quando terminamos, as
crianças pareciam múmias e nossa cozinha, os bastidores das
Olimpíadas de Inverno. E concorrendo na Prova Bobo no Gelo Morro
Abaixo, na categoria de Cães de Grande Porte, estava... Marley, o Cão.
Eu abri a porta da frente e, antes que qualquer um saísse, Marley passou
zunindo por nós, derrubando a encapotada Colleen. Quando suas patas
tocaram aquela coisa toda branca estranha — Ih, molhado! Ih, frio! —
ele mudou de idéia e tentou subitamente mudar de direção. Quem já
dirigiu um carro na neve sabe que frear repentinamente e fazer uma
conversão em “U” nunca é uma boa idéia.
Marley derrapou, girando de trás para a frente. Ele caiu
ligeiramente de um lado, antes de se levantar novamente a tempo de dar
uma cambalhota nos degraus da varanda da frente e bater de cabeça
na neve. Quando se equilibrou um minuto depois, parecia um biscoito
gigante polvilhado de açúcar. Com exceção do nariz preto e dos olhos
castanhos, ele estava totalmente coberto de branco. O Abominável
Cachorro das Neves. Marley não sabia o que fazer com aquela
substância estranha. Enfiou o nariz e soltou um espirro violento. Enfiou
a cabeça e esfregou a cara. Então, como por encanto, como se ele tivesse
recebido uma dose gigante de adrenalina, disparou pelo quintal
executando uma série de saltos mortais, intermediados por
cambalhotas ou mergulhos de cabeça. A neve era quase tão divertida
quanto bagunçar o lixo do vizinho.
Acompanhando-se o rastro de Marley pela neve conseguia-se
começar a entender como funcionava sua mente tortuosa. Seu rastro
tinha inúmeras viradas, voltas e desvios repentinos, com giros erráticos
em forma de oito, fazendo espirais e saltos triplos, como se estivesse
seguindo algum algoritmo bizarro que só ele conseguiria entender. Logo
as crianças começaram a imitá-lo, girando, rolando e brincando,
amontoando neve em todas as dobras e fendas de suas roupas. Jenny
nos trouxe torradas amanteigadas, canecas de chocolate quente e um
aviso: a escola tinha cancelado as aulas. Eu sabia que tão cedo não
conseguiria tirar da garagem meu Nissan com tração nas duas rodas,
sem mencionar as subidas e descidas das estradas cobertas de neve nas
montanhas, e declarei oficialmente um dia de neve pra mim também.
Tirei a neve do círculo de pedra que construíra no outono para
acender fogueiras no quintal, e logo nos sentávamos diante de um fogo
brilhante. As crianças escorregavam pela colina no tobogã aos gritos,
passando pela fogueira, e indo até a entrada do bosque, com Marley
correndo atrás delas. Olhei para Jenny e perguntei:
— Se alguém lhe tivesse dito há ano que seus filhos estariam
descendo um tobogã nos fundos de sua casa, você acreditaria?
— De jeito nenhum — ela respondeu, Virando-se e atirando uma
bola de neve bem no meio do meu peito.
Ela tinha neve no cabelo, o rosto corado e sua respiração fumegava no
frio.
— Venha cá e me dê um beijo — eu disse.
Mais tarde, enquanto as crianças se aqueciam junto da fogueira,
resolvi tentar descer o tobogã, coisa que eu não fazia desde que era
adolescente.
— Quer vir comigo? — perguntei a Jenny.
— Desculpe, Jean Claude van Damme, você vai sozinho — ela
respondeu.
Coloquei o tobogã no alto da colina e deitei de costas, apoiandome
nos cotovelos, enfiando os pés na ponta. Comecei a me mover para
começar a escorregar. Nem sempre Marley tinha a chance de olhar
para mim de cima, e aquela posição era um convite. Ele se aproximou
e farejou meu rosto.
— O que é que você quer? — perguntei, e esta era a recepção que
ele esperava ouvir.
Ele subiu a bordo, escarrapachando-se sobre mim e
acomodando-se em meu peito.
— Saia de cima de mim, seu bobão! — gritei.
Mas era tarde demais. Já estávamos descendo, ganhando
velocidade ao começar a descer.
— Bon voyage! — Jenny gritou atrás de nós.
E lá fomos nós, levantando neve para os lados, Marley grudado
em cima de mim, lambendo-me o rosto, enquanto acelerávamos colina
abaixo. Com o peso combinado, tínhamos mais impulso que as
crianças, e passamos do ponto onde terminavam seus rastros.
— Segure-se, Marley! — gritei. — Vamos entrar no bosque!
Passamos voando por uma nogueira, depois entre duas cerejeiras
silvestres, desviando por milagre de todos os obstáculos e aterrissamos
debaixo dos arbustos, esmagando as amoras. De repente, me lembrei do
barranco um pouco mais à frente a alguns centímetros da margem do
rio, que não estava gelado. Tentei brecar com os pés, mas estavam
presos. O barranco era íngreme e dava direto no rio, e estávamos indo
naquela direção. Só tive tempo de abraçar Marley, fechar os olhos e
gritar:
— Oôôôôôaaaa!
Nosso tobogã bateu no barranco e saiu de debaixo de nós. Sentime
como se estivesse em um desenho animado, suspenso no ar por um
longo segundo antes de cair e me espatifar. Só que nesse desenho
animado eu estava abraçado a um labrador que salivava que nem louco.
Caímos abraçados sobre um monte de neve fazendo um leve “puuuuf”,
pendurados pela metade do tobogã, que escorregara para a beira
d’água. Abri os olhos e chequei como eu estava. Eu conseguia mexer os
dedos dos pés e das mãos e girar meu pescoço; não havia quebrado
nada. Marley estava andando de um lado para o outro à minha volta,
ansioso para fazer tudo de novo Ergui-me, com um resmungo, limpando
minhas roupas e disse:
— Estou ficando velho demais para esse tipo de coisa.
Nos meses seguintes, ficaria cada vez mais claro que Marley
também.
Pouco antes do final desse primeiro inverno na Pensilvânia,
comecei a perceber que Marley passara silenciosamente da meia-idade
à velhice. Ele completara nove anos em dezembro e estava diminuindo
ligeiramente o ritmo. Ele ainda tinha seus surtos de energia
descontrolada movida à adrenalina, como no dia que nevou pela
primeira vez, mas agora eram mais curtos e mais espaçados. Ele ficava
feliz em dormir a maior parte do dia e, quando saíamos para passear, ele
se cansava mais depressa do que eu, algo novo em nosso longo
relacionamento. Um dia, perto do final do inverno, com a temperatura
acima de zero e o odor do degelo da primavera recendendo no ar,
descemos pela colina e subimos outra, mais íngreme, na qual ficava a
capela branca ao lado de um velho cemitério onde vários veteranos da
Guerra Civil estão enterrados. Um tipo de caminhada que eu fazia
regularmente e que mesmo antes no outono Marley fizera sem esforço,
apesar da escalada, que costumava nos deixar ofegantes. Desta vez,
porém, ele ficou para trás. Eu o incentivava, encorajando-o, mas ele
parecia um brinquedo que diminuía o ritmo ao acabar a bateria. Marley
não tinha a força necessária para chegar até em cima. Parei para deixálo
descansar antes de continuar, algo que nunca tivera de fazer antes.
— Você não vai dar para trás agora, não é? — perguntei,
inclinando-me e acariciando seu focinho com a mão dentro da luva.
Ele olhou pra mim, os olhos brilhando, o nariz úmido, nem um
pouco preocupado com sua falta de energia. Ele estava contente, mas
parecia exausto, como se não houvesse nada melhor do que ficar sentado à
beira da estrada no campo em um dia fresco no final do inverno com o
dono ao seu lado.
— Se acha que vou carregá-lo no colo — eu disse —, pode
esquecer.
A luz do sol o banhava, e percebi quantos pêlos brancos havia em
seu rosto castanho-claro. Como seu pêlo era claro, o efeito era sutil,
mas inegável. Todo o focinho e boa parte de sua cabeça castanha havia
passado de um tom amarelado para o branco. Sem que tivéssemos
percebido, nosso eterno cachorrinho havia se transformado em um
senhor.
Isso não queria dizer que seu comportamento melhorara. Marley
continuava com todas as suas velhas manias, apenas em um ritmo mais
lento. Ele ainda roubava comida do prato das crianças. Ele ainda abria a
tampa da lata de lixo com o nariz e vasculhava dentro. Ele ainda
puxava a coleira. Ainda engolia uma grande quantidade de objetos da
casa. Ainda bebia a água da banheira e deixava um rastro de água
escorrendo da boca. E quando o céu ficava escuro e os trovões
ribombavam, ele entrava em pânico e, se estivesse sozinho, destruía
tudo. Um dia, chegamos em casa e encontramos Marley babando e o
colchão de Conor destroçado, com as molas saltando para fora.
Com o passar dos anos, adotamos uma postura filosófica em
relação aos estragos, que se haviam tornado menos freqüentes agora que
estávamos longe das pancadas de chuva diárias da Flórida. Na vida de
cão, era comum as paredes terem a pintura arranhada, as almofadas se
abrirem e tapetes rasgarem. Como qualquer relacionamento, este tinha
seu preço. E acabamos aceitando este preço em troca da alegria,
diversão, proteção e companheirismo que ele nos proporcionava.
Poderíamos ter comprado um pequeno iate com o que nós gastamos com
nosso cachorro e tudo que ele destruiu. Mas, me pergunto: quantos iates
ficam esperando junto à porta o dia inteiro até você voltar? Quantos vivem
esperando a chance de subir no seu colo ou descer a colina com você em
um tobogã, lambendo o seu rosto?
Marley havia conquistado seu lugar dentro de nossa família.
Como um tio esquisito, mas adorado, ele era como era. Ele jamais seria a
Lassie, Benji ou Old Yeller; ele nunca participaria de um concurso em
Westminster ou da feira do condado. Nós sabíamos disso agora. Nós o
aceitávamos como o cão que ele era, e o amávamos ainda mais por isso.
— Então, meu velho — eu disse a ele à beira da estrada, naquele
dia, no finzinho do inverno, coçando seu pescoço.
Nosso objetivo, o cemitério, ainda estava no final da subida. Mas,
como na vida, eu pensei, o destino era menos importante que a viagem.
Apoiei-me sobre meu joelho, passando a mão pelo lado do seu corpo e
disse:
— Vamos apenas ficar sentados aqui por algum tempo.
Depois que ele descansou, descemos a colina e voltamos para
casa.
Capítulo 23
Frangos em desfile
Naquela primavera, decidimos testar nossas qualidades administrativas.
Agora tínhamos uma propriedade de oito mil metros
quadrados; pareceu-nos que seria adequado criar um ou dois animais.
Além disso, eu era editor da Organic Gardening, uma revista que há
muito celebrava a incorporação dos animais — e de seu estéreo — em
uma agricultura saudável e bem equilibrada.
—Seria divertido ter uma vaca — Jenny sugeriu.
—Uma vaca? — perguntei. — Ficou maluca? Não temos nem
um celeiro, como é que podemos ter uma vaca? Onde quer colocá-la,
na garagem, ao lado da minivan?
— Que tal ovelhas? — ela perguntou. — Ovelhas são bonitinhas.
Lancei a ela aquele meu olhar “você-não-está-sendo-prática” que
usava toda vez que ouvia algo assim vindo dela.
— Uma cabra? Cabras são adoráveis.
No final, acabamos optando por galinhas. Para qualquer agricultor
que tenha desistido dos pesticidas e fertilizantes químicos, as galinhas
faziam toda a diferença. Eram baratas e o custo de manutenção era
relativamente baixo. Para serem felizes, elas só precisavam ter um
pequeno galinheiro e algumas canecas de milho todo dia pela manhã. E
não só forneciam ovos frescos, como também, quando ficavam soltas,
passavam o dia limpando meticulosamente a propriedade, comendo
insetos e larvas, devorando carrapatos, escavando o solo como
máquinas, e fertilizando-o com material rico em nitrogênio. Todas as
noites, elas voltavam por conta própria para o galinheiro. Do que é que
poderíamos não gostar? A galinha era o melhor amigo de um agricultor
orgânico. Fazia todo o sentido criar galinhas. Além disso, como enfatizou
Jenny, elas passavam no teste de graciosidade.
Estava resolvido: galinhas. Jenny fizera amizade com uma das
mães da escola que vivia em uma fazenda. Ela nos disse que ficaria feliz
em nos dar algumas das galinhas que nascessem da ninhada seguinte.
Contei a Digger sobre nossos planos e ele concordou que fazia sentido
ter algumas aves naquele lugar. O próprio Digger tinha um grande
galinheiro, onde criava galinhas para obter ovos e carne.
—Só uma recomendação — ele disse, cruzando os braços
carnudos sobre o peito. — Não deixe as crianças darem nomes a elas.
Depois que ganham nomes, deixam de ser aves e passam a ser animais
de estimação.
—Combinado — eu disse.
A criação de galinhas, eu sabia, não comportava qualquer
sentimentalismo. As aves são capazes de viver quinze anos ou mais, mas
só produziam ovos nos primeiros anos. Quando paravam de botar ovos,
estava na hora da panela. Fazia parte da administração do rebanho.
Digger me olhou duro, como se adivinhasse o que eu teria de
enfrentar, e acrescentou:
— Se der nome a elas, acabou-se.
— Com certeza — respondi. — Sem nomes.
No dia seguinte, quando cheguei do trabalho, as três crianças saíram
correndo de dentro da casa para me receber, cada uma carregando um
pintinho. Jenny estava atrás delas carregando um quarto pintinho na mão.
Sua amiga, Donna, havia trazido as avezinhas naquela tarde. Elas não
tinham nem um dia de vida e olhavam para mim, com as cabeças
inclinadas, como se perguntassem:
— Você é a mamãe?
Patrick foi o primeiro a contar a novidade:
—Eu chamei o meu de Peninha — ele anunciou.
—O meu é Piu-Piu — disse Conor.
—Meu é o “ofinho” — Colleen acrescentou.
Olhei para Jenny sem entender.
— Fofinho — Jenny disse. — Ela batizou seu pintinho de Fofinho.
— Jenny — eu reclamei. — O que foi que Digger nos disse? Estes
são animais de fazenda e não bichinhos de estimação.
— Que é isso, Senhor Fazendeiro? Caia na real! Você sabe tão
bem quanto eu que jamais faríamos mal a eles. Olha só como são
bonitinhos.
—Jenny — respondi, expressando minha frustração.
—A propósito — ela me interrompeu, segurando o quarto
pintinho em suas mãos, — esta é a Shirley.
Peninha, Piu-Piu, Fofinho e Shirley passaram a morar em uma
caixa no balcão da cozinha, com uma luz acesa sobre eles para aquecêlos.
Comeram, defecaram e comeram mais um pouco — e cresceram
em ritmo alucinado. Algumas semanas depois de trazermos as aves para
casa, algo me acordou antes do amanhecer. Sentei na cama e ouvi com
atenção. Do andar de baixo eu ouvia um barulho surdo, sem força. Era
rouco, quase um gemido, mais parecido com tosse de tuberculoso do
que com um anúncio grandiloqüente. Ouvi de novo: Cuca-du-du!
Poucos segundos se passaram e ouvi uma resposta igualmente
fraquinha, mas distinta: Cocorocó!
Sacudi Jenny e, assim que abriu os olhos, perguntei a ela:
— Quando Donna trouxe os pintinhos, você pediu a ela que se
certificasse de que eram galinhas, certo?
— Quer dizer que dá para fazer isso? — ela perguntou, e voltou
a dormir.
Chama-se sexagem. Fazendeiros que sabem o que estão fazendo
podem examinar um pintinho que acabou de nascer e determinar, com
cerca de 80% de precisão, se é macho ou fêmea. Nas lojas de animais,
os preços dos que passaram por essa triagem é muito mais alto. A opção
mais barata é comprar aves que acabaram de nascer cujo sexo não seja
conhecido. Dessa forma, há um risco, pois os machos serão abatidos
mais jovens para vender a carne e as galinhas serão mantidas para
botar ovos. Se quiser correr o risco, terá de matar, depenar e retirar os
miúdos dos machos que vierem no lote. Quem já criou galinhas sabe:
quando um galo canta, o outro abaixa a crista.
Aconteceu que Donna não havia prestado a menor atenção ao
sexo dos nossos quatro pintinhos, e três das nossas “galinhas
poedeiras” eram machos. Tínhamos sobre o balcão da cozinha o
equivalente a uma creche galinácea. O problema dos galos é que eles
nunca admitem se submeter a qualquer outro galo. Se tivéssemos um
número igual de galos e galinhas, poderíamos até achar que eles
formariam pares felizes como casais de novela de televisão. Mas isso
seria um erro. A verdade é que os machos iriam lutar até o fim, ferindose
até sangrar para determinar quem iria dominar o galinheiro. O
vencedor ficaria com tudo.
Enquanto adolesciam, nossos três galos foram ganhando postura e
empinando o bico e, o que era muito estressante, considerando que
ainda estavam em nossa cozinha — enquanto eu corria para terminar o
galinheiro no quintal —, extravasando seus corações cheios de
testosterona. Shirley, nossa pobre e sobrecarregada fêmea, estava
recebendo mais atenção do que a mais lasciva das mulheres poderia
desejar.
Eu imaginara que o cacarejar dos galos acabaria enlouquecendo
Marley. Quando era mais novo, o canto suave de um único passarinho
no quintal fazia com que ele começasse a latir frenético, correndo de
uma janela à outra, pulando e erguendo-se nas patas de trás. Três
galos cacarejando a poucos centímetros de sua tigela de comida, no
entanto, não exercia qualquer efeito sobre ele. Ele nem parecia notar
que os galos existiam. A cada dia, o cacarejar se tornava mais alto e
mais forte, saindo da cozinha e ecoando pela casa às cinco da manhã.
Cocorocó! Marley continuava a dormir como uma pedra. Foi então que
me ocorreu pela primeira vez que talvez ele não estivesse simplesmente
ignorando o cacarejo: talvez não estivesse sequer ouvindo. Uma tarde,
eu o segui enquanto ele entrava na cozinha e o chamei:
— Marley?
Nada.
Eu o chamei mais alto:
— Marley!
Nada.
Bati palmas e exclamei:
— MARLEY!
Ele ergueu a cabeça e olhou em volta, levantando as orelhas,
tentando entender o que seu radar havia detectado. Repeti, batendo
palmas mais alto e gritando o seu nome. Desta vez, ele virou a cabeça e
percebeu que eu estava atrás dele. Ah, é você! Ele ergueu as patas da
frente, sacudindo o rabo, feliz — e claramente surpreso — de me ver.
Ele se jogou contra minhas pernas para me cumprimentar e me olhou
de soslaio, como se me perguntasse: Por que se esgueirou por trás de
mim? Meu cachorro, pelo que parecia, estava ficando surdo.
Isso fazia sentido. Nos últimos meses, Marley parecia estar me
ignorando de um modo como nunca fizera antes. Eu o chamava e ele se
limitava a olhar para mim. Eu o levava para fora antes de ir deitar, e ele
farejava todo o quintal, ignorando meus assobios chamando-o de volta.
Se ele estivesse dormindo na sala de televisão aos meus pés e alguém
tocasse a campainha o máximo que ele fazia era abrir um dos olhos.
Os ouvidos de Marley tinham-lhe causado problemas desde que
era pequeno. Como muitos labradores, ele tinha predisposição a ter
infecções no ouvido, e havíamos gasto uma pequena fortuna em
antibióticos, ungüentos, produtos de limpeza, gotas e consultas no
veterinário. Ele até fez uma cirurgia para diminuir os canais de seu
ouvido em uma tentativa de resolver o problema. Não me ocorrera até
termos trazido os galos, que seriam impossíveis de ser ignorados, que
todos esses anos de problemas haviam pesado e nosso cão havia
gradualmente entrado em um mundo onde somente conseguia ouvir
sussurros.
Não que ele parecesse se importar. A velhice estava sendo boa
para Marley, e seus problemas de audição não pareciam atrapalhar seu
tranqüilo estilo de vida no campo. Na verdade, a surdez parecia uma
casualidade para ele, dando-lhe uma desculpa médica para a
desobediência. Afinal, como ele poderia atender a uma ordem se não
conseguia ouvi-la? Como o cabeça-dura que eu sempre dissera que ele
era, posso jurar que ele imaginou um jeito de usar a surdez a seu favor.
Era só jogar um pedaço de carne em sua tigela que ele vinha correndo
de onde estivesse. Ele ainda conseguia detectar o baque surdo e
agradável da carne batendo no metal. Mas se você o chamasse para vir
quando ele preferisse ir para outro lugar, ele se afastaria alegremente,
sem sequer olhar para trás com cara de culpa como costumava fazer.
— Acho que este cachorro está nos enganando — eu disse a
Jenny.
Ela concordou que seus problemas de audição pareciam seletivos,
mas todas as vezes que o testamos nos escondendo, batendo as mãos,
chamando-o, ele não respondia. E todas as vezes que púnhamos
comida em seu prato, ele vinha correndo. Ele parecia ter ficado surdo
para todos os sons exceto o mais caro ao seu coração ou, para ser mais
preciso, seu estômago: o som do jantar.
Marley passou a vida com uma fome insaciável. Não só lhe
servíamos quatro grandes porções de comida de cachorro por dia —
comida suficiente para alimentar uma família inteira de chihuahuas por
uma semana — mas também começamos a complementar sua dieta com
sobras de comida, contrariando os conselhos de todos os livros que
havíamos lido. As sobras de comida, nós sabíamos, faziam com que os
cães preferissem comida de gente em vez de comida de cachorro (se ele
pudesse escolher entre a metade de um hambúrguer e uma ração seca,
quem iria condená-lo?). As sobras eram sinônimo de receita para a
obesidade canina. Os labradores, em especial, tinham tendência para
engordar, principalmente quando se aproximavam da meia-idade.
Alguns labradores, em grande parte do tipo inglês, eram tão rotundos na
idade adulta que pareciam inflados e poderiam desfilar pela Quinta
Avenida na Parada do Dia de Ação de Graças da Macy’s.
Mas não nosso cão. Marley tinha muitos problemas, mas a
obesidade não estava entre eles. Não importava quantas calorias devorasse,
ele sempre queimava mais. Toda aquela exuberância desenfreada
consumia uma quantidade enorme de calorias. Ele era como um
interruptor elétrico de alta voltagem que convertia instantaneamente toda
a quantidade de combustível em força bruta, pura. Marley era um
espécime surpreendente, o tipo de cachorro que as pessoas paravam para
admirar. Ele era grande para um labrador, consideravelmente maior do que
a média dos machos de sua raça, que vai de trinta a trinta e seis quilos.
Mesmo mais velho, seu volume de massa era formado por músculos —
quase quarenta e cinco quilos de músculos vigorosos e praticamente
nenhum grama de gordura. Sua caixa torácica era do tamanho de um
pequeno barril de cerveja, mas as costelas propriamente ditas estavam
logo abaixo do pêlo, sem camada de gordura. Não estávamos preocupados
com a obesidade, muito pelo contrário. Em nossas muitas visitas ao Dr. Jay,
antes de deixarmos a Flórida, Jenny e eu externávamos as mesmas
preocupações: nós lhe dávamos quantidades enormes de comida, mas ele
continuava muito mais magro do que a maioria dos labradores, e estava
sempre com cara de faminto, mesmo depois de ter engolido um prato
imenso que mais parecia destinado a alimentar um cavalo. Será que o
estaríamos matando de fome lentamente? Dr. Jay respondia sempre do
mesmo modo. Passava as mãos pelos lados esguios do corpo de Marley,
deixando o nosso labrador, que sempre tentava fugir da exígua sala de
exames, loucamente feliz, e nos dizia que em relação aos atributos físicos
Marley era simplesmente perfeito.
— Continuem a fazer exatamente a mesma coisa — dizia Dr. Jay.
Então, enquanto Marley se punha a respirar entre suas pernas ou
roubava uma bola de algodão do balcão, Dr. Jay acrescentava:
— É claro que não preciso lhes dizer que Marley queima muita
energia nervosa.
Todas as noites, depois do jantar, quando chegava a hora de
alimentar Marley, eu enchia sua tigela de ração e depois colocava
algumas sobras apetitosas por cima. Com três crianças pequenas
sentadas à mesa, restos de comida era algo que nunca faltava. Cascas
de pão, pedaços de bife, pedaços de gordura, peles de frango, molho,
arroz, cenouras, frutas amassadas, sanduíches, macarrão de três dias —
tudo ia para a tigela dele. Nosso animal de estimação poderia se
comportar como um bobo da corte, mas comia como o Príncipe de
Gales. As únicas coisas que não dávamos a ele eram as que sabíamos
não ser saudáveis para os cachorros, como laticínios, doces, batatas e
chocolate. Não aprovo que as pessoas dêem comida de gente aos seus
cachorros, mas incrementar as refeições de Marley com sobras que
seriam jogadas no lixo fazia eu me sentir econômico — se não
desperdiçar, não vai faltar — e caridoso. Eu dava ao sempre grato
Marley uma folga da permanente monotonia do inferno da ração de
cachorro.
Quando Marley não estava desempenhando o papel de draga
doméstica, cumpria dever de brigada de limpeza de emergência familiar.
Nenhuma sujeira era grande demais para nosso cachorro. Se uma das
crianças virava o prato de espaguete com almôndegas no chão,
simplesmente assobiávamos e deixávamos que ele aspirasse até o
último fio de macarrão e lambesse o chão até brilhar. Ervilhas perdidas,
cereais caídos, rigatoni fujões, purê de maçã esparramado, qualquer
coisa. Se caísse no chão, já era. Para espanto dos nossos amigos, ele
deglutia até as folhas verdes da salada.
Não que a comida precisasse cair no chão para ir parar no
estômago de Marley. Ele era um ladrão esperto e não sentia um pingo
de remorso, sempre espreitando as crianças e com a certeza de que nem
Jenny nem eu estaríamos olhando. Festas de aniversário eram um
repasto para ele. Ele abria caminho pela turba de cinco anos, roubando
cachorros-quentes de suas mãozinhas sem nenhum constrangimento.
Houve uma festa em que, pelas nossas contas, ele acabou devorando
dois terços do bolo de aniversário, engolindo pedaço atrás de pedaço
dos pratinhos que as crianças deixavam no colo.
Não importava quanto de comida ele devorasse, fosse de modo
legítimo ou por meio de práticas ilícitas. Ele sempre queria mais. Quando
sobreveio a surdez, não nos surpreendeu em absoluto que o único som que
ele ainda conseguisse ouvir fosse o doce e suave baque de comida caindo
em seu prato.
Um dia, voltei do trabalho e encontrei a casa vazia. Jenny havia saído
com as crianças e eu chamei por Marley, mas não tive resposta. Subi no
andar de cima, onde ele por vezes se enfiava quando o deixavam sozinho,
mas não o encontrei. Depois de trocar de roupa, desci e encontrei-o na
cozinha, aprontando. Virado de costas para mim, ele se apoiava nas patas
traseiras, com as dianteiras e o peito sobre a mesa da cozinha, enquanto
engolia as sobras de um sanduíche de queijo quente. Meu primeiro impulso
foi repreendê-lo. Em vez disso, decidi observar quanto eu conseguiria me
aproximar antes que ele percebesse que tinha companhia. Andei na ponta
dos pés até ficar perto o suficiente para poder tocá-lo. Enquanto mastigava
as crostas de pão, ele olhava para a porta que se abria para a garagem,
sabendo que seria por ali que Jenny iria entrar com as crianças assim que
voltassem. Quando a porta abrisse, ele estaria deitado no chão debaixo da
mesa, fingindo dormir. Aparentemente, não ocorreu a ele que o papai
também poderia chegar em casa pela porta da frente.
— Marley? — eu o chamei em tom de voz normal. — O que pensa
que está fazendo?
Ele continuou a devorar o sanduíche, sem dar pela minha
presença. Seu rabo balançava languidamente, mostrando que
acreditava estar sozinho, refestelando-se com o petisco surrupiado. Ele
estava visivelmente feliz.
Pigarreei bem alto e, mesmo assim, ele não me ouviu. Fiz barulhos
com a boca. Nada. Ele terminou o sanduíche, empurrou o prato com o
nariz, e se esticou para alcançar as sobras do segundo prato.
— Você é um cachorro muito mau — eu disse, enquanto ele
mastigava.
Estalei os dedos duas vezes e ele parou no meio da mordida,
olhando para a porta de trás. O que foi isso? Será que ouvi a porta do
carro bater? Em seguida, ele se convenceu que fosse o que fosse que
tivesse ouvido não seria importante e voltou ao seu lanche surrupiado.
Foi quando estendi o braço e dei um tapa em seu traseiro. Foi
como se eu tivesse acendido uma banana de dinamite. O velho cão
quase saiu do próprio pêlo. Disparou para debaixo da mesa e, assim que
me viu, rolou no chão, pondo-se de barriga para cima como se estivesse
se entregando.
— Peguei você! — eu disse a ele. — Você está muito encrencado!
Mas não consegui brigar com ele. Ele estava velho; estava surdo;
não tinha mais jeito. Eu não conseguiria mudá-lo. Foi divertido espionálo,
e ri muito quando ele pulou de susto. Agora, ao deitar aos meus pés
pedindo perdão, acho tudo isso muito triste. Acho que intimamente
preferiria que ele estivesse fingindo o tempo todo.
Terminei o galinheiro, uma armação de madeira compensada em
forma de “A” com uma rampa levadiça que podia ser erguida à noite
para evitar a entrada de predadores. Donna foi gentil e aceitou de volta
dois dos três galos e trocou-os por galinhas de sua criação. Ficamos com
três raparigas e um moçoilo movido a testosterona que passava todo o
tempo que estivesse acordado fazendo uma das três coisas: à caça de
sexo, copulando, ou cocoricando exultante por causa do sexo que
acabara de fazer. Jenny observou que os galos são aquilo que os homens
seriam se pudessem seguir seus instintos primais, sem convenções
sociais para freá-los e eu não pude discordar. Eu tinha de admitir, eu
chegava a admirar o infeliz de sorte.
Soltávamos as galinhas todas as manhãs pelo quintal e Marley
corria atrás delas, perseguindo-as e latindo por algum tempo, até
perder a força e desistir. Era como se uma codificação genética dentro
dele mandasse uma mensagem urgente: “Você é um labrador, um cão
de caça; elas são aves. Não acha que seria uma boa idéia correr atrás
delas?” Apenas ele não fazia isso com garra. Logo as galinhas
perceberam que a grande fera de pêlo amarelo não representava
qualquer ameaça para elas, apenas um incômodo sem importância, e
Marley aprendeu a dividir o quintal com essas novas invasoras
penosas. Um dia, enquanto limpava a erva daninha do jardim, levantei
os olhos para ver Marley e as quatro galinhas vindo em fila indiana na
minha direção, as aves bicando o chão e Marley farejando ao longo do
caminho. Pareciam velhos companheiros em seu passeio dominical.
— Que tipo de cão de caça é você? — provoquei.
Marley levantou a pata e fez pipi em um tomateiro antes de correr
para juntar-se novamente a suas novas amigas.
Capítulo 24
O reservado
É possível aprender algumas coisas com um cão velho. À medida
que se passavam os meses e seus problemas de saúde aumentavam,
Marley nos ensinou muito a respeito da inexorável finitude da vida.
Jenny e eu ainda não estávamos exatamente na meia-idade. Nossas
crianças eram pequenas, nossa saúde era boa, e nossos anos de velhice
ainda estavam distantes no horizonte. Seria fácil negar a inevitável
decadência da vida, fingir que ela poderia apenas passar ao largo.
Marley não nos concederia o luxo dessa negação. Enquanto o víamos
ficar mais grisalho, surdo e frágil, não havia como ignorar sua
mortalidade — ou a nossa. A idade vai se embrenhando
sorrateiramente em nós, mas nos cães ela se embrenha com uma
velocidade que é simultaneamente surpreendente e moderada. No breve
intervalo de doze anos, Marley havia passado de um filhote esfuziante a
um adolescente inconveniente, depois um adulto corpulento e,
finalmente, a um cidadão de meia-idade vacilante. Ele envelhecia em
torno de sete anos para cada ano de vida humana, colocando-o no
declínio dos noventa anos.
Os dentes brancos e reluzentes estavam gastos e se
transformaram em nacos amarronzados. Três dos seus quatro caninos
estavam faltando, quebrados, um a um, durante seus loucos ataques de
pânico ao tentar abrir caminho a dentadas, para um lugar mais seguro.
Seu hálito, que sempre cheirava mal, adquirira um odor nauseabundo
de depósito de lixo ao sol. Ainda por cima, o fato de ele ter passado a
degustar esta pouco apreciada iguaria conhecida como cocô de galinha
também ajudou. Para nosso completo enjôo, ele deglutia aquilo como se
fosse caviar.
Sua digestão já não era mais como antes, e ele passou a exalar gases
como uma fábrica de metano. Em alguns dias, eu juraria que, se eu riscasse
um fósforo, a casa toda poderia ir pelos ares. Marley era capaz de evacuar
uma sala inteira com sua flatulência silenciosa e mortal, que parecia
aumentar em proporção direta com o número de convidados que tivéssemos
em casa para jantar.
— Marley! De novo, não! — gritavam as crianças em uníssono,
saindo em debandada.
Algumas vezes, ele mesmo debandava. Ele poderia estar dormindo
tranqüilamente, até o cheiro atingir suas narinas; ele abriria os olhos e
dobraria as sobrancelhas como se perguntasse: Santo Deus! Quem soltou
esse? Então, ele se levantaria e, com a maior calma deste mundo, iria para
o quarto ao lado.
Quando ele não estava soltando gases, estaria lá fora evacuando.
Ou pelo menos pensando em fazer isso. A mania que tinha de escolher
o lugar para evacuar tinha atingido o grau de compulsão obsessiva.
Toda vez que eu o deixava sair, ele demorava cada vez mais para
escolher o lugar perfeito. Ele iria para a frente e para trás; dava volta
em cima de volta, farejando, parando, arranhando, girando,
caminhando, o tempo todo exibindo um riso ridículo. Enquanto
esquadrinhava o chão em busca do lugar nirvânico para se agachar, eu
ficava lá fora, às vezes, na chuva, outras, na neve, ou no escuro da
noite, em geral, descalço, por vezes, só de cueca, sabendo que não teria
coragem de deixá-lo sozinho, caso decidisse subir a colina para visitar os
cães da outra rua, como fizera outras vezes.
Sair às escondidas se tornara um esporte para ele. Se surgisse uma
chance e se ele acreditasse que poderia aproveitá-la, disparava para fora da
propriedade. Bem, disparar não seria o termo exato. Ele iria farejando e se
arrastando de um arbusto a outro, até sair de vista. Uma noite bem tarde,
eu o deixei sair para seu último passeio antes de dormir. Uma chuva gelada
formara uma lama escorregadia, e eu me virei para pegar uma capa
impermeável do armário que ficava por trás da porta de entrada. Quando
retornei à calçada menos de um minuto depois, não o vi mais. Andei até o
quintal, assobiando e batendo palmas, sabendo que ele não iria me ouvir,
embora tivesse certeza de que os vizinhos ouviriam. Por vinte minutos saí
atrás dele no quintal dos vizinhos, sob a chuva, desfilando de botas, capa
de chuva e cueca. Rezei para que ninguém decidisse acender a luz da
varanda da frente. Quanto mais procurava, mais zangado eu ficava. Onde
diabos resolveu se enfiar desta vez? Mas, enquanto os minutos passavam,
minha raiva se transformou em preocupação. Pensei nas notícias que
lemos de vez em quando nos jornais sobre idosos que se afastam dos asilos
onde vivem e são encontrados congelados na neve três dias depois. Voltei
para casa, subi as escadas e acordei Jenny.
— Marley desapareceu — eu disse. — Não consigo encontrálo
em lugar algum. Ele está lá fora, congelando na chuva.
Ela se levantou imediatamente, vestiu sua calça jeans e um suéter e
calçou suas botas. Começamos a procurar em toda parte. Eu podia ouvi-la
subindo a colina, assobiando e chamando por ele, enquanto abria caminho
pelo mato no escuro, com medo de encontrá-lo inconsciente no fundo do
riacho.
Após algum tempo, acabamos nos reencontrando.
—Alguma coisa? — eu perguntei.
—Nada — Jenny respondeu.
Estávamos ensopados na chuva, e minhas pernas despidas gelando
no frio.
— Vamos — eu disse. — Vamos para casa nos aquecer e depois
volto com o carro.
Descemos a colina c subimos pela entrada do carro. Então o
vimos debaixo do alpendre se protegendo da chuva e feliz da vida por
estarmos de volta. Eu poderia tê-lo esganado. Em vez disso, levei-o
para dentro e enxuguei-o com uma toalha e o inegável cheiro de
cachorro molhado invadiu a cozinha. Exausto após a excursão tarde da
noite, Marley desmaiou e não se mexeu até quase meio-dia no dia
seguinte.
A visão de Marley tinha ficado fraca, e agora os coelhos podiam
passar a poucos metros dele sem que ele percebesse. Ele estava
perdendo pêlo em grande quantidade, forçando Jenny a aspirar a casa
todos os dias — e mesmo assim sem dar conta de limpar tudo. Havia pêlos
de cachorro por todo canto na casa, em todas as roupas no armário, e mais
um pouco em nossos pratos de comida. Ele sempre perdera muito pêlo, mas
o que antes eram sopros de vento transformou-se em uma nevasca
torrencial. Ele se sacudia e levantava uma nuvem de pêlo solto à sua
volta, caindo sobre tudo. Certa noite, enquanto assistia televisão, levantei
a perna do sofá para fazer um carinho nele com o pé descalço. Durante o
intervalo, vi que havia uma bola de pêlo do tamanho de uma laranja
próximo a onde eu esfregara. As bolas de pêlo rolavam pelo assoalho de
madeira como plantas arrastadas pelo vento sobre a planície.
O que mais preocupava eram seus quadris, o que mais o
debilitava. A artrite tinha coberto suas juntas, enfraquecendo-as e
provocando dor. O cão que antes conseguia me carregar ao estilo de
Bronco Bill, o cão que conseguia erguer a mesa de jantar nas costas e
arrastá-la pela sala, agora mal conseguia se manter de pé. Ele gemia de
dor quando deitava, e gemia de novo quando tentava se erguer. Não
tinha percebido o quanto seus quadris estavam fracos até quando dei
um tapinha de leve em seu traseiro e ele despencou como se tivesse
levado um golpe de judô. Ele estava decrépito. Era muito doloroso
assistir a isso.
Era cada vez mais difícil para ele subir para o segundo andar, porém
ele sequer cogitava dormir sozinho no andar de baixo, mesmo depois de
colocarmos uma cama no pé da escada para ele. Marley adorava gente,
adorava sentar perto das pessoas, adorava colocar o queixo sobre o
travesseiro e resfolegar no nosso rosto enquanto dormíamos, adorava
enfiar a cabeça através da cortina do boxe do banheiro para tomar um gole
de água enquanto tomávamos banho, e não ia parar de fazer isso agora.
Todas as noites, quando Jenny e eu íamos nos deitar no quarto, ele ficava
aflito junto à escada, gemendo, choramingando, andando, tentando subir
o primeiro degrau com a pata da frente, enquanto se armava de coragem
para subir o que não muito tempo antes ele fazia sem nenhum esforço. Do
alto da escada, eu o encorajava.
— Vamos lá, garoto. Você vai conseguir.
Depois de longos minutos fazendo isso, ele recuava para se
impulsionar de novo, as patas dianteiras praticamente sustentando
todo o corpo. Às vezes, ele conseguia; às vezes, ele estancava no meio e
tinha de descer novamente para tentar mais uma vez. Nas tentativas
mais condoídas, ele perdia completamente o equilíbrio e escorregava
sem pena para trás de barriga. Ele era grande demais para que eu
pudesse carregá-lo, mas cada vez mais eu precisava ajudá-lo para subir
as escadas, levantando seu traseiro a cada degrau, enquanto ia subindo
com as patas dianteiras.
Por causa da dificuldade que as escadas representavam agora,
imaginei que Marley iria tentar limitar o número de subidas e descidas.
Mas isso seria acreditar demais em seu bom senso. Não importava quão
trabalhoso fosse galgar as escadas, se eu descesse digamos, digamos,
para pegar um livro ou apagar as luzes, ele correria atrás de mim,
claudicando pesado ao meu lado. Então, pouco depois, ele teria de
repetir a torturante subida. Jenny e eu começamos a passar
furtivamente por trás dele depois que tivesse subido à noite para que ele
não tentasse nos seguir para baixo. Imaginávamos que seria fácil descer
sem que ele percebesse, agora que sua audição estava fraca e ele estava
dormindo por mais tempo um sono mais pesado. Mas ele sempre
parecia saber quando saíamos escondidos dele. Eu podia estar lendo na
cama, enquanto ele dormia no chão ao meu lado, roncando
pesadamente. Eu punha as cobertas de lado furtivamente, me
empurrava para fora da cama e passava por ele pé ante pé até sair do
quarto, virando-me para ter certeza de que não o incomodara. Pouco
depois de chegar embaixo, eu ouvia seus passos pesados na escada,
vindo me procurar. Ele poderia estar surdo e meio cego, mas
aparentemente seu radar estava funcionando perfeitamente.
Isso acontecia não apenas à noite, mas durante o dia todo. Eu
podia estar lendo o jornal na mesa da cozinha com Marley
enrodilhado aos meus pés e levantar para pegar mais um pouco de
café da cafeteira do outro lado. Mesmo dentro de seu raio de visão ele
vinha atrás de mim, erguendo-se com dificuldade e fazendo todo o
percurso para ficar ao meu lado. Depois de ter-se acomodado junto
aos meus pés próximo à cafeteira, eu retornava para a mesa, para
onde ele também voltava e se acomodava novamente. Poucos minutos
depois, eu ia para a sala de televisão e ligava o som; ele fazia um
esforço descomunal para se colocar de pé mais uma vez, seguindo-me,
circulando e jogando-se no chão com um gemido ao meu lado,
exatamente quando eu já começava a me preparar para sair de novo. E
assim aconteceu, não apenas comigo, mas com Jenny e as crianças
também.
A medida que a idade cobrava seu preço, Marley tinha dias bons
e ruins. Ele tinha bons e maus minutos também, às vezes, com
intervalos tão curtos que era difícil acreditar que se tratasse do mesmo
cachorro.
Ao final de um dia na primavera de 2002, levei Marley para fazer
uma breve caminhada pelo quintal. A noite estava fria, beirando os
10° C, e ventava bastante. Revigorado pelo ar fresco, comecei a correr
e Marley, brincalhão, galopou ao meu lado como nos velhos dias. Até
lhe disse era voz alta:
— Está vendo, Marley, resta um pouco do filhote em você.
Corremos de novo até a porta da frente, ele com a língua de
fora enquanto resfolegava feliz da vida, os olhos atentos. Diante da
varanda Marley tentou subir dois degraus de uma vez só — mas seus
quadris falharam, e ele empacou, as patas da frente sobre a varanda, a
barriga sobre os degraus e o traseiro tombado sobre a calçada. Lá ele
ficou, sentado, olhando para mim sem saber o que poderia ter-lhe
causado uma situação tão embaraçosa. Assobiei e bati as mãos sobre os
quadris e ele moveu as patas dianteiras com coragem, tentando colocarse
de pé, mas não conseguiu. Ele não conseguia tirar o traseiro do
chão.
— Vamos lá, Marley! — exclamei, mas ele estava imobilizado.
Finalmente, segurei-o por baixo dos ombros e virei-o de lado para
que ele pudesse colocar as quatro patas no chão. Então, depois de
algumas tentativas frustradas, ele conseguiu se pôr de pé. Ele recuou e
durante alguns segundos ficou olhando para a escada, apreensivo,
então, ele pulou e entrou em casa. A partir desse dia, sua confiança
como campeão na subida de escadas se apagou; ele nunca mais tentou
subir aqueles dois degraus de novo, sem antes parar e reclamar.
Sem dúvida alguma, a velhice era uma vilã. E, nesse aspecto,
bastante indigna.
Marley me fez pensar na brevidade da vida, em suas alegrias
efêmeras e nas chances perdidas. Ele me lembrou de que cada um de
nós tem apenas uma chance de conquistar a medalha de ouro, sem
replay. Num dia, estamos nadando no meio do oceano, certos de que
vamos alcançar uma gaivota; no dia seguinte, mal conseguimos nos
abaixar para beber água em nossa tigela. Como todo mundo, eu tinha
apenas uma vida para viver. Estava sempre voltando à mesma
pergunta: Por que, em nome de Deus, eu estaria desperdiçando esta
vida em uma revista de horticultura? Não que meu novo trabalho não
fosse gratificante. Eu estava orgulhoso do que havia feito na revista.
Mas sentia uma saudade terrível dos jornais. Sentia saudade de seus
leitores e das pessoas que escreviam para eles. Sentia saudade da
sensação de fazer parte da grande história do dia, de estar, de alguma
forma, ajudando a fazer diferença. Sentia falta da onda de adrenalina
que me invadia por ter de escrever dentro do prazo, e da satisfação de
acordar no dia seguinte com a minha caixa de e-mails cheia de
mensagens em resposta ao meu texto. Mas a saudade maior era a de
contar histórias. Fiquei pensando por que eu teria me afastado de algo
que se adequava tão perfeitamente à minha índole para me aventurar
por águas tão traiçoeiras quanto a direção de uma revista com
orçamentos apertados, com a pressão incansável dos anunciantes, dores
de cabeça com a equipe, e o ingrato trabalho de edição dos bastidores.
Quando um antigo colega me disse de passagem que o
Philadelphia Inquirer estava procurando um colunista metropolitano, fui
atrás, sem hesitar. Não era todo dia que aparecia uma posição de
colunista, mesmo em jornais pequenos, e quando abria uma vaga dessas
ela era imediatamente preenchida por alguém de dentro; um filé
entregue a algum veterano que provara ser um bom repórter. O
Inquirer era respeitado, vencedor de dezessete prêmios “Pulitzer” e um
dos grandes jornais do país. Eu era um fã, e agora os editores do
Inquirer estavam querendo fazer uma entrevista comigo. Eu não teria
nem mesmo de voltar a acomodar minha família para aceitar o cargo.
O escritório em que eu iria trabalhar ficava a apenas quarenta e cinco
minutos pela Pennsylvania Turnpike, uma troca razoável. Eu não boto
muita fé em milagres, mas tudo parecia bom demais para ser verdade,
como um ato de intervenção divina.
Em novembro de 2002, troquei minha roupa de agricultor por um
crachá de repórter do Philadelphia Inquirer. Foi provavelmente o dia
mais feliz da minha vida. Eu estava de volta ao meu lugar, em uma
redação, trabalhando como colunista novamente.
Eu estava no novo emprego havia poucos meses, quando caiu a
primeira grande tempestade de neve de 2003. Os flocos começaram a
cair em uma noite de domingo e quando pararam, no dia seguinte, um
tapete com mais de meio metro de altura cobria o chão. As crianças
ficaram sem aula por três dias, enquanto a comunidade ia aos poucos
limpando a neve, e eu enviei minhas colunas de casa. Com um
equipamento para remover a neve que peguei emprestado do meu
vizinho, limpei a entrada de carro e abri um caminho estreito até a porta
da frente. Sabendo que Marley jamais conseguiria passar pela neve para
chegar até o quintal, abri para ele seu próprio “reservado”, como as
crianças chamaram — um pequeno espaço perto da porta da frente
onde ele poderia fazer suas necessidades. Quando o chamei para fora
para testar as novas instalações, entretanto, ele apenas ficou ali de pé e
farejou a neve, desconfiado. Ele possuía critérios muito especiais sobre
o que fazia um lugar adequado para atender o chamado da natureza e
este, obviamente, não era o que ele tinha em mente. Ele estava disposto
a levantar a perna e fazer pipi, mas isso era tudo. Fazer cocô aqui? Bem
em frente desta janelona? Você não pode estar falando sério. Ele se
virou e, com um grande esforço para subir os degraus escorregadios da
varanda, voltou para dentro.
Naquela noite, depois do jantar, eu o levei para fora de novo e,
desta vez, Marley não conseguiu se dar ao luxo de esperar. Ele precisava
ir. Caminhou nervoso para cima e para baixo pela área aberta, foi até o
reservado e saiu, farejando a neve, arranhando o chão enregelado com a
pata. Não, isto não vai dar certo. Antes que eu pudesse impedi-lo, ele
conseguiu, de alguma forma, passar pela parede de neve que eu tinha
tirado e começou a andar pelo quintal na direção de alguns pinheiros
brancos a pouco mais de um metro de distância. Eu mal conseguia
acreditar: meu cão velho e artrítico embrenhado em uma jornada alpina.
De vez em quando, seus quadris falhavam e ele caía sentado na neve,
onde descansava por alguns segundos em cima da barriga antes de lutar
para se colocar de pé novamente para continuar. Lenta e
dolorosamente, ele abriu caminho pela neve espessa, usando a força de
seus ombros para empurrar o corpo. Eu fiquei na entrada de carro,
imaginando como iria fazer para salvá-lo quando ele finalmente parasse
sem poder ir adiante. Mas ele prosseguiu e conseguiu chegar junto ao
pinheiro mais próximo. De repente, vi o que ele pretendia. Aquele cão tinha
um plano. Sob os densos galhos do pinheiro, a neve tinha apenas
alguns centímetros de profundidade. A árvore funcionava como guardachuva
e, uma vez debaixo da árvore, Marley podia se movimentar e se
agachar confortavelmente para se aliviar. Eu tinha de admitir: aquilo era
simplesmente brilhante. Ele andou em círculos, farejou e arranhou como
sempre, tentando encontrar um santuário merecedor de sua oferenda
diária. Então, para minha surpresa, ele deixou o abrigo aconchegante e
enfiou-se de novo na neve profunda para ir até o pinheiro seguinte. O
primeiro lugar me parecia perfeito, mas é claro que não estava à altura de
seus padrões de excelência.
Com dificuldade, ele chegou até a segunda árvore, mas,
novamente, depois de circular bastante, achou que a área debaixo
daqueles galhos não era apropriada. Então, ele se dirigiu até a terceira,
depois até a quarta e a quinta, afastando-se cada vez mais da entrada
de carro. Tentei chamá-lo de volta, embora soubesse que ele não iria
conseguir me ouvir.
— Marley, você vai acabar ficando preso, seu burro! — eu gritei.
Ele simplesmente continuou em frente com determinação férrea.
O cão tinha um propósito. Finalmente, chegou na última árvore de
nossa propriedade, um grande pinheiro com uma copa de galhos
densos e perto de onde as crianças esperavam o ônibus da escola. Foi
ali que ele encontrou o pedaço de terreno enregelado que estava
procurando, com privacidade e praticamente sem neve. Ele andou em
círculos de novo, e se agachou com dificuldade sobre suas velhas ancas,
gastas e artríticas. Ali ele finalmente encontrou alívio. Eureca!
Cumprida a missão, ele iniciou a longa jornada para casa.
Enquanto ele lutava com a neve, eu mexia os braços e batia palmas
para encorajá-lo.
— Continue andando, garotão! Você vai conseguir!
Mas eu notava que ele estava ficando cansado, e ainda tinha um
longo caminho pela frente.
— Não pare agora! — gritei.
Ele foi até a alguns metros da entrada de carro. Ele não agüentou
mais. Parou e deitou na neve, exausto. Marley não parecia exatamente
aflito, mas também não parecia confortável. Ele me olhou, preocupado. E o
que fazemos agora, chefe? Eu não tinha idéia. Eu poderia atravessar a
neve até ele, mas e depois? Ele era pesado demais para que eu o
carregasse. Fiquei ali parado por alguns minutos, chamando e bajulandoo;
Marley, porém, não se movia.
— Agüenta aí — eu disse. — Vou colocar as botas e vou até você.
Ocorreu-me que eu poderia colocá-lo sobre o tobogã e arrastá-lo de
volta para casa. Assim que me viu me aproximando com o tobogã, meu
plano foi por água abaixo. Ele ficou de pé, energizado. A única coisa que
consegui pensar foi que ele havia se lembrado do nosso passeio infame
pelos arbustos até a beira do riacho e ele esperava um repeteco. Ele
avançou até a mim como um dinossauro disposto a me encurralar. Eu
escapei pela neve, abrindo caminho para ele e ele me seguiu. Finalmente,
pulamos o banco de neve e alcançamos a entrada de carro. Ele sacudiu
a neve do corpo e bateu com o rabo nos meus joelhos, andando todo
empinado, com a fanfarronice de um aventureiro que tivesse acabado de
voltar de uma excursão pela selva. E pensar que eu tinha duvidado que
ele fosse conseguir.
Na manhã seguinte, abri para ele um caminho estreito até o
pinheiro mais distante no canto da propriedade, e Marley adotou o
espaço como seu banheiro reservado durante todo o inverno. A crise
tinha passado mas surgiram outras questões. Por quanto tempo ele iria
agüentar? E em que momento as dores e os revezes da velhice iriam
superar o simples contentamento que ele encontrava a cada dia
sonolento e preguiçoso?
Capítulo 25
Vencendo as dificuldades
Quando suspenderam as aulas na escola para as férias de verão,
Jenny colocou as crianças na minivan e foi para Boston passar uma
semana com a irmã. Eu fiquei por causa do trabalho. E, com isso,
Marley teria de ficar sozinho em casa sem ninguém para lhe fazer
companhia ou deixá-lo sair. Entre os inúmeros constrangimentos que a
idade infligiu a ele, o que parecia incomodá-lo mais era a diminuição do
controle sobre seus intestinos. Apesar de todas as falhas de
comportamento ao longo dos anos, seus hábitos em relação a banheiro
tinham sido sempre impecáveis. Era uma das características de Marley de
que podíamos nos orgulhar. Desde a mais tenra idade, ele nunca, jamais,
teve acidentes dentro de casa, mesmo quando ficava sozinho por dez ou
doze horas. Costumávamos brincar dizendo que sua bexiga era feita de
aço e seus intestinos de pedra.
Isso mudara nos últimos meses. Ele já não agüentava mais do que
poucas horas entre os “pit stops”. Quando a necessidade o chamava, ele
tinha de ir e, se não estivéssemos em casa para deixá-lo sair, ele não
tinha escolha senão fazer dentro de casa. Isso o mortificava e, assim que
entrávamos em casa, sabíamos que ele tivera um acidente. Em vez de
nos receber na porta com seu modo exuberante, estaria bem no fundo
da sala, a cabeça caída ao chão, o rabo entre as pernas, seu semblante
envergonhado. Nunca o punimos por isso. Como poderíamos? Ele tinha
quase treze anos de idade, praticamente o máximo de idade que os
labradores atingem. Sabíamos que ele não conseguia evitar, e ele
também parecia saber. Eu tinha certeza de que, se ele pudesse falar,
reconheceria sua humilhação e nos garantiria que havia tentado
realmente se segurar.
Jenny comprou um “Vaporetto” para limpar o tapete, e
começamos a organizar nossos horários de forma que não ficássemos
longe de casa por mais que algumas horas de cada vez. Jenny vinha para
casa correndo depois da escola, onde trabalhava como voluntária, para
deixar Marley sair. Eu saía dos jantares entre o prato principal e a
sobremesa para dar uma volta com ele e, naturalmente, Marley fazia
esse passeio durar o máximo que conseguia, farejando e andando em
círculos pelo quintal. Nossos amigos nos provocavam brincando sobre
quem seria o verdadeiro senhor na casa dos Grogan.
Com Jenny e as crianças longe, eu sabia que estaria vivendo dias
longos. Era minha chance de sair depois do trabalho, vagar pela região e
explorar as cidades e vizinhanças sobre as quais eu escrevia agora.
Com minha longa jornada diária para o trabalho, eu ficaria longe de casa
por umas dez ou doze horas por dia. Não havia dúvida de que Marley
não poderia ficar tanto tempo sozinho, nem mesmo por metade desse
tempo. Decidimos enviá-lo para o canil local, para onde ele ia todos os
verões quando saía-mos de férias. O canil estava ligado a uma grande
clínica veterinária que oferecia cuidados profissionais, apesar de não ter
um tratamento muito pessoal. Cada vez que íamos até lá, víamos um
médico diferente que não sabia nada sobre Marley além do que estava
anotado em sua ficha. Jamais aprendemos sequer seus nomes. Ao
contrário do nosso querido Dr. Jay na Flórida, que conhecia Marley
quase tão bem quanto nós e que quando partimos já se tornara
realmente um amigo da família, esses eram estranhos — estranhos
competentes, mas estranhos de qualquer forma. Marley parecia não se
importar.
— Waddy vai pro acampamento de cachorro! — Colleen gritou, e
ele se animava, como se a idéia lhe sugerisse qualquer possibilidade.
Fizemos algumas brincadeiras sobre as atividades que a equipe do
canil iria oferecer a ele: cavar buracos das 9h às 10b; estraçalhar
travesseiros das 10h15 às 11h; fuçar no lixo das 1 lh05 até o meio-dia, e
assim por diante. Eu o levei até lá um domingo à noite e deixei o número
do meu celular na recepção. Parecia que Marley nunca relaxava em
situações como esta, nem mesmo no já familiar consultório do Dr. Jay, e
eu sempre ficava preocupado com ele. Depois de cada visita, ele voltava
meio macilento, o focinho sempre arranhado por ter batido nas grades de
sua gaiola e, quando chegava em casa, desabava em um canto e dormia
pesadamente durante horas, como se tivesse passado o tempo todo
caminhando dentro da gaiola com insônia.
Naquela segunda-feira eu já estava perto do Independence Hall,
no centro da Filadélfia, quando meu celular tocou.
— O senhor poderia falar com a doutora fulana de tal? —
perguntou a moça do canil.
Era a outra veterinária cujo nome eu nunca tinha ouvido.
Alguns segundos depois, a médica estava ao telefone.
—E uma situação de emergência com Marley — ela disse.
Meu coração pulou no peito.
—Uma emergência?
A veterinária disse que o estômago de Marley havia se inchado
com a comida, água e gases e, então, expandira e se distendera, virado
sobre si mesmo, virando-se e prendendo o que ele continha dentro
dele. Sem ter lugar para sair, os gases e os demais elementos
provocaram o doloroso inchaço e havia evoluído em uma situação de
risco conhecida como dilatação torção-gástrica. Esse tipo de situação
quase sempre exigia uma intervenção cirúrgica que, se não fosse feita,
poderia matar o cão em poucas horas.
Ela informou que colocara um tubo em sua garganta e sugado
quase todo o gás que estava em seu estômago, o que aliviara o inchaço.
Manipulando o tubo, havia conseguido desvirá-lo, que ele havia sido
sedado e que agora estava repousando.
— Isso é bom, não é? — perguntei, com cautela.
— Apenas temporariamente — respondeu a médica. —
Conseguimos ajudá-lo a superar a crise, mas se o estômago se
contorceu desse jeito, é quase certo que isso irá acontecer novamente.
— Quase certo, como?
— Eu diria que ele tem um por cento de chance de isso nunca
mais se repetir — ela disse.
Um por cento? Pelo amor de Deus, pensei, é mais fácil ele entrar
em Harvard.
—Um por cento? Só isso?
—Sinto muito — ela disse. — O caso é muito grave.
Se o estômago de Marley se torcesse de novo — e ela estava
dizendo que era praticamente certo — teríamos duas alternativas. A
primeira seria operá-lo. Ela disse que iria abri-lo e prenderia o estômago
à cavidade da parede com suturas para evitar que se torcesse de novo.
— A operação irá custar por volta de dois mil dólares — ela disse.
Eu engoli em seco.
— E devo avisar que é muito invasiva. Será algo difícil para um
cão dessa idade.
A recuperação seria longa e complicada, se ele sobrevivesse à
operação. As vezes, cachorros mais velhos como ele não conseguem
sobreviver ao trauma da cirurgia, ela explicou.
—Se ele tivesse quatro ou cinco anos, eu não teria a menor dúvida
em recomendar a cirurgia — disse a veterinária. — Mas na idade dele,
você tem de se perguntar se realmente quer que ele passe por tudo isso.
—Não, se pudermos evitar — eu disse. — Qual é a segunda
opção?
—A segunda opção — ela respondeu, sem hesitar muito —,
seria sedá-lo para dormir.
—Sei.
Eu estava com dificuldade para processar tudo aquilo. Cinco
minutos antes eu estava indo até o Sino da Liberdade do Independence
Hall, achando que Marley estava descansando alegremente no canil.
Agora estavam me pedindo para decidir se ele deveria viver ou morrer.
Eu jamais sequer ouvira falar daquela complicação que ela descrevera.
Só depois eu viria a saber que a dilatação é bastante comum em
algumas raças, especialmente aquelas com a caixa torácica mais larga,
como era o caso de Marley. Cães que engoliam toda a comida muito
depressa — Marley, de novo — também pareciam correr mais riscos.
Alguns donos de cães suspeitavam que o estresse de ficar em um canil
também poderia provocar essa dilatação, mas, tempos depois, eu
conversaria com um professor de medicina veterinária, cuja pesquisa
mostrava que não havia ligação entre o estresse do canil e a dilatação.
Por telefone, a veterinária reconheceu que a excitação de Marley com os
outros cachorros do canil poderia ter levado à crise. Ele tinha engolido a
comida como sempre e estava ofegando e salivando pesadamente,
agitado com todos os outros cães ao seu redor. Ela achava que ele
poderia ter engolido tanto ar e saliva que seu estômago começou a se
dilatar em seu eixo maior, tornando-o vulnerável à torção.
—Não podemos simplesmente esperar e ver como ele reage? —
perguntei. — Talvez não aconteça de novo.
—É o que estamos fazendo agora — ela disse —, esperando e
observando.
Ela mencionou de novo a probabilidade de um por cento.
—Se o estômago sofrer essa torção de novo, vou precisar que se
decida rapidamente. Não podemos permitir que ele sofra.
—Preciso falar com minha mulher. Eu telefono depois.
Quando Jenny atendeu ao celular, ela estava com as crianças em um
barco de passeio no meio do porto de Boston. Dava para ouvir ao fundo o
barulho do motor do barco e a voz do guia de turismo saindo de um altofalante.
Tivemos uma conversa estranha entremeada pela estática em uma
ligação ruim. Nenhum de nós conseguia ouvir o outro direito. Gritei para
tentar avisá-la sobre o que teríamos de enfrentar. Ela só ouvia trechos do
que eu dizia. Marley... Emergência... Estômago... Cirurgia... Sedá-lo para
fazê-lo dormir...
Houve um silêncio do outro lado.
—Alô? Você ainda está aí?
—Estou aqui — respondeu Jenny, e depois calou-se de novo.
Nós sabíamos que este dia chegaria; só não imaginávamos que
fosse aquele dia. Não quando ela e as crianças estavam fora da cidade
sem poder se despedir; não quando eu estava a noventa minutos no
centro de Filadélfia com um compromisso de trabalho. A veterinária
estava certa. Marley estava desmontando de todo lado. Seria cruel
submetê-lo a uma cirurgia traumática somente para retardar o
inevitável. E também não poderíamos ignorar o custo. Parecia obsceno,
quase imoral, gastar tanto dinheiro com um velho cachorro no final de
sua vida quando havia cães sendo abatidos todos os dias por falta de um
lar e, ainda por cima, crianças que não recebiam cuidados médicos
adequados por falta de recursos financeiros. Se esta fosse a hora de
Marley, então seria a sua hora e faríamos com que ele se fosse com
dignidade e sem sofrimento. Sabíamos que seria a coisa certa, embora
nenhum de nós estivesse preparado para perdê-lo.
Liguei de novo para a veterinária e disse qual havia sido a nossa
decisão.
— Os dentes dele estão estragados, ele está praticamente surdo,
seus quadris estão tão ruins que ele mal consegue subir os degraus da
varanda da frente — eu disse a ela como se precisasse convencê-la.
— Ele tem dificuldade para se agachar para que seus intestinos
funcionem.
A veterinária, que agora eu sabia se chamar Dra. Hopkinson,
facilitou as coisas para mim:
—Acho que chegou a hora dele.
—Acho que sim — respondi.
Mas eu não queria que ela fizesse nada com ele antes de falar
comigo. Queria estar lá com ele se fosse possível.
—Ainda estou contando com aquele um por cento de milagre.
—Conversamos daqui a uma hora — ela disse.
Uma hora depois a Dra. Hopkinson pareceu um pouco mais
otimista. Marley estava se segurando, descansando, enquanto recebia uma
solução intravenosa na pata direita. Ela elevou as probabilidades para
cinco por cento.
—Não quero lhe dar muitas esperanças. Ele está muito doente.
Na manhã seguinte, a médica parecia ainda mais radiante.
—Ele teve uma ótima noite — ela disse.
Quando liguei ao meio-dia, ela havia removido o soro de sua
pata e introduzira uma papinha de arroz e carne.
— Ele está faminto — ela contou.
No telefonema seguinte, ele estava de pé.
— Boas notícias. Um dos nossos funcionários levou-o para dar
uma volta e ele fez pipi e cocô.
Pelo telefone, comemorei a notícia como se ele tivesse acabado de
conquistar um campeonato. Então ela acrescentou:
— Ele deve estar se sentindo melhor. Acabou de me dar um
grande beijo na boca.
Isso era bem coisa do Marley.
— Se me perguntasse ontem, jamais imaginaria isto ser possível
— completou a médica —, mas acho que poderá levá-lo para casa
amanhã.
Foi exatamente o que fiz no dia seguinte depois do trabalho. Ele
estava horrível — fraco e esquelético, seus olhos leitosos e cheios de
muco, como se tivesse ido para o outro lado e voltado, o que de certa
maneira acho que aconteceu. Também acho que devo ter ficado com
cara de doente depois de ter pago a conta de oitocentos dólares.
Quando agradeci à médica por seu bom trabalho, ela respondeu:
— Todo mundo adora o Marley. Todos estavam torcendo por ele.
Fui andando até o carro ao lado do meu cachorro capaz de
conseguir um milagre com apenas um por cento de chance, e disse:
— Vamos para casa, que é o seu lugar.
Ele ficou ali, aflito, olhando para o banco de trás do carro,
sabendo que seria tão inalcançável quanto o Monte Olimpo. Ele nem
tentou pular. Chamei um dos funcionários do canil que me ajudou a
colocá-lo delicadamente no carro e levei-o para casa, com uma caixa de
remédios e uma série de instruções. Marley jamais iria voltar a engolir
toda a comida de uma vez, ou beber quantidades ilimitadas de água. Os
dias em que brincara de submarino com seu focinho na tigela de água
haviam terminado. A partir de agora, ele iria receber quatro pequenas
porções de comida por dia e apenas quantidades limitadas de água —
mais ou menos meia xícara de água na tigela de cada vez. Desse modo,
esperava a médica, seu estômago ficaria calmo e não iria inchar e se
torcer novamente. Ele também não deveria mais ser levado a um canil
grande com muitos cães correndo à volta dele. Eu estava convencido, e
parecia que a Dra. Hopkinson também, de que isso havia sido o que
precipitara seu quase encontro com a morte.
Naquela noite, depois que o levei para casa e coloquei-o para
dentro, estendi um saco de dormir no chão na sala de TV ao lado dele.
Ele não conseguiria subir as escadas até o quarto, e eu não teria coragem
de deixá-lo sozinho e indefeso. Eu sabia que ele passaria toda a noite
agitado se não estivesse ao meu lado.
— Vamos acampar, Marley! — anunciei, e deitei-me ao lado
dele.
Fiz-lhe carinho da cabeça aos pés, até levantar montanhas de pêlos.
Limpei o muco do canto de seus olhos e cocei suas orelhas até ele gemer
de prazer. Jenny estaria de volta com as crianças pela manhã; ela iria
paparicá-lo com várias minirrefeições de hambúrguer cozido e arroz. A
espera havia durado treze anos, mas Marley finalmente teria direito a
comida de gente; e nada de sobras, mas comida feita especialmente para
ele. As crianças iriam abraçá-lo, sem saber o quanto estiveram próximos
de perdê-lo.
No dia seguinte, haveria barulho e bagunça na casa, que ficaria
cheia de vida novamente. Esta noite, seríamos apenas nós dois, Marley
e eu. Deitado ao lado dele, sentindo seu hálito mal cheiroso em meu
rosto, não pude deixar de pensar em nossa primeira noite juntos tantos
anos atrás, depois que eu o trouxe da criadora, um animalzinho
pequeno chorando por sua mãe. Eu me lembrei de como arrastei sua
caixa até o quarto e como pegamos no sono juntos, com meu braço
pendurado ao lado da cama para confortá-lo. Treze anos depois, cã
estávamos nós, ainda inseparáveis. Pensei em sua infância e
adolescência, nos sofás rasgados e colchões mastigados, nas caminhadas
malucas pela Intracoastal e nas danças de rosto colado com focinho ao
som do estéreo. Pensei nos objetos engolidos e nos cheques furtados e
nos doces momentos de empatia humano-canina. Pensei principalmente
em como ele havia sido um companheiro bom e leal durante todos
aqueles anos. Tinha sido uma jornada e tanto.
— Você me assustou para valer, velhão — sussurrei, enquanto ele
se esticava ao meu lado e enfiava o focinho debaixo do meu braço para
eu continuar fazendo carinho nele. — E bom ter você em casa.
Adormecemos juntos, lado a lado, no chão, com metade do seu
traseiro no saco de dormir e meu braço sobre suas costas. Ele me
acordou uma vez durante a noite, seus ombros mexendo
involuntariamente, dobrando as patas, ganindo do fundo da garganta
como criança, parecendo mais tosse do que qualquer outra coisa. Ele
estava sonhando. Sonhando, imaginei, que era jovem e forte novamente.
E correndo como se não houvesse amanhã.
Capítulo 26
Um tempo a mais
Nas semanas seguintes, Marley ia e voltava da beira da morte. O
brilho brincalhão voltou aos seus olhos, a ponta de seu focinho voltou a
ficar úmida, e ganhou novamente um pouco de peso. Depois de tudo o
que acontecera, ele não poderia estar se sentindo melhor. Ele gostava de
passar o dia tirando sonecas, preferindo um lugar em frente à porta de
vidro da sala de TV onde batia o sol, aquecendo seu pêlo. Com a nova
dieta de pequenas refeições, ele se sentia sempre faminto, implorando e
roubando comida, mais sem-vergonha do que nunca. Uma noite, pegueio
sozinho na cozinha, apoiado nas patas traseiras, com as dianteiras
sobre o balcão da cozinha, roubando cereais de um prato. Como ele
conseguiu se apoiar em seus frágeis quadris, eu nunca soube. Para o
diabo as doenças; quando o desejo foi mais forte, o corpo de Marley
respondeu. Senti vontade de abraçá-lo de tanta felicidade de ver aquela
demonstração de força.
O susto daquele verão deveria ter despertado a Jenny e a mim
para que reconhecêssemos que Marley estava envelhecendo, mas logo
retornamos à confortável presunção de que a crise havia passado, e ele
continuaria sua eterna marcha em direção ao ocaso de sua vida. Em
parte queríamos acreditar que ele poderia continuar a ser o que ele
sempre foi. Apesar de todas as suas fragilidades, ele ainda era o
mesmo cachorro alegre. Todo dia depois do café da manhã, ele corria
para a sala de TV para usar o sofá como guardanapo gigante,
percorrendo todo seu comprimento, esfregando o focinho e a boca
contra o tecido e virando as almofadas. Então, ele dava meia-volta e
vinha na direção oposta, para limpar o outro lado da boca. Em seguida,
jogava-se no chão e rolava sobre as costas, sacudindo-se para coçá-las.
Ele gostava de se acomodar e lamber o tapete, como se tivessem
derramado sobre ele o molho mais delicioso que já experimentara na
vida. As atividades de sua rotina diária incluíam latir para o carteiro,
visitar as galinhas, ficar olhando para o comedouro dos pássaros e
rondar as torneiras da banheira para ver se conseguia sorver alguma
gota d’água. Várias vezes ao dia, ele tirava a tampa da lata de lixo da
cozinha para ver se achava alguma guloseima. Pelo menos uma vez por
dia, ele agia como labrador encurralado, disparando pela casa com o
rabo batendo nas paredes e nos móveis e, pelo menos uma vez por dia,
eu continuava a abrir sua bocarra para tirar todo tipo de objeto
descartado de nosso dia-a-dia — cascas de batata e papel de doce,
lenços de papel e restos de fio dental. Mesmo na velhice, algumas coisas
não mudavam.
Quando se aproximou a data de 11 de setembro de 2003, dirigi
através do Estado até a cidadezinha de minério de Shanksville, na
Pensilvânia, onde o vôo 93 da United Airlines havia caído em um
descampado naquela manhã infame dois anos antes, em meio a uma
revolta dos passageiros. Entendeu-se que a intenção dos seqüestradores
que tomaram o avião era sobrevoar Washington, D.C. para jogá-lo sobre
a Casa Branca ou o Capitólio, e os passageiros que correram para a
cabine de comando certamente salvaram inúmeras vidas em terra. Para
marcar o segundo aniversário dos ataques, meus editores queriam que
eu visitasse o local e descrevesse da melhor forma o que fora aquele
sacrifício e o impacto que causou sobre a psique americana.
Passei o dia todo no local do acidente no memorial improvisado
que foi construído ali. Conversei com os visitantes que chegavam em um
fluxo constante para prestar sua homenagem, entrevistei os moradores que
se lembravam da explosão, sentei com uma mulher que perdera a filha em
um acidente de carro e que viera para encontrar consolo nesta comunhão
pelos que ali morreram. Documentei as lembranças e cartas que lotavam o
estacionamento de chão de cascalho. Mas ainda não havia conseguido um
gancho para minha coluna. O que eu poderia dizer sobre aquela imensa
tragédia que ainda não tivesse sido dita? Fui para a cidade jantar e revi
minhas anotações. Escrever uma coluna de jornal é como construir uma
torre com blocos; cada pedaço de informação, cada citação ou
acontecimento registrado é um bloco. Você começa construindo uma base
sólida, forte o suficiente para sustentar seu argumento, então, vai
trabalhando as idéias até atingir o ápice. Meu caderno estava cheio de
blocos bem sólidos para começar a construir meu texto, mas estava me
faltando a liga. Eu não sabia o que fazer com eles.
Depois que terminei de comer minha carne assada e tomar meu
chá gelado, voltei para o hotel para tentar escrever. No meio do
caminho, seguindo um impulso, dei meia-volta e voltei ao local do
acidente que ficava a vários quilômetros do centro da cidade; cheguei
exatamente no momento em que o sol se punha atrás de uma colina e
os últimos visitantes deixavam o local. Fiquei ali sentado, sozinho,
durante muito tempo, enquanto o pôr-do-sol se transformava em luscofusco
e o lusco-fusco em noite. Soprava um vento gelado nas colinas e
eu puxei para cima o zíper do casaco. Acima das cabeças, a brisa fazia
tremular uma gigantesca bandeira americana, as cores brilhando quase
iridescentes sob os últimos raios de sol. Só então a emoção deste lugar
sagrado me tocou e a magnitude do que acontecera no céu acima deste
campo solitário começou a tomar conta de mim. Olhei para o local
onde o avião havia caído e depois para a bandeira e senti meus olhos
se encherem de lágrimas. Pela primeira vez em minha vida, contei as
listras. Sete vermelhas e seis brancas. Contei as estrelas, cinqüenta
sobre um fundo azul. A bandeira americana havia adquirido outro
significado para nós. Para uma nova geração, voltava a simbolizar valor
e sacrifício. Eu sabia o que deveria escrever.
Enfiei as mãos nos bolsos e andei até a beira do estacionamento de
cascalho, e fiquei olhando para o céu cada vez mais escuro. Ali, de pé,
no escuro, senti muitas coisas diferentes. Uma delas foi orgulho dos meus
compatriotas americanos, gente comum que reagiu às circunstâncias,
sabendo que não tinham saída. Outra foi humildade, pois eu estava vivo e
não havia sido atingido pelos horrores daquele dia, livre para continuar
minha vida feliz, como marido, pai de família e escritor. Na solidão da
escuridão, quase consegui sentir a finitude da vida e sua preciosidade.
Não damos valor, mas ela é frágil, precária, incerta, capaz de terminar a
qualquer momento, sem aviso. Lembrei-me do que deveria ser óbvio,
mas nem sempre é: que cada dia, cada hora e cada minuto merecem ser
apreciados.
Também senti algo mais — espanto diante da infinita capacidade
do coração humano, grande o bastante para absorver uma tragédia
desta magnitude e ainda ser capaz de encontrar espaço para os
pequenos momentos de dor e sofrimento pessoal que fazem parte da
vida de qualquer um. No meu caso, um desses pequenos momentos
dizia respeito ao meu cachorro doente. Um pouco envergonhado,
percebi que mesmo no meio daquela colossal tragédia que foi o Vôo 93,
eu ainda sentia uma dor aguda por causa da perda que eu sabia que
teria de enfrentar.
Marley estava vivendo um tempo a mais, isto estava claro. Outra
crise poderia surgir a qualquer momento e, quando surgisse, eu não iria
lutar contra o inevitável. Qualquer procedimento médico invasivo a esta
altura da vida seria cruel, algo que Jenny e eu faríamos mais por nós do
que por ele. Nós amávamos aquele velho cachorro doido, nós o
amávamos apesar de tudo — ou talvez por causa de tudo. Mas eu via que
estava chegando a hora em que teríamos de deixá-lo ir. Andei até o carro
e voltei para o quarto do hotel.
No dia seguinte, depois de entregar o artigo da minha coluna,
telefonei do hotel para casa.
—Você precisa saber que Marley realmente sente sua falta — disse
Jenny.
—Marley? E vocês?
—E claro que sentimos, seu bobo. Mas o que quero dizer é que
Marley realmente, realmente sente sua falta. Ele está nos deixando
malucos.
Na noite anterior, como não conseguia me encontrar, Marley
andara por toda a casa várias vezes, farejando, indo em todos os
cantos, olhando atrás das portas e dentro dos armários. Fez um esforço
enorme para subir as escadas e, ao não me encontrar no andar de
cima, desceu e começou tudo de novo.
— Ele estava realmente intranqüilo — ela disse.
Ele até criara coragem para descer ao porão, onde até as escadas
de madeira escorregadias passaram a representar uma dificuldade para
ele, Marley me fazia companhia por horas em minha oficina, farejando
meus pés enquanto eu trabalhava, soltando serragem que cobria seu
pêlo. Depois de descer, ele não conseguia mais subir as escadas, e ficou
choramingando e gemendo, até Jenny e as crianças irem resgatá-lo,
segurando-o pelos ombros e quadris, arrastando-o degrau por degrau.
Na hora de dormir, em vez de deitar ao lado de nossa cama como
sempre fazia, Marley acampou no alto da escada, de onde poderia ver
todos os quartos e a porta da frente que dava para o fundo da escada para
o caso de: (1) eu sair do lugar onde estivesse escondido, ou (2) chegar em
casa à noite, imaginando que eu tivesse saído sem avisá-lo. Era ali que
ele estava de manhã quando Jenny desceu para preparar o café da
manhã. Passaram-se algumas horas antes que ela percebesse que
Marley ainda não havia dado as caras, o que era bastante incomum.
Ele era quase sempre o primeiro a descer os degraus de manhã,
correndo na frente e abanando o rabo na porta da frente para sair. Ela
o encontrou dormindo profundamente no assoalho junto ao meu lado
da cama. Então, ela descobriu o motivo. Ao se levantar, sem querer ela
empurrou os travesseiros — ela dorme com três — para o meu lado da
cama, sob as cobertas, formando um grande volume no lado em que
costumo me deitar. Com sua visão de Mr. Magoo, Marley deve ter
confundido a pilha de travesseiros com o seu dono.
— Ele simplesmente pensou que você estava lá! — ela disse. —
Juro que ele fez isso! Ele achou que você estava dormindo!
Rimos juntos ao telefone e, então, Jenny disse:
—Você tem de reconhecer a lealdade dele.
—Não tenha dúvida quanto a isso. Ele nunca teve dificuldades
de demonstrar sua devoção.
Fazia apenas uma semana que eu havia voltado de Shanksville,
quando aconteceu a crise que sabíamos que iria acontecer a qualquer
hora. Eu estava no quarto me vestindo para ir trabalhar, quando ouvi
um terrível estrondo seguido do grito de Conor:
— Socorro! Marley caiu da escada!
Corri e encontrei-o caído no fundo da longa escada, fazendo força
para se pôr de pé. Jenny e eu nos apressamos em ajudá-lo e passamos as
mãos pelo seu corpo, apertando suas patas de leve, massageando seus
quadris e sua coluna. Aparentemente, ele não quebrara nada. Gemendo,
Marley conseguiu ficar de pé, sacudiu-se e saiu andando, mancando um
pouco. Conor vira a queda. Ele contou que Marley começou a descer as
escadas, mas, depois de dois degraus, percebeu que estavam todos no
andar de cima e tentou voltar. Ao tentar se virar, seus quadris falharam e
ele desceu em queda livre escada abaixo.
—Nossa, ele teve sorte — eu disse. — Uma queda dessas
poderia matá-lo.
—Incrível que ele não tenha se machucado — Jenny disse. —
Ele parece um gato com nove vidas.
Mas ele havia se ferido. Em poucos minutos, começou a enrijecer
e quando voltei do trabalho aquela noite, Marley não conseguia se mover.
Ele parecia estar com dores por todo o corpo, como se tivesse levado uma
surra de bandidos. Mas o que realmente o incomodava era sua pata
esquerda da frente; ele não conseguia se apoiar sobre ela de jeito
nenhum. Eu conseguia apertá-la sem que ele ganisse, e desconfiei que ele
tivesse lesado um tendão. Quando ele me viu, tentou ficar de pé e vir ao
meu encontro, mas não conseguiu. Com a pata da frente machucada e as
patas traseiras enfraquecidas, ele não tinha forças para fazer nada.
Marley tinha apenas uma única pata boa, algo péssimo para um animal
de quatro patas. Ele finalmente tentou e apoiou-se em três patas para
chegar até a mim, mas suas patas traseiras falharam e ele estabacou-se
no chão. Jenny deu-lhe uma aspirina e prendeu um saco de gelo sobre
sua pata da frente. Marley, brincalhão, apesar de estar imobilizado, tentou
lamber os cubos de gelo.
Por volta das dez e meia da noite ele ainda não havia melhorado e
ainda não tinha saído para esvaziar a bexiga desde uma da tarde. Ele estava
segurando a urina fazia quase dez horas. Eu não tinha idéia de como fazer
para levá-lo para fora para que pudesse urinar e depois trazê-lo de volta para
dentro. Cruzando os braços e fechando minhas mãos sob o peito dele,
ajudei-o a ficar de pé. Juntos, fomos até a porta da frente; eu o segurava,
enquanto ele se arrastava. Mas, quando saímos na varanda, ele parou.
Estava chovendo, e os degraus da varanda, sua nêmesis, estavam molhados
e escorregadios. Ele se mostrou inquieto.
— Vamos lá — eu disse. — Só um pipizinho rápido e voltamos
logo para dentro.
Mas não teve jeito. Desejei poder convencê-lo a fazer ali mesmo na
varanda e encerrar o assunto, mas jamais eu conseguiria ensinar um
truque novo àquele cão velho. Ele entrou novamente mancando e lançou
um olhar melancólico, como se pedisse desculpas por saber o que estava
para acontecer.
— Tentamos de novo mais tarde — eu disse a ele.
Como se tivesse entendido a deixa, ele se abaixou nas três patas e
esvaziou a bexiga no chão da entrada da sala, espalhando a urina à sua
volta. Foi a primeira vez desde que era filhote que Marley urinava na
casa.
Na manhã seguinte, Marley estava se sentindo melhor, embora
ainda se movesse como um semi-inválido. Nós o levamos para fora,
onde ele urinou e evacuou sem problemas. Juntos, Jenny e eu, o
erguemos por cima dos degraus da varanda para carregá-lo para dentro.
— Estou com a impressão — eu disse a ela — de que Marley
nunca mais verá o andar de cima da casa novamente.
Sem dúvida ele havia subido as escadas pela última vez. A partir
de então, ele teria de se acostumar a viver e dormir no térreo.
Trabalhei em casa naquele dia, e estava no quarto em cima
escrevendo minha coluna no laptop, quando ouvi um barulho na
escada. Parei de digitar e tentei ouvir melhor. O som pareceu
instantaneamente familiar, uma espécie de passada barulhenta como o
som da ferradura de um cavalo galopando sobre uma rampa. Olhei para
a porta do quarto e suspendi a respiração. Poucos segundos depois, a
cabeça de Marley apareceu no canto da parede e, em seguida, ele entrou
mancando no quarto. Seus olhos brilharam ao me ver. Então você está
aí! Ele afundou a cabeça no meu colo, suplicando por um carinho, que
considerei merecido.
— Marley, você conseguiu! — exclamei. — Seu velho cão de
caça! Não acredito que você está aqui em cima!
Depois, sentado no chão com ele, coçando seu pescoço, ele girou
a cabeça e mordeu meu pulso de leve. Era um bom sinal, que indicava
o filhote que ainda existia nele. O dia em que ele não reagisse e me
deixasse mexer com ele sem corresponder de alguma forma, ele estaria
nas últimas. Na noite anterior, ele parecia estar à beira da morte e, de
novo, eu me preparara para o pior. Hoje, ele resfolegava e dava patadas,
cobrindo minha mão de saliva. Quando eu pensava que sua longa e
bem-sucedida jornada chegara ao fim, ele voltava.
Puxei sua cabeça para cima e fiz com que me encarasse:
-— Você vai me dizer quando chegar a hora, certo? — eu disse,
mais informando do que perguntando.
Eu não queria ter de tomar a decisão sozinho.
— Você vai me dizer, não vai?
Capítulo 27
A grande planície
O inverno chegou cedo naquele ano e, à medida que os dias iam
ficando mais curtos e os ventos assobiavam pelos galhos enregelados,
nos aninhamos no aconchego do nosso lar. Cortei lenha para todo o
inverno e empilhei junto à porta traseira. Jenny fez sopas suculentas e
pães caseiros, e as crianças de novo se postaram junto à janela e
esperaram a neve começar a cair. Eu também ansiava pela primeira
neve, mas com certo temor, imaginando como Marley iria conseguir
sobreviver ao rigor de mais um inverno. O inverno anterior já havia sido
muito duro para ele, e agora ele estava visivelmente mais fraco. Eu não
conseguia imaginar como ele faria para andar sobre calçadas cobertas
de gelo, escadas escorregadias e paisagens cobertas de neve. Estava
começando a entender por que os idosos iam aproveitar sua
aposentadoria na Flórida ou no Arizona.
Numa prazerosa noite de domingo em meados de dezembro,
quando as crianças haviam acabado de fazer a lição de casa e tocado
seus instrumentos musicais, Jenny começou a fazer pipoca na panela e
declarou uma noite de cinema em família. As crianças correram para
escolher um vídeo, e eu assobiei para chamar Marley, levando-o para
fora para encher uma cesta do estoque de madeira. Ele ficou zanzando
pela grama coberta de gelo, enquanto eu apanhava a lenha, encarando
0 vento, o nariz úmido farejando o ar gelado como se estivesse
medindo a força do inverno. Bati palmas e acenei para chamar sua
atenção, e ele me seguiu, hesitando diante dos degraus da varanda
antes de juntar coragem para se lançar sobre eles, puxando as patas
traseiras.
Dentro de casa, acendi o fogo, enquanto as crianças escolhiam o
filme. As chamas aumentaram e o calor espalhou-se pela sala, levando
Marley a escolher, como de hábito, o melhor lugar para ele, exatamente
em frente à lareira. Deitei-me no chão a pouca distância dele e coloquei a
cabeça sobre uma almofada, olhando mais para o fogo do que para o filme.
Marley não queria perder seu lugar aquecido, mas também não conseguia
resistir à chance. Seu ser humano favorito estava no mesmo nível do chão,
deitado, totalmente indefeso. Quem era o macho-alfa agora? Ele começou
a abanar o rabo no chão. Então, começou a rastejar em minha direção.
Arrastou a barriga de um lado para outro, as patas traseiras estendidas
para trás, aproximando-se rapidamente de mim, passando a cabeça sobre
meus quadris. No momento em que estendi o braço para fazer um carinho
nele, ele se rendeu. Ele se ergueu apoiando-se nas patas, sacudiu-se com
força, cobrindo-me de pêlo e olhou para mim, colocando a mandíbula
cheia de saliva acima do meu rosto. Quando comecei a rir, ele entendeu
como sinal verde para avançar, e antes que eu percebesse o que estava
acontecendo, ele subiu em cima do meu peito com as patas da frente e,
soltou o corpo, desabando em cima de mim.
— Ai! — gritei, debaixo do seu peso. — Labrador em ataque
frontal!
As crianças gargalharam. Marley não podia acreditar na sua sorte.
Eu sequer estava tentando tirá-lo de cima de mim. Ele se curvou, salivou,
lambiscou meu rosto inteiro e empurrou meu pescoço com o nariz. Eu
mal podia respirar com o peso dele e, depois de alguns minutos, empurrei
parte do corpo dele para o lado, onde permaneceu por quase todo o filme,
com cabeça, ombros e uma das patas sobre meu peito, e o resto do corpo
pressionando o lado do meu corpo.
Não disse a ninguém, mas me vi saboreando aquele momento,
sabendo que não se repetiriam muitos mais como este. Marley estava
vivendo tranqüilamente o ocaso de uma vida longa e cheia de
acontecimentos. Relembrando muito depois, eu recordaria esta noite na
frente da lareira por seu verdadeiro significado: esta foi nossa festa de
despedida. Passei a mão sobre a cabeça dele até que adormecesse, e depois
continuei a fazer isso por mais algum tempo.
Quatro dias depois, carregamos a minivan, preparando para as
férias da família na Disney World, na Flórida. Seria o primeiro Natal das
crianças longe de casa, e elas estavam completamente agitadas. Naquela
noite, como parte dos preparativos para sair bem cedo, Jenny levou Marley
até a clínica da veterinária, onde ela havia organizado tudo para ele ficar
na Unidade de Terapia Intensiva durante a semana que ficaríamos fora; ali,
os médicos e funcionários ficariam de olho nele 24 horas, e ele não seria
incomodado pelos outros cães. Depois de ter ficado aos cuidados deles no
verão passado, eles se sentiram felizes em poder lhe dar uma atenção
especial sem custo adicional.
À noite, ao terminar de fazer as malas, Jenny e eu comentamos
como nos sentíamos estranhos de estar em casa sem cachorro. Não
ouvíamos os passos caninos constantes e barulhentos seguindo-nos onde
quer que fôssemos, tentando passar conosco pela porta toda vez que
levávamos um saco de lixo para a garagem. A sensação de liberdade era
grande, mas a casa parecia deserta e vazia, mesmo com as crianças
pulando pelas paredes.
Na manhã seguinte, assim que o sol se levantou, embarcamos na
minivan e partimos em direção ao sul. Entre os pais de família que
conheço, ridicularizar o empreendimento Disney como um todo é um
esporte favorito. Perdi a conta de quantas vezes eu disse que
poderíamos levar a família inteira para Paris pelo mesmo valor. Mas a
família toda se divertiu muito, inclusive o papai do contra. Dos
problemas em potencial — enjôo, mau humor devido ao cansaço,
bilhetes perdidos, crianças perdidas, brigas de filhos — escapamos de
todos. Passamos maravilhosas férias em família, e gastamos boa parte
da longa viagem de volta para o norte relembrando as coisas boas e
ruins de cada passeio, cada refeição, cada mergulho, de cada momento.
Quando estávamos a meio caminho da estrada no Estado de Maryland,
a apenas quatro horas de casa, meu celular tocou. Era uma das
funcionárias da clínica veterinária. Marley estava em estado de letargia,
ela disse, e seus quadris haviam piorado muito. Ele parecia estar
sofrendo. Ela disse que a veterinária precisava que autorizássemos para
que pudessem aplicar uma injeção de esteróide e analgésicos. Claro,
respondi. Faça o que for preciso para que ele se sinta melhor,
estaremos aí para pegá-lo amanhã.
Quando Jenny chegou para buscá-lo e trazê-lo para casa na tarde
seguinte, em 29 de dezembro, Marley parecia cansado e um pouco triste,
mas não visivelmente doente. Já nos haviam avisado que seus quadris
estavam mais fracos ainda. A médica recomendou que começássemos a
ministrar uma medicação para artrite, e um funcionário ajudou Jenny
a colocá-lo na minivan. Porém, meia hora depois de chegar em casa, ele
estava com enjôos, tentando expelir catarro de sua garganta. Jenny
deixou-o sair no jardim, e ele simplesmente se deitou sobre o chão
gelado, e não conseguia ou não queria se mover. Ela ligou para mim na
redação, em pânico.
— Eu não consigo fazê-lo voltar para dentro — ela disse. — Ele
está lá fora, deitado no frio, e não consegue se levantar.
Saí imediatamente e, quando cheguei, quarenta e cinco minutos
depois, ela havia conseguido fazer ele se levantar e entrar em casa.
Encontrei-o esparramado no chão da sala de jantar, visivelmente
perturbado e irreconhecível.
Em treze anos, eu não entrara em casa sem que ele viesse
saltitando, se esticando, sacudindo, resfolegando, abanando e batendo o
rabo em tudo, recebendo-me como se eu tivesse acabado de voltar da
Guerra dos Cem Anos. Mas não neste dia. Seus olhos me seguiram ao
entrar na sala, mas sua cabeça não se moveu. Ajoelhei-me ao lado dele
e acariciei seu focinho. Ele não reagiu. Ele não tentou mordiscar meu
pulso, não queria brincar, sequer levantou a cabeça. Seus olhos
estavam distantes, e o rabo permanecia imóvel no chão.
Jenny havia deixado duas mensagens na clínica veterinária, e
estava esperando um veterinário ligar de volta, mas estava ficando claro
que a situação era uma emergência. Liguei pela terceira vez. Após
algum tempo, Marley lentamente conseguiu equilibrar-se sobre as
pernas trêmulas e tentou expelir alguma coisa de novo, mas não colocou
nada para fora. Foi quando olhei para seu estômago; parecia mais
dilatado do que o normal e muito rijo. Senti dor no coração; eu sabia o
que isso queria dizer. Liguei novamente para a clínica e, desta vez,
descrevi o inchaço do estômago de Marley. A recepcionista pediu-me que
aguardasse, então retornou e disse:
— A doutora disse para trazê-lo imediatamente.
Jenny e eu não precisamos dizer nada; entendemos que havia
chegado a hora. Abraçamos as crianças, dizendo-lhes que Marley teria
de ir para o hospital, e que os médicos iriam tentar fazer com que ele se
sentisse melhor, mas que ele estava muito doente. Enquanto eu me
aprontava para sair, olhei de volta, e vi Jenny e as crianças à volta dele
deitado no chão, em grande sofrimento, despedindo-se dele. Cada um
lhe fez um carinho e falou-lhe algo especial. As crianças continuavam
otimistas acreditando que esse cachorro, que fora presença constante
em suas vidas, logo estaria de volta, novo em folha.
— Fique bonzinho, Marley — disse Colleen com sua voz
pequenininha.
Com a ajuda de Jenny, coloquei-o atrás no carro. Ela o abraçou
rapidamente mais uma vez, e eu saí com ele, prometendo ligar assim
que tivesse alguma notícia. Ele ficou deitado no chão junto ao banco de
trás com a cabeça apoiada sobre o eixo central, e eu dirigi com uma das
mãos no volante e a outra esticada para trás para poder tocar sua
cabeça e os ombros.
— Oh, Marley! — eu dizia.
No estacionamento da clínica veterinária, ajudei-o a sair do carro,
e ele parou para farejar uma árvore onde todos os cachorros mijavam —
ainda curioso, apesar de estar tão doente. Esperei um pouco, sabendo
que talvez esta fosse a última vez que ele estaria ao ar livre, que tanto
adorava, então, puxei o enforcador de leve e conduzi-o ao saguão de
entrada. Assim que atravessamos a porta, ele decidiu que já havia ido
longe o suficiente e deitou-se suavemente sobre o piso de lajotas. Ao não
conseguirmos colocá-lo novamente de pé, os funcionários da clínica
trouxeram uma maca, colocaram-no em cima, e desapareceram com ele
por trás do balcão, seguindo para a sala de exames.
Poucos minutos depois, a médica veterinária, uma jovem que eu
nunca vira antes, levou-me para uma sala e mostrou-me dois exames
de raio-X sobre um quadro de luz. Ela mostrou como o estômago de
Marley havia duplicado de tamanho. No exame, perto do local onde o
estômago encontra o intestino, ela indicou duas manchas escuras do
tamanho de um punho que, segundo ela, indicavam uma torção. Como
da outra vez, ela disse que iria sedá-lo, e introduzir um tubo no
estômago para liberar o gás que causava o inchaço. Então, iria usar o
tubo para examinar manualmente a área anterior ao estômago.
— É uma tentativa — ela disse —, mas vou tentar usar o tubo
para massagear o estômago para recolocá-lo no lugar.
As probabilidades eram exatamente as mesmas que a Dra.
Hopkinson sugerira no verão. Funcionara uma vez; poderia funcionar
de novo. Mantive-me veladamente otimista.
— Está bem — eu disse. — Por favor, faça o melhor que puder.
Meia hora depois, ela voltou com uma expressão séria. Ela tentara
três vezes e não conseguira romper o bloqueio. Havia ministrado mais
sedativos, esperando que pudessem fazer os músculos do estômago
relaxar. Como nada disso funcionou, ela introduzira um cateter pelo
quadril em uma última tentativa de desobstruir o bloqueio, mas também
não surtiu efeito.
— Diante desta situação — ela disse —, nossa única alternativa
é a cirurgia.
Ela fez uma pausa para avaliar se eu estaria preparado para
conversar sobre o inevitável, e então disse:
— Ou talvez a coisa mais humana a fazer seja sedá-lo.
Jenny e eu tivemos de enfrentar esta decisão cinco meses antes,
e já havíamos feito a escolha mais difícil. Minha visita a Shanksville
apenas firmou minha decisão de não submeter Marley a mais nenhum
sofrimento. Mesmo assim, na sala de espera, novamente diante de um
momento de decisão, eu gelei. A médica sentiu minha aflição e
ponderou sobre as complicações que deveríamos esperar, caso
decidíssemos operar um cão na idade de Marley. Outra coisa que a
preocupava, ela disse, era um resíduo de sangue que saíra pelo cateter,
indicando problemas na parede do estômago.
— Quem sabe o que vamos encontrar ao abrir — ela explicou.
Eu disse a ela que queria sair por alguns instantes para ligar para
minha mulher. Pelo celular, no estacionamento, contei a Jenny que eles
haviam tentado de tudo, exceto a cirurgia. Ficamos em silêncio ao
telefone por longos minutos. Então, ela disse:
—Eu o amo, John.
—Eu também a amo, Jenny — respondi.
Entrei novamente e perguntei à veterinária se poderia ter alguns
minutos a sós com ele. Ela me disse que ele estava fortemente sedado.
— Fique o tempo que precisar — ela disse.
Ele estava inconsciente sobre uma maca no chão, tomando soro
pela pata. Ajoelhei-me e passei os dedos por seu pêlo, do jeito que ele
gostava. Passei a mão pelas suas costas. Ergui cada uma de suas orelhas
com a mão — aquelas orelhas doidinhas que haviam causado tantos
problemas todos aqueles anos e que nos haviam custado o resgate de
um rei — e senti seu peso sobre meus dedos. Abri seus lábios e observei
seus dentes gastos. Peguei uma das patas dianteiras e a comprimi em
minha mão. Então, encostei minha testa na dele e fiquei ali sentado por
algum tempo, como eu se pudesse telegrafar uma mensagem através de
nossos crânios, da minha mente para a dele. Queria que ele soubesse de
algumas coisas.
— Sabe todas aquelas coisas que sempre falamos sobre você? —
sussurrei. — Que você era um saco? Não acredite nisso. Não acredite
nem por um minuto, Marley.
Ele precisava saber disso e algo mais também. Havia algo que eu
nunca lhe dissera, que nunca ninguém lhe disse. Queria que ele ouvisse
antes de morrer:
— Marley — eu disse —, você é um grande cachorro.
Encontrei a veterinária esperando ao lado do balcão da recepção.
— Estou pronto — eu disse.
Minha voz estava embargada, o que me surpreendeu, porque eu
realmente acreditava que havia me preparado para este momento há
meses. Sabia que se dissesse mais uma palavra, eu iria desabar, de modo
que apenas meneei a cabeça e assinei quando ela me entregou os
formulários. Quando terminamos a papelada, eu a segui até onde
Marley estava, e me ajoelhei novamente à sua frente, segurando sua
cabeça entre minhas mãos, enquanto ela preparava a seringa e a
colocava no cateter.
— Tudo bem? — ela perguntou.
Eu assenti, e ela injetou o líquido. Sua mandíbula estremeceu de
leve. Ela auscultou o coração dele e disse que havia desacelerado, mas
ainda estava batendo. Ele era um cachorro grande. Ela preparou uma
segunda seringa e injetou o líquido mais uma vez. Um minuto depois,
ela o auscultou novamente e disse:
— Ele se foi.
Ela me deixou sozinho com ele. Ergui cuidadosamente uma de
suas pálpebras. Ela estava certa; Marley se fora.
Fui até a recepção e paguei a conta. Ela ofereceu uma “cremação
coletiva” por 75 dólares, ou uma cremação individual, com entrega das
cinzas por 170 dólares. Não, eu disse, vou levá-lo para casa. Poucos
minutos depois, ela e um assistente o trouxeram em um grande saco preto
sobre uma maca de rodinhas, e me ajudaram a levantá-lo para colocar no
banco de trás do carro. A veterinária apertou minha mão e me disse o
quanto sentia. Ela fizera o melhor que pôde, ela disse. A hora dele havia
chegado, respondi, então, agradeci a ela e fui embora.
No carro, a caminho de casa, comecei a chorar, coisa que quase
nunca faço, nem mesmo em enterros. Chorei apenas por alguns
minutos. Quando estacionei, meus olhos já estavam secos. Deixei
Marley no carro e entrei em casa, e encontrei Jenny que me esperava
acordada. As crianças estavam dormindo; contaríamos a elas pela
manhã. Abraçamo-nos e começamos a chorar. Tentei descrever tudo que
se passara, para garantir-lhe que ele já estava dormindo
profundamente quando sobreveio o fim, que não houve pânico, nem
trauma, nem dor. Mas eu não conseguia encontrar as palavras. Então,
ficamos simplesmente abraçados. Mais tarde, fomos para fora e juntos
retiramos o pesado saco do carro, colocamos sobre a carreta do jardim,
e empurrei-o até a garagem para passar a noite.
Capítulo 28
Sob as cerejeiras
Naquela noite, dormi de forma intermitente e, uma hora antes de
o sol nascer, deslizei para fora da cama e me vesti sem fazer barulho
para não acordar Jenny. Na cozinha, bebi um copo d’água — o café
poderia esperar — e saí. Do lado de fora, senti uma garoa leve, a neve
semiderretida. Peguei uma pá e uma picareta, e andei até um canteiro
que abrigava os pinheiros onde Marley havia buscado um lugar para se
aliviar no inverno passado. Eu decidira que aquele seria o local onde
ele iria descansar.
A temperatura estava um pouco acima de zero grau, e o solo
felizmente sem gelo. Na semi-escuridão, comecei a cavar. Depois de tirar
uma camada superficial de terra, bati em uma argila densa, pesada,
misturada a pedras — sobras da escavação do nosso porão — e o
trabalho tornou-se lento e árduo. Depois de quinze minutos, tirei o
casaco e parei para retomar o fôlego. Depois de trinta minutos, eu estava
banhado em suor e cavara pouco mais de meio metro. Após quarenta e
cinco minutos, encontrei água. O buraco começou a encher. E encher.
Logo o fundo se encheu com trinta centímetros de água gelada e
barrenta. Peguei um balde e tentei esvaziá-lo, mas a água não parava
de entrar. Não havia como enterrar Marley naquele pântano gelado. De
jeito nenhum.
Apesar de todo o trabalho que eu tivera — meu coração batia
como se eu tivesse acabado de correr uma maratona — abandonei o
lugar e percorri o quintal, parando no ponto onde o gramado terminava
e começava o bosque no pé da colina. Entre duas grandes cerejeiras,
cujos galhos desenhavam um arco acima da minha cabeça sob a luz
cinza do alvorecer como uma catedral ao ar livre, finquei minha pá. Eram
as mesmas árvores por onde Marley e eu passamos disparando com o
tobogã, e eu exclamei:
— Isto parece o certo.
Este ponto estava além do lugar onde as máquinas de
terraplanagem haviam espalhado sedimentos, e o solo natural era leve
e bem irrigado, o sonho dos jardineiros. Cavar foi fácil, e rapidamente
consegui abrir um buraco oval de cerca de meio metro de comprimento
por um de largura, e um metro e vinte de profundidade. Voltei em casa
e encontrei as três crianças acordadas, fungando, baixinho. Jenny
acabara de lhes contar.
Ver como eles reagiram diante de sua primeira experiência diante
da morte afetou-me sobremaneira. Sim, era apenas um cachorro, e
cachorros vêm e vão ao longo da vida humana, às vezes, simplesmente,
porque se tornam um inconveniente. Ele era apenas um cachorro, mas,
mesmo assim, toda vez que eu tentava falar sobre Marley com eles,
meus olhos se enchiam de lágrimas. Eu disse a eles que não havia
problema algum em chorar, e que as pessoas que têm cães sempre
acabavam passando por momentos tristes como esse, porque os cães
não vivem tanto quanto as pessoas. Contei a eles que Marley estava
dormindo quando lhe aplicaram a injeção, e que ele não sentira nada.
Ele simplesmente adormeceu e se foi. Colleen ficou chateada por não
ter podido se despedir dele de verdade; ela achava que ele voltaria para
casa. Eu disse a ela que havia me despedido dele por todos. Conor,
nosso escritor precoce, mostrou-me uma coisa que fizera para Marley,
para ser enterrado com ele. Era o desenho de um grande coração
vermelho sob o qual estava escrito: “Para Marley: espero que você saiba
o quanto eu o amei minha vida toda. Você sempre esteve ao meu lado
quando precisei de você. Na vida e na morte, sempre vou amar você.
Seu irmão, Conor Richard Grogan”. Então, Colleen fez o desenho de
uma menina com um grande cachorro amarelo e, com a ajuda da mãe,
escreveu embaixo: “PS: Nunca vou esquecer você”.
Saí de casa sozinho, e empurrei o corpo de Marley sobre a
carreta colina abaixo, onde cortei alguns galhos de pinheiro macios
para forrar o fundo do buraco. Peguei o saco que continha o corpo e
depositei-o na cova com o maior cuidado possível, embora não haja
um modo delicado para se fazer isso. Entrei na cova, abri o saco para
olhá-lo pela última vez, e coloquei-o em uma posição natural e
confortável — como ele ficaria se estivesse na frente da lareira,
enrodilhado, a cabeça sobre a lateral de seu corpo.
— Tudo bem, velhão, é isso aí.
Fechei o saco e voltei para casa, para buscar Jenny e as crianças.
Caminhamos até o túmulo juntos. Conor e Colleen colaram seus
desenhos e os colocaram dentro de um plástico, que coloquei ao lado
da cabeça de Marley. Com o canivete, Patrick cortou cinco galhos de
pinheiro, um para cada um. Um a um, jogamos os galhos na cova,
sentindo o perfume ao nosso redor. Fizemos uma pausa e, então, como
se tivéssemos ensaiado, falamos todos ao mesmo tempo:
— Marley, nós amamos você.
Peguei a pá e joguei a primeira leva de terra. Ela bateu sobre o
plástico, produzindo um som horrível e Jenny começou a chorar.
Continuei jogando terra. As crianças ficaram observando, em silêncio.
Quando a cova estava meio cheia, fiz uma pausa e voltamos para
casa, onde nos sentamos em torno da mesa da cozinha e contamos
histórias engraçadas sobre Marley. Num instante, nossos olhos
estavam cheios de lágrimas, no seguinte, estávamos rindo. Jenny
contou como Marley ficou maluco durante as filmagens de A última
jogada, quando um desconhecido pegou Conor no colo. Eu falei sobre
todas as coleiras que ele roera e da vez que mijou na perna do vizinho.
Falamos de todas as coisas que ele destruíra e os milhares de dólares
que gastamos por causa dele. Agora podíamos rir disso. Para fazer as
crianças se sentirem melhor, contei-lhes algo que eu, no fundo, não
acreditava:
— O espírito de Marley agora está no céu dos cães. Ele está em
uma imensa planície dourada, correndo livre. E seus quadris estão
bons novamente. E sua audição voltou, sua visão está ótima e ele tem
todos os seus dentes. Ele retomou sua forma física e persegue coelhos o
dia inteiro.
Jenny acrescentou:
— E com milhares de portas de tela para atravessar.
A imagem de Marley mexendo-se de forma estabanada pelo céu
fez todo mundo gargalhar.
A manhã estava quase terminando e eu ainda precisava
trabalhar. Retornei à cova sozinho e terminei de enchê-la de terra,
delicadamente, respeitosamente, usando minhas botas para assentá-la.
Quando consegui nivelar a cova com o terreno, coloquei duas grandes
pedras sobre ela, então, voltei para casa, tomei um banho quente e
segui para o trabalho.
Nos dias que se seguiram ao enterro de Marley, toda a família
ficou silenciosa. O animal que havia sido o motivo de diversão de
tantas horas de conversas e histórias nos últimos anos se tornara um
assunto proibido. Estávamos tentando retomar nossa vida, e falar dele
só dificultava as coisas. Colleen, especialmente, não conseguia ouvir
seu nome ou ver uma foto. Seus olhos se enchiam de lágrimas e ela
cerrava os punhos, e dizia com raiva:
— Não quero falar dele!
Retomei minha rotina, dirigindo para o trabalho, escrevendo
minha coluna, retornando para casa. Todas as noites, durante treze
anos, ele ficara à porta de casa à minha espera. Voltar agora no final do
dia era a parte mais difícil. A casa parecia silenciosa, vazia, nem parecia
mais um lar. Jenny passava aspirador como se estivesse possuída,
determinada a acabar com todo o pêlo de Marley que caíra aos tufos
nos últimos anos, metendo-se por todas as fendas e dobras. Aos
poucos, os sinais do velho cão foram sendo apagados. Certa manhã, fui
colocar os sapatos e dentro havia uma camada de pêlos de Marley que
havia ficado grudado em minhas meias e iam lentamente se depositando
dentro dos sapatos. Fiquei ali sentado, olhando — na verdade,
acariciando os pêlos com os dedos — e sorri. Ergui o sapato para
mostrá-lo a Jenny e comentei:
— Não vamos conseguir nos livrar dele tão facilmente.
Ela riu, mas, naquela noite, no quarto, Jenny — que não falara
muito durante toda a semana — resolveu extravasar:
—Eu sinto falta dele. Quer dizer, eu realmente, realmente sinto a
falta dele. Sinto tanto a falta dele que chega a doer em mim.
—Eu sei — respondi. — Eu também sinto.
Quis escrever uma coluna para me despedir de Marley, mas tinha
medo que minha emoção se derramasse de forma melodramática e
sentimental a ponto de me constranger. Então, tratei de assuntos
menos importantes para meu coração. Mas carregava um gravador
comigo e, quando me ocorria um pensamento, eu o registrava. Sabia
que queria descrevê-lo como ele realmente era e não como a perfeita e
improvável reencarnação de Rin Tin Tin ou da Lassie, como se houvesse
alguma chance de isso acontecer. Tantas pessoas reinventam seus
bichos de estimação quando eles morrem, transformando-os em animais
nobres, sobrenaturais, que, em vida, faziam tudo por seus donos, menos
fritar ovos para o café da manhã. Eu queria ser honesto. Marley era um
pé no saco engraçado e extraordinário, que nunca entendeu muito bem
como acatar uma ordem. Francamente, ele talvez tenha sido o cão
mais mal comportado do mundo. Mesmo assim, desde o início, ele
entendeu o que significava ser o melhor amigo do homem.
Na semana em que ele morreu, desci a colina até onde ele estava
enterrado várias vezes. Em parte queria ter certeza que nenhum animal
selvagem estaria aparecendo à noite. O túmulo continuava intocado,
mas já dava para perceber que na primavera eu teria de trazer alguns
carrinhos de terra para cobrir a depressão que estava se formando.
Mas, principalmente, eu queria estar com ele. Ali, de pé, relembrei
pequenas passagens de sua vida. Eu me sentia envergonhado ao
perceber o quão profundamente eu sentia a morte deste cão, mais
profundamente do que de alguns humanos que eu havia conhecido.
Não que eu igualasse a vida de um cachorro à de um ser humano, mas
além das pessoas mais próximas de minha família, poucas se deram tão
altruisticamente a mim. Tirei, escondido, a guia de Marley do carro,
onde havia ficado desde sua última ida ao hospital e coloquei-a na
gaveta sob minha roupa íntima em meu armário, onde, toda manhã, eu
podia tocá-la.
Passei a semana sentindo uma dor incômoda dentro de mim. Era
uma sensação física, não muito diferente de uma dor de estômago. Eu
estava sentindo uma letargia, falta de motivação. Eu não tinha energia
sequer para meu lazer — tocar violão, trabalhar com a madeira ou ler.
Eu me sentia indisposto, sem saber muito bem o que fazer. Acabei
indo dormir mais cedo quase toda noite, entre nove e meia e dez horas.
Na véspera de ano-novo, fomos convidados para uma festa na casa
de um de nossos vizinhos. Os amigos expressaram suas condolências, mas
procuramos manter a conversa pra cima, falando sobre vários assuntos.
Afinal, era véspera de ano-novo. Durante o jantar, sentei-me ao lado de
Sara e de Dave Pandl, um casal de paisagistas que havia voltado à
Pensilvânia retornando da Califórnia e transformado um velho galpão de
pedra em lar, e se tornado nossos amigos queridos, sentaram-se comigo
em um canto da mesa e conversamos longamente sobre cães, amor e
perdas. Dave e Sara tinham perdido sua adorada Nelly, uma pastora
australiana, cinco anos antes. Eles a enterraram na colina ao lado de sua
casa. Dave é uma das pessoas menos sentimentais que já conheci, um
tipo estóico e taciturno, de descendência holandesa, que vive na
Pensilvânia. Mas quando se falava sobre Nelly, ele também enfrentava
uma profunda tristeza. Ele me contou como procurou, por vários dias, no
bosque atrás de sua casa, pela pedra perfeita para colocar no túmulo dela.
Tinha a forma natural de um coração, que encomendou que fosse inscrito
o nome de Nelly na superfície. Passados tantos anos, a morte de sua
cachorra ainda os afetava profundamente. Seus olhos marejavam ao falar
dela. Como disse Sara, secando as lágrimas, às vezes surge um cão que
verdadeiramente toca a sua vida, e você jamais consegue esquecê-lo.
Naquele fim de semana, fiz uma longa caminhada pelo bosque e,
quando cheguei ao trabalho na segunda-feira, eu sabia o que queria
dizer sobre o cão que tocara minha vida, aquele que eu nunca iria
esquecer.
Comecei a coluna descrevendo minha caminhada pela colina com
a pá ao amanhecer, dizendo como era estranho andar ao ar livre sem
Marley que, durante treze anos, se determinara a estar ao meu lado sempre
que eu saísse, E agora ali estava eu, sozinho, escrevi, abrindo uma cova
para enterrá-lo.
Citei as palavras de meu pai que, quando soube o que havia
acontecido com o velho cão, disse a coisa mais parecida com um elogio
que meu cachorro já recebera.
— Jamais haverá outro cão como Marley.
Pensei muito em como descrevê-lo, e foi isto que resolvi dizer:
“Nunca ninguém disse que ele era um grande cachorro — ou mesmo
um bom cachorro. Ele era tão selvagem quanto uma banshee irlandesa
e tão forte quanto um touro. Ele atravessava a vida alegremente com
um gosto mais freqüentemente associado aos desastres naturais. Ele foi
o único cão que conheci que foi expulso da escola de adestramento”. E
continuei: “Marley mastigava almofadas, destruía telas, babava e
revirava latas de lixo. Quanto à sua mente, vamos apenas dizer que ele
perseguiu seu rabo até o dia em que morreu, aparentemente convencido
de que estava a ponto de realizar um grande feito canino”. Ele não era
só isso, no entanto, e descrevi sua intuição e empatia, sua delicadeza
com crianças, seu coração puro.
O que eu realmente queria contar era como este animal tocara
nossas almas e nos ensinara algumas das lições mais importantes de
nossas vidas. “Uma pessoa pode aprender muito com um cão, mesmo
com um cão maluco como o nosso”, escrevi. “Marley me ensinou a viver
cada dia com alegria e exuberância desenfreadas, aproveitar cada
momento e seguir o que diz o coração. Ele me ensinou a apreciar coisas
simples — um passeio pelo bosque, uma neve recém-caída, uma soneca
sob o sol de inverno. E enquanto envelhecia e adoecia, ensinou-me a
manter o otimismo diante da adversidade. Principalmente, ele me
ensinou sobre a amizade e o altruísmo e, acima de tudo, sobre lealdade
incondicional”.
Era um conceito interessante que só então, após a morte dele, eu
compreendia inteiramente. Marley como mentor. Como professor e
exemplo. Seria possível para um cachorro — qualquer cachorro, mas
principalmente um absolutamente incontrolável e maluco como o
nosso — pudesse mostrar aos seres humanos o que realmente
importava na vida? Eu acreditava que sim. Lealdade. Coragem.
Devoção. Simplicidade. Alegria. E também as coisas que não tinham
importância. Um cão não precisa de carros modernos, palacetes ou
roupas de grife. Símbolos de status não significam nada para ele. Um
pedaço de madeira encontrado na praia serve. Um cão não julga os
outros por sua cor, credo ou classe, mas por quem são por dentro. Um
cão não se importa se você é rico ou pobre, educado ou analfabeto,
inteligente ou burro. Se você lhe der seu coração, ele lhe dará o dele. E
realmente muito simples, mas, mesmo assim, nós humanos, tão mais
sábios e sofisticados, sempre tivemos problemas para descobrir o que
realmente importa ou não. Enquanto eu escrevia a coluna de despedida
para Marley, descobri que tudo estava bem à nossa frente, se apenas
pudéssemos ver. Às vezes, era preciso um cachorro com mau hálito,
péssimos modos e intenções puras para nos ajudar a ver.
Terminei minha coluna, entreguei-a ao meu editor, e peguei o carro
para voltar para casa, sentindo-me de algum modo mais leve, quase
flutuando, como se tivesse me livrado de um peso que nem sabia que
carregava.
Capítulo 29
O Clube dos
Cães Malvados
Quando cheguei ao trabalho na manhã seguinte, a luzinha
vermelha da caixa de mensagens do meu telefone estava piscando. A
maioria das pessoas que escreveu ou telefonou queria simplesmente
expressar sua solidariedade, dizer que também trilhara esse caminho,
e que sabia o que minha família estaria passando. Outros tinham
cachorros cujas vidas estavam caminhando para o inevitável fim;
temiam o que sabiam que estava por acontecer, da mesma forma que
havíamos temido.
Um casal escreveu: “Entendemos perfeitamente e sentimos que
vocês tenham perdido Marley, assim como sentimos ter perdido Rusty.
Sempre sentiremos saudade deles, e eles jamais serão substituídos”.
Joyce, uma leitora, escreveu: “Obrigada por nos lembrar de Duncan, que
está enterrado no quintal de nossa casa”. Uma moradora do subúrbio,
chamada Debi, acrescentou: “Nossa família entende como você se
sente. No último Dia do Trabalho tivemos de sedar nosso labrador
dourado Chewy. Ele tinha treze anos e também muitos dos problemas
que você citou em relação ao seu cachorro. Quando não conseguiu
sequer se levantar para sair para se aliviar naquele dia, percebemos que
não poderíamos mais manter aquele sofrimento. Também fizemos um
enterro no quintal de casa, debaixo de um bordo vermelho que será
sempre seu memorial”.
Uma funcionária de um departamento pessoal chamada Mônica,
dona da labradora Katie, escreveu: “Minhas condolências e lágrimas
para vocês. Minha querida Katie tem apenas dois anos e eu sempre me
pergunto: Mônica, como é que você permite que esta criatura
maravilhosa tome conta de seu coração desse jeito?”. De Carmela:
“Marley deve ter sido um ótimo cão para ter uma família que o amava
tanto. Só quem tem cães pode entender o amor incondicional que eles
oferecem e a dor imensa quando eles se vão”. De Elaine: “Nossos
animais de estimação têm vida tão curta e, ainda assim, passam a
maior parte do tempo esperando que voltemos para casa todos os dias. É
impressionante quanto amor e alegria eles trazem para nossas vidas, e
quanto nos aproximamos uns dos outros por causa deles”. De Nancy:
“Os cães são uma das maravilhas da vida e enriquecem tanto a nossa”.
De MaryPat: “Até hoje sinto saudade do barulho que Max fazia andando
pela casa farejando tudo; este silêncio enlouquece qualquer um
principalmente à noite”. De Connie: “Amar um cão é a coisa mais
incrível, não é mesmo? Faz com que nossos relacionamentos com as
pessoas pareçam tão chatos quanto um prato de cereal”.
Quando as mensagens finalmente pararam de chegar, vários dias
depois, resolvi contá-las. Cerca de oitocentas pessoas, que amavam
cães, se sentiram compelidas a me escrever. Tamanho
transbordamento foi uma grande catarse para mim. Quando terminei
de ver todas as mensagens — e respondido o máximo que pude — eu
me sentia melhor. Eu fazia parte de uma gigantesca rede de apoio
cibernético. Meu sofrimento pessoal havia se transformado em uma
sessão de terapia pública e, no meio dessa multidão, ninguém tinha
vergonha de admitir uma dor verdadeira, pungente, por causa de algo
aparentemente tão sem importância quanto um velho cão fedido.
As pessoas escreveram e telefonaram também por outro motivo.
Queriam questionar o argumento central de minha coluna, a parte em
que insisti em dizer que Marley era o animal mais mal-educado do
mundo. “Desculpe”, dizia a maioria das respostas, “mas seu cão não
pode ter sido o pior do mundo, porque o meu era”. Para provar o que
diziam, me forneciam relatos detalhados das coisas deploráveis que
seus animais de estimação faziam. Li sobre cortinas rasgadas, lingerie
roubada, bolos de aniversário devorados, interiores de carros
destruídos, fugas grandiosas, e até um anel de noivado engolido, o que
fez o gosto de Marley por correntes de ouro parecer coisa pequena.
Minha caixa de mensagens parecia um programa de televisão, Cães
Malvados e Pessoas que gostam deles, com vítimas dispostas a fazer fila
para se vangloriar, não porque seus cães fossem maravilhosos, mas
porque eram terríveis. O mais estranho é que a maioria das histórias de
atrocidades envolvia grandes labradores malucos como o meu. Não
estávamos sozinhos, no final das contas.
Uma mulher chamada Elyssa descreveu como seu labrador Mo
sempre escapava de dentro de casa quando o deixavam sozinho,
normalmente, quebrando a tela das janelas. Elyssa e seu marido
achavam que iriam segurar Mo fechando e trancando todas as janelas do
andar térreo. Eles não se lembraram de fechar também as janelas do
andar de cima. “Um dia, meu marido chegou em casa e viu a tela da
janela do andar de cima pendurada. Ele ficou morrendo de medo de
procurar nosso cachorro”, ela escreveu. Quando seu marido já estava
esperando pelo pior, “Mo surgiu, de repente, de trás da casa, com a
cabeça baixa. Ele sabia que estava encrencado, mas ficamos
impressionados pelo fato de ele não ter se machucado. Ele tinha saído
pela janela e caído sobre um arbusto, que amortizou sua queda”.
Larry, o labrador, engoliu o sutiã de sua dona e depois de dez dias
colocou-o inteiro para fora com um arroto. Gypsy, outro labrador de
gostos ousados, devorou a veneziana de uma janela. Jason, uma mistura
de setter irlandês com labrador, destruiu um tubo de um metro e meio
de um aspirador de pó, “com todo o revestimento interno”, contou seu
dono, Mike. “Jason também comeu um pedaço de uma parede de gesso
abrindo um buraco de mais de um metro de diâmetro e abriu outro de
igual tamanho no tapete, a partir de seu lugar favorito ao lado da
janela”, escreveu Mike, acrescentando: “mas eu adorava aquele animal”.
Phoebe, uma labrador não puro-sangue, foi expulsa de dois
canis e impedida de voltar, escreveu sua dona, Aimee. “Parecia que ela
era a líder da gangue, abrindo não apenas sua gaiola, mas fazendo esse
favor a dois outros cães. Eles, então, se serviam de todos os tipos de
petiscos durante a noite”. Hayden, um labrador de aproximadamente
46 quilos, comia praticamente tudo o que suas garras pudessem
alcançar, contou sua dona Carolyn, incluindo uma caixa inteira de
comida para peixe, um par de chinelos de camurça, e um tubo de
cola, “não tudo ao mesmo tempo”. Ela acrescentou: “Mas seu melhor
momento foi quando ele arrancou o batente da porta da garagem,
porque eu, ingenuamente, prendera sua guia ali para que ele tomasse
sol.”
Tim informou que seu labrador amarelo, Ralph, gostava de roubar
comida tanto quanto Marley, só que era mais esperto. Um dia, antes de
sair, Tim colocou um grande pedaço de chocolate em cima da geladeira,
onde ficaria fora do alcance de Ralph. O cão, contou seu dono, abriu as
gavetas do armário da cozinha e usou-as como escada para subir no
balcão, onde conseguiu se apoiar nas patas traseiras e alcançar o
chocolate, que desaparecera sem deixar vestígios quando seu dono voltou
para casa. Apesar da overdose de chocolate, Ralph não passou mal. “Em
outra ocasião”, Tim escreveu, “Ralph abriu a geladeira e consumiu tudo o
que havia dentro, que estava nos potes, inclusive”.
Nancy separou minha coluna para guardá-la, porque Marley
lembrava demais sua labradora Gracie. “Deixei o artigo sobre a mesa
da cozinha e me virei para pegar a tesoura”, escreveu Nancy. “Quando
me virei de volta, Gracie tinha engolido a coluna”.
Uau, eu me sentia melhor a cada minuto! Marley não parecia
mais tão terrível. Pelo menos, o que não iria lhe faltar era companhia no
Clube dos Cães Malvados. Eu trouxe várias das mensagens para casa
para compartilhar com Jenny, que ria pela primeira vez desde a morte
de Marley. Meus novos amigos da Irmandade Secreta dos Donos de
Cachorros Desajustados nos ajudaram mais do que eles poderiam
imaginar.
Os dias se transformaram em semanas e o inverno derreteu na
primavera. Narcisos começaram a brotar e a florescer em torno do
túmulo de Marley, e delicadas flores brancas de cerejeira flutuavam sobre
eles. Aos poucos, a vida sem nosso cachorro se tomou mais tranqüila.
Havia dias que se passavam em que nem me lembrava dele, mas então
um detalhe — um pêlo sobre meu suéter, o barulho da guia quando abria
a gaveta de meias — subitamente trazia-o de volta. Com o passar do
tempo, as lembranças passaram a ser mais agradáveis do que dolorosas.
Momentos que eu esquecera fazia muito tempo, de repente, surgiam em
minha mente com clareza cristalina, como se fossem clipes de velhos
vídeos caseiros: o modo como Lisa, a vítima do ataque, havia se inclinado
e beijado Marley no focinho depois que saiu do hospital. Como a equipe
do filme o adulava. Como a mulher dos correios o enganava todos os dias
na porta da frente. Como ele segurava as mangas com as patas para
descascá-las. Como ele tentava abocanhar as fraldas dos bebês com
aquele olhar de contentamento, como se estivesse drogado, e como
implorava por seus calmantes como se fossem salgadinhos. Pequenos
momentos que provavelmente nem valeriam a pena serem lembrados,
mas ali estavam eles, surgindo aleatoriamente em minha tela de cinema
mental nas horas e nos lugares mais improváveis. A maior parte deles me
fazia sorrir; alguns deles me faziam morder os lábios e pensar.
Eu estava em uma reunião com a equipe de redação quando me
sobreveio esta: estávamos em West Palm Beach, quando Marley ainda
era filhote e Jenny e eu, recém-casados, ainda sonhávamos acordados.
Estávamos caminhando ao longo da Intracoastal Waterway em uma
manhã fria de inverno, de mãos dadas, e Marley seguia na frente, nos
puxando. Deixei que ele brincasse no quebra-mar, que tinha uns
cinqüenta centímetros de largura e ficava a cerca de um metro de altura
da superfície da água.
— John! — Jenny reclamou. — Ele pode cair.
Olhei para ela, descrente.
— Você acha que ele é bobo? — perguntei. — O que você acha
que ele vai fazer? Andar até a beira e se lançar no ar?
Dez segundos depois foi exatamente o que ele fez, caindo na
água e fazendo muito barulho, o que exigiu que nos empenhássemos
em uma complicada operação de resgate para puxá-lo de volta à terra
firme.
Alguns dias depois, eu estava dirigindo para uma entrevista,
quando, do nada, me veio outra cena do início do nosso casamento:
uma romântica escapada de fim de semana para um chalé na praia na
Ilha Sanibel, antes da chegada das crianças. O noivo, a noiva — e
Marley. Eu tinha esquecido completamente daquele fim de semana, e
ali estava ele de novo, sendo reprisado em cores vivas: atravessamos o
Estado de carro com Marley enfiado entre nós, o nariz batendo de vez
em quando na alavanca do câmbio e desengatando a marcha. Demos
banho nele na banheira do quarto que alugamos depois de passar um
dia na praia, com espuma, água e areia voando para todo o lado. E,
mais tarde, Jenny e eu fazendo amor sob os lençóis de algodão frescos,
com uma brisa do oceano soprando sobre nós, e o rabo comprido de
Marley batendo no colchão.
Ele foi o personagem central de alguns dos capítulos mais felizes de
nossas vidas. Capítulos de amor jovem e novos começos, princípios de
carreiras e bebês de colo. De estrondosos sucessos e frustrações
arrasadoras; de descobertas, liberdade e auto-realização. Ele entrou em
nossas vidas quando estávamos tentando imaginar como seria. Ele se
juntou a nós quando estávamos administrando o que todo casal acaba
tendo de enfrentar mais cedo ou mais tarde, o processo por vezes doloroso
de forjar um futuro partilhado a partir de duas histórias com passados
distintos. Ele se tomou parte desse tecido unificado, de textura fina
constituída por fios inseparáveis nesta trama que nos formava. Assim como
o ajudamos a se transformar no cão de família que acabou se tornando,
ele ajudou a nos transformar em um casal, em pais, em pessoas que
adoram animais, em adultos. Apesar de tudo, de todas as frustrações e
expectativas não realizadas, Marley nos deu um presente gratuito, porém
de valor inestimável. Ele nos ensinou a arte do amor incondicional. Como
oferecê-lo e como aceitá-lo. Quando isso existe, a maior parte das outras
peças acaba por se encaixar.
No verão depois de sua morte, instalamos uma piscina, e não pude
deixar de pensar no quanto Marley, nosso incansável cão aquático, teria
adorado, adorado mais do que qualquer um de nós, mesmo arranhando a
borda com suas patas e entupindo o filtro com seu pêlo. Jenny estava
maravilhada com a facilidade que era manter a casa limpa sem um
cachorro soltando pêlo, salivando e sujando tudo dentro. Tive de admitir
que era muito agradável andar descalço pela grama sem ter de tomar
cuidado onde pisar. Definitivamente, o jardim estava mais bonito sem
um caçador de coelhos pesadão correndo por toda parte. Não havia
dúvida, a vida sem um cachorro era muito mais fácil e imensamente
mais simples. Podíamos sair no fim de semana sem ter de nos preocupar
em conseguir acomodações para ele. Podíamos sair para jantar sem ficar
preocupados com os bens de família correrem perigo. As crianças podiam
comer sem ter de vigiar seus pratos. O cesto do lixo não precisava mais
ficar no balcão da cozinha quando saíamos. Podíamos sentar e apreciar
em paz o maravilhoso espetáculo de uma boa tempestade de raios de
novo. Eu gostava principalmente da liberdade de andar pela casa sem ter
um gigante amarelo grudado nos meus calcanhares.
Mesmo assim, como família, faltava algo.
Uma manhã no final do verão, quando desci para tomar café da
manhã, Jenny me deu um pedaço do jornal dobrado em uma seção para
que eu visse o que estava escrito.
— Você não vai acreditar nisso — ela disse.
Uma vez por semana, o jornal local mostrava um dos cachorros
recolhidos pelo abrigo e que precisava de um lar. A nota sempre
mostrava uma foto do cachorro, seu nome, e fazia uma breve
descrição, como se o próprio cachorro estivesse falando, defendendo a
sua causa. Era uma brincadeira que o pessoal do abrigo fazia para que
os animais parecessem charmosos e adoráveis. Sempre nos divertíamos
com os currículos dos cachorros, senão por outro motivo, pelo menos
devido ao esforço que eles faziam para mostrar o melhor de animais
indesejados que já haviam sido abandonados ao menos uma vez.
Nesse dia, olhando para mim naquela página de jornal estava uma
cara que reconheci instantaneamente. Nosso Marley. Ou pelo menos
um cachorro que poderia ser seu gêmeo idêntico. Era um grande
labrador amarelo com uma cabeça quadrada, sobrancelhas vincadas e
orelhas de abano jogadas para trás em um ângulo engraçado. Ele estava
olhando diretamente para a lente da câmera com uma intensidade tão
vibrante que dava para ver que, assim que tiraram a foto, ele derrubou o
fotógrafo no chão e tentou engolir a câmera. Sob a foto estava o nome:
Lucky. Li o anúncio em voz alta. Era isto o que Lucky tinha a dizer sobre
si mesmo: “Cheio de vigor! Eu me daria bem em um lar tranqüilo,
enquanto aprendo a controlar meu nível de energia. Não tive uma vida
fácil, por isso, minha nova família terá de ser paciente comigo e
continuar a me ensinar boas maneiras”.
—Meu Deus! — exclamei. — É ele! Ele retornou dos mortos!
—Reencarnação — completou Jenny.
Era estranho como Lucky se parecia fisicamente com Marley, e
também na descrição. Cheio de vigor? Problemas para controlar a
energia? Trabalhar as boas maneiras? Ser paciente? Estávamos bastante
familiarizados com esses eufemismos, pois já tínhamos usado todos eles.
Nosso cão mentalmente desequilibrado havia voltado, jovem e forte
novamente, e mais descontrolado do que nunca. Ficamos ali, ambos de
pé, olhando para o jornal, sem dizer uma palavra.
— Acho que podíamos ir até lá dar uma olhada nele — eu disse,
finalmente.
—Só por diversão — Jenny acrescentou.
—Certo. Só para satisfazer nossa curiosidade.
—Que mal há em olhar?
—Nenhum — respondi.
—Então, por que não?
—O que temos a perder?
Agradecimentos
Nenhum homem é uma ilha, inclusive os escritores, e eu
gostaria de agradecer às muitas pessoas cujo apoio me ajudou a
produzir este livro. No topo da lista, começo expressando meu profundo
agradecimento à minha agente, a talentosa e incansável Laurie
Abkemeier da “DeFiore and Company”, que acreditou nesta história e
na minha capacidade de contá-la antes de mim mesmo. Estou
convencido de que sem seu entusiasmo arrebatador e
acompanhamento, este livro ainda estaria trancado em minha mente.
Obrigado, Laurie, por ter sido minha confidente, minha advogada,
minha amiga.
Agradeço, de coração, ao meu maravilhoso editor, Mauro DiPreta,
cuja edição criteriosa e inteligente tornou este livro melhor, e à sempre
animada Joelle Yudin, que ficou atenta a todos os detalhes. Obrigado
também a Michael Morrison, Lisa Gallagher, Seale Ballenger, Ana Maria
Alessi, Christine Tanigawa, Richard Aquan, e a todos do grupo
HarperCollins por terem se apaixonado por Marley e sua história, e por
tornarem meu sonho realidade.
Tenho um débito com meus editores do Philadelphia Inquirer por
terem me resgatado do meu exílio auto-imposto dos jornais que tanto
amo, e por terem me concedido o inestimável presente que é a minha
própria coluna em um dos maiores jornais da América.
Sou mais que grato a Anna Quindlen, cujo entusiasmo precoce e
encorajamento significaram para mim mais do que ela jamais saberá.
Obrigado de coração a Jon Katz, que me deu conselhos valiosos e
feedbacks, e cujos livros, especialmente A Dog Year: Twelve Months, Four
Dogs, and Me, me inspiraram.
A Jim Tolpin, advogado ocupado que sempre encontrava tempo
para me dar conselhos gratuitos e sábios. A Pete e Maureen Kelly, cuja
companhia — e chalé que dava para o Lago Huron — foi o tônico de que
eu precisava. A Ray e JoAnn Smith por estarem lá quando mais
precisei deles, e a Timothy R. Smith, pela bela música que me fez
chorar. A Digger Dan, pelo suprimento constante de carne defumada, e
aos meus irmãos Marijo, Timothy e Michael Grogan, pela animação. A
Maria Rodale, por ter confiado a mim uma herança de família muito
amada e por ter me ajudado a encontrar meu equilíbrio. A todos os
amigos e colegas numerosos demais para relacionar por sua gentileza,
apoio, e torcida... Obrigado a todos.
Jamais poderia ter sequer idealizado este projeto sem minha mãe,
Ruth Marie Howard Grogan, que me ensinou desde cedo a apreciar
uma boa história bem contada e compartilhou comigo seu dom de
contar histórias. Com tristeza, lembro e presto minha homenagem ao
meu maior fã, meu pai Richard Frank Grogan, que morreu em 23 de
dezembro de 2004, quando este livro estava começando a ser produzido.
Ele não teve a oportunidade de ler, mas, uma noite, quando sua saúde
estava piorando, li para ele alguns dos capítulos iniciais em voz alta, e o
fiz dar algumas risadas. Vou lembrar para sempre daquele sorriso.
Tenho uma dívida enorme com minha adorável e paciente
esposa, Jenny, e meus filhos, Patrick, Conor e Colleen, por terem
permitido que eu os expusesse aos holofotes da opinião pública,
dividindo os detalhes mais íntimos. Vocês têm espírito esportivo,
pessoal e eu os amo demais.
Finalmente (sim, enfim, mais uma vez), preciso agradecer àquele
meu amigo de quatro patas, encrenqueiro, sem o qual não existiria
Marley & Eu. Ele ficaria feliz em saber que sua dívida por todos os
colchões estragados, todas as paredes destruídas, e objetos engolidos
está agora oficialmente quitada.
Sobre o autor
John Grogan é colunista do Philadelphia Inquirer na Pensilvânia e
ex-editor chefe da revista Organic Gardening publicada pela Rodale.
Trabalhou como repórter, chefe de redação e colunista em jornais em
Michigan e na Flórida. Ganhou inúmeros prêmios, incluindo o National Press
Club’s Consumer Journalism Award. Vive em uma colina cercada de bosques
na Pensilvânia com sua mulher, três crianças e uma labradora adorável
chamada Gracie.
Conheça outros livros da Prestígio
Cães são de marte Donos são de Vênus
Depois deste livro, os problemas de relacionamento entre o homem
e seu melhor amigo estão com os dias contados. O livro da
comportamentalista animal mais respeitada dos Estados Unidos não é
sobre treinamento canino. O que a autora sugere está mais próximo de um
adestramento humano. Mais que abordar a psicologia dos cães, a autora
propõe mudanças no comportamento dos donos. “Este é um livro para
amantes de cães, mas. não é apenas uma publicação sobre cães. É
também sobre pessoas, como somos semelhantes aos nossos cães, e como
somos diferentes deles”, comenta a autora.
As idéias da treinadora são ilustradas com conflitos reais de
relação entre cães e seus donos, situações reunidas em seus mais de 20
anos de experiência. Entre histórias recheadas de humor estão dados
científicos, históricos e psicológicos. Bem treinado, o leitor irá concluir
que, apesar de ser de Marte e seu cão de Vênus, aqui na Terra podemos
ser os melhores amigos.
Este livro foi composto em Goudy Old Style,
e impresso pela Ediouro Gráfica sobre papel
Chamois fine dunas 80gr. para a Prestígio Editorial.
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